Capítulo 4
Juliana monopoliza a conversa em volta da mesa, não sei se acidentalmente ou porque sabe ser exatamente o que Eduardo precisa. É o que eu preciso também. Na primeira meia hora, forço minha atenção no peixe perfeito que minha nora insistiu em fazer. Os longos monólogos dela aos poucos são substituídos por conversas curtas, comentários irrelevantes e logo viram risadas ocasionais. Quando a fatia de torta de limão — especialidade dela — chega à mesa, meu olhar já não mais me obedece e pousa sobre Carlos, que parece alheio a qualquer outra pessoa que não sejam os bebês ocasionalmente postos em seu colo.
Ao fim da tarde, quando todos os adultos estão devidamente servidos por café, um projeto de sorriso ameaça surgir no rosto de Eduardo. São anos demais para serem resgatados em uma tarde, mas os dois homens parecem dispostos a isso. Quando qualquer silêncio ameaça reinar, Carlos volta sua atenção para os pequenos, perguntando sobre Beatriz e Felipe, contando histórias suas de quando era criança.
Antes que eu perceba, a noite canta alta lá fora e uma manha justificada se apossa dos meus netos.
— Acho que está na hora de dar um banho nesses dois — Juliana constata, sorrindo calidamente para Carlos, que hesita por um instante antes de entregar a garotinha que está em seus braços. — Eu aviso quando eles estiverem prontos para dormir — ela sussurra para ele, piscando um olho cúmplice, e o olhar agradecido de Carlos não pode ser ignorado.
— Eu te ajudo — ofereço, ameaçando me levantar do sofá, mas Eduardo toca meu joelho de leve e nega com a cabeça.
— Eu cuido disso, mãe.
O olhar que meu filho me oferece é significativo. Ele precisa de uma pausa, de tempo para respirar. É com um sorriso no rosto que vejo quando ele sequer disfarça a necessidade de conforto ao abraçar a esposa assim que deixa o cômodo. O sorriso, contudo, morre rápido em meu rosto, dando lugar ao nervosismo imediato quando me vejo sozinha com ele.
— Você o criou muito bem, Luíza — Carlos comenta, os olhos marejados que funcionam como uma facada certeira no meu peito. As lágrimas dele são fruto de uma emoção impossível de ser controlada, mas para mim elas têm gosto de culpa.
Aproximo-me dele, mudando de lugar no sofá, e estendo a mão, que Carlos não hesita antes de pegar. Há um contraste bonito entre nossos dedos; os meus, cobertos por um esmalte claro que em nada ressalta minha pele enroscados aos dele, tão enrugados quanto. Sua pele não é mais sedosa como um dia foi; tampouco é a minha. Em seu rosto, por detrás dos óculos, os olhos carinhosos ainda marcam seu rosto; olhos de um homem bom, honesto e que já perdeu boa parte do cabelo, mas que jamais perdeu o sorriso.
— Você acha que conseguirá me perdoar um dia? — pergunto, apertando um pouco seus dedos nos meus. É curiosa a forma como não estranho esse contato após tanto tempo. Pelo contrário, o calor da sua palma traz memórias antigas que jamais foram apagadas.
Carlos balança a cabeça em negativa e cobre minha mão com a sua livre.
— A vida não foi justa com nós dois — comenta. — Estarei mentindo se disser que não trago qualquer mágoa comigo, mas... arrependimentos não vão servir de nada a essa altura.
Aceno com a cabeça, embora não concorde. Arrependimentos são importantes, fundamentais. Não há aprendizado se dores não são sentidas, não há evolução se erros não são cometidos. Sei que cometi muitos ao longo da vida, e talvez o maior deles tenha sido há tempo demais para que, de fato, pedidos de desculpa tenham qualquer significado.
Quando os segundos passam, o tempo se estende, porém, nossos olhares não se perdem e nossos dedos não se soltam. Começo a pensar que talvez arrependimentos não sejam tão grandes a ponto de apagar uma história que jamais aconteceu.
Talvez a força que rege o universo seja o poder do "e se". Não há palavra mais poderosa, não há sentimento mais abrasador. Não há nada que tire noites de sono de forma tão certeira quanto se perder em questionamentos infinitos sobre histórias não vividas.
Eu lembro de cada palavra. Lembro de cada promessa, de cada plano que não foi cumprido, cada sonho que não foi realizado. E dói, machuca a alma e dilacera o coração saber que fui eu a renegar uma vida de felicidade em nome de um casamento que me fez sofrer desde o primeiro instante.
Sinto-o apertar meus dedos um pouco mais, em um carinho delicado que sempre me ofereceu. Isso faz com que eu deixe de me perder em melancolias antigas e volte ao presente.
— Como você está? — pergunta.
— Eu quem devia te perguntar isso — respondo, permitindo que um sorriso cresça em meu rosto. — Como é finalmente conhecer seu filho?
Carlos sorri, e o movimento ressalta as rugas em seu rosto, cada linha que o tempo marcou e que traz uma história que me pego ansiosa para conhecer. São anos de lacunas que jamais imaginei ter a oportunidade de preencher.
— Eduardo é um bom homem. Dá para ver pela forma como trata a esposa, o carinho com os filhos. Trabalhador, honrado.
— Ele me lembra tanto você, desde menino. Tem seu jeito de falar, de se preocupar com todo mundo. Seu caráter.
Ele nega com a cabeça e abre um sorriso triste.
— Eu poderia ter sido um homem melhor — comenta. — Para você, inclusive.
— Carlos...
O que quer que eu estivesse a ponto de dizer, morre em minha garganta quando noto Eduardo, recostado contra a parede, braços cruzados em frente ao peito, olhar atento sobre nós dois. Por instