XIX. DESENCONTROS E ENCONTROS
Capítulo 19 - Desencontros e encontros
O cabelo de Charlotte Manson precisava de hidratação. Talvez ela também devesse tingí-lo mais uma vez, pois a raiz estava escurecendo. Ela também não tinha muito habilidade na maquiagem; o batom estava meio borrado. A roupa precisava de um velho ferro de passar, tamanho era os gominhos que estavam presentes no blazer rosa que usava.
Foram apenas essas coisas que incomodaram Isabelle na primeira visita da psicóloga. Embora parecesse meio desarrumada, Charlotte tinha os olhos azuis sempre atentos a paciente.
一 Então, não lembra-se de nada?
A Stuart hesitou. Nada era muita coisa; ela lembrava de pequenas coisas. As memórias estavam embaçadas, como um filme que ela tinha assistido há muito tempo. E ela não gostava de lembrar 一 não queria lembrar.
一 Sei que atiraram... 一 franziu o cenho, forçando a mente. 一 Em algum momento... Será antes daquela casa horrenda? Eu... Eu não sei.
一 Não precisa forçar a cabeça, querida.
O olhar perdido deixou a psicóloga abalada, sentindo pena daquela mulher que perdera tanto tão rapidamente. Isabelle era jovem, mas carregava as marcas do trauma com os olhos secos como de uma pessoa idosa. O laudo médico havia diagnosticado amnésia seletiva por motivos traumáticos, porém essa era só a superfície do que havia atingido-a plenamente.
一 Fale-me da cidade. O que está achando dela?
一 É bem pequena 一 replicou com um sorriso encabulado. 一 Não tem muito o que fazer e não conheço ninguém. Me sinto bem insegura de andar por aqui.
一 Tente fazer amizades. 一 aconselhou Charlotte. 一 Sei que é difícil manter uma identidade a parte, mas encare isso como uma peça de teatro. Você é a protagonista.
一 Eu gosto de teatro.
Charlotte encarou um quadro recém pintado no cavalete perto da janela. Eram ondas e mais ondas do mar, grandes e revoltosos. Ainda estava na metade, porém destilava terror advindo do mar.
一 Foi você que pintou?
Isabelle balançou a cabeça positivamente.
一 Trabalhei desde que acordei. Quer dar uma olhada de mais de perto?
As duas mulheres andaram a passos cuidadosos. A psicóloga, porque tinha um calo no pé direito; já a Stuart tinha como intuição esconder aquele quadro que refletia o coração com transparência, mas resolveu arriscar. Charlotte era o seu único caminho para resgatar seu mente e tornar-se igual a quem era antes.
一 É muito talentosa, Isabelle.
一 Obrigada 一 agradeceu sem a modéstia que costumava fingir ao receber elogios.
Ela era boa. Talentosa. Tinha traços bonitos. Etc. Etc.
Isabelle sabia de tudo isso.
Charlotte ergueu a mão para tocar no quadro, a sensação de relevo dominando a imagem quando Isabelle disse:
一 Não! Não está seco ainda.
Dando um pulinho para trás, a psicóloga corou de vergonha.
一 Desculpe, parece tão real! Que imagem!
Então, seu olhar recaiu nos esboços soltos pelo chão. Não demorou muito para encontrar o rosto de um homem.
一 Seu namorado?
Isabelle sentiu o peito esquentar, a sensação de ter feito algo errado piscando um alerta em sua mente.
一 Não, não... É um homem com quem sonhei...
O rosto da psicóloga ficou pálido, deduzindo que era a face daquele que provavelmente matara toda a família Stuart.
一 Sonhou? Que tipo de sonho?
Alheia aos pensamentos de Charlotte, a jovem Stuart lambeu os lábios.
一 Um sonho romântico.
一 Ah...
一 Me sinto meio mal por ter sonhado com ele... Digo, eu tenho namorado. Quer dizer, noivo. Eu deveria estar pensando nele agora, não é? 一 falou em voz alta os pensamentos que pertubaram o seu dia.
一 Foi um sonho só romântico?
Isabelle não respondeu-lhe nada, o que foi uma resposta bem direta para a psicóloga.
一 Também tenho outros esboços na mala. Quer dar uma olhada? 一 desconversou a Stuart.
Não esperou a resposta; os pés ligeiros foram sem hesitação para o quarto em busca do caderno.
Charlotte encarou o caminho que sua paciente percorrera; alguma coisa não estava certa. E ela iria descobrir o que era.
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Peter Bane nunca tinha pisado em uma agência de publicidade. As únicas referências que tinha era Mad Men e os memes da internet 一 antes tratados como deuses, os publicitários eram hoje vistos como uma profissão um tanto patética pelo Reddit.
Se não estivesse tão compenetrado em conhecer os espaço novo, talvez teria reclamado por mais cinco minutos pela incompetência de Richard. Intimada a depor do caso de assédio, a secretária dos Stuarts deu algumas informações valiosas, mas nenhuma relacionada ao caso específico, já que o detetive, envolvido com a conversa, esqueceu de mencioná-lo. O que sabiam advinha do post resgatado por Stifler. O assediador? Anthony Stuart.
一 Repita-me, por favor, o porquê estamos aqui 一 resmungou Lawrence.
Bane passou a mãos nos cabelos com força, escondendo a vontade de esmurrar seu companheiro.
一 Ernest Thurman é o funcionário mais antigo da Cerquilha. Na verdade trabalha aqui desde antes de ser dos Stuarts. 一 explicou Peter. 一 Ele pode passar a limpo a história do antigo inimigo da família.
一 Mas e a vítima de assédio?
一 Está fora do estado. Chegará amanhã para depor. 一 replicou Bane. 一 Você me escutou nas últimas horas? Devo ter repetido dezenas de vezes.
一 Não estou em um dia bom, detetive.
O detetive Bane ia dar uma resposta atravessada, mas o olhar abatido de Lawrence o fez hesitar. Richard era um homem igual a ele 一 cheio de problemas e falha. Escolheu, então, não dizer nada.
一 O senhor Thurman espera por vocês no terceiro andar, sala 16. 一 avisou a recepcionista.
O escritório de Ernest Thurman era sofisticado e grande. Tinha pôsteres de antigas propagandas, fotos com celebridades e prêmios; um verdadeiro santuário do ego.
一 Meus senhores, confesso que estou surpreso com visita de vocês. 一 cumprimentou-nos com um aperto de mãos 一 Estão perto de descobrir o culpado?
一 Mais do que nunca 一 replicou Lawrence. 一 Podemos fazer algumas perguntas? Será rápido e...
一 Claro, claro. Sentem-se 一 disse cheio de amabilidade. 一 Querem beber algo?
Os dois negaram e sentaram-se sem mais delongas.
Ernest ainda tinha a aparência de um velho sem escrúpulos, mesmo vestido de terno sob medida. Parecia, também, estar perdendo os cabelos brancos que cobriam a cabeça.
一 Lembro que falamos da possível existência de inimigos dos Stuarts... 一 iniciou Peter. 一 É verdade que o antigo dono da agência e Chad Stuart não tinha uma boa relação
Thurman fez um pequeno movimento com os olhos; os dentes amarelos rangeram de hesitação.
一 Está falando de Conrad Trait? Eles eram amigos, na verdade. Se conheciam desde a faculdade.
Os dois detetives balançaram a cabeça em assentimento, sem expor que tal informação já havia chegado a eles.
一 Mas parece que a Cerquilha os separou... 一 comentou Lawrence.
Ernest riu como de quem escondia informações.
一 Nada... O que os separou foi o desejo pela mesma mulher.
Peter levantou as sobrancelhas, surpreso. O movimento satisfez Ernest, que inclinou-se para frente como um bom fofoqueiro.
一 Os dois apaixonaram-se por Gemma em algum momento, mas ela nunca tolerou ser um troféu a ser disputado. Era uma mulher interessante, Gemma... 一 Thurman deu um sorriso nostálgico. 一 A Cerquilha era apenas uma desculpa.
一 Não durou muito, não é? 一 replicou Richard. 一 A morte dele precoce com certeza não estava nos planos.
O homem encostou-se na cadeira, dando fim ao momento de fofoca.
一 Com certeza 一 afirmou Thurman. 一 Chad ficou arrasado, embora nunca admitiu em voz alta. Bem, mais alguma pergunta? Tenho um horário apertado.
O detetive Bane arrumou-se na cadeira. Como se voltasse a posição de autoridade pública, o homem disse:
一 Claro, claro. Nossa última pergunta é a respeito do caso de assédio que Anthony Stuart protagonizou 一 explicou sem muitas delongas. 一 É verdade que foi o senhor responsável por acobertá-lo?
Ernest Thurman ficou pálido como neve fresca; Lawrence também surpreendeu-se, porém por outro motivo: não esperava que seu parceiro iria ser tão louco a ponto de confrontar o homem.
一 O que está falando, detetive? Está me acusando?
一 Não, de jeito nenhum! 一 respondeu Peter com o tom de voz brando.
一 Pois bem. 一 replicou Thurman na defensiva. 一 Gostaria, então, de pedir que os senhores detetives se retirassem. Tenho alguns compromissos inadiáveis.
Sem muita pressa, Lawrence e Bane levantaram-se e agradeceram a um Ernest não tão amigável quanto o do começo da conversa. Richard não disse nada até os dois estarem juntos no carro em direção a delegacia.
一 Você é maluco, Bane? Por que foi falar disso com Ernest? Perdeu o juízo?
Peter, porém, estava muito ocupado usando seu celular. A atitude irritou Lawrence de maneira que teve que controlar-se para não agir violentamente.
一 Puta que pariu, Peter! Estou falando, caralho.
一 A vítima de assédio não é uma boa suspeita 一 replicou Bane, alheio a frustração do parceiro. 一 O depoimento será feito, mas não acho que ela tenha alguma ligação com o caso. Stifler acabou de enviar-me informações do acordo que ela fez com os Stuarts: foi um dinheiro generoso e pagou a pós-graduação dela. Não pisa em Missouri há cinco anos.
一 Isso não a impede de querer se vingar, Bane.
一 Concordo, mas a morte dos Stuarts foi muito específica. Foi assassinado a sangue frio, bem planejado, mas não parece feito por profissionais 一 explicou Peter. 一 Digo, assassinos de aluguel não sujariam as suas mãos e perderiam tempo com tortura. Estavam armados e não usaram para matá-los, apenas para intimidar.
O detetive Lawrence batucou o polegar no volante.
一 Quem quer que matou os Stuarts realmente os odiava. 一 concluiu Richard.
Peter deu um suspiro. Haviam voltado para a estaca zero.
一 Sei que fui imprudente com Ernest, mas não consegui me segurar. 一 desabafou Bane. 一 Só consigo pensar que em breve minha filha estará cercada desses abutres e eu não poderei protegê-la.
O parceiro não disse nada, mas deu-lhe um olhar cheio de empatia. Não tinha filhos e nem os desejava, porém imaginava que o amor de pai era grandioso e ao mesmo tempo assustador.
一 Sabe, Bane, acho que você tem total direito de sentir isso, mas, na próxima, se arrisque sozinho. Eu gosto do meu emprego e não quero ser suspenso por culpa dos outros.
Peter sorriu apologético como resposta.
Em silêncio, os detetives passaram a lembrar-se dos diversos problemas que estavam carregando como uma sombra que os perseguia. O que dizer ao Capitão Pollack quando chegassem na delegacia? Qual seria o caminho certo a ser traçado? O caso dos Stuarts seria mais um sem solução?
Lawrence parou o carro no sinal. A resposta veio como uma ideia epifânica que artista tinham 一 era loucura e ao mesmo tempo fazia sentido. Por que não arriscar?
一 Bane.
一 Fale.
一 Acha que é loucura pensar que Conrad Trait possa estar vivo?
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n/a:
Eu nem tenho mais cara pra me desculpar pela demora das atualizações, principalmente agora que ainda não organizei-me para escrever com mais frequência. Porém, ta aí: capítulo novo! Também venho para cravar que, até agora, temos mais seis capítulos planejados, ou seja, tudo começará a ser afunilado aqui.
As teorias tornaram-se menores e temos muitas informações. O que acham que aconteceu? Que segredos os Stuarts ainda guardam? O que vocês gostariam de saber?
Infelizmente não pude cumprir a promessa de att extra, mas estou em um processo de organização. Em breve cravarei um dia certo para atualizar Confidente.
Obrigada a todo mundo que tem comentado e acompanhado a história. Beijo pra vcs e até a próxima!
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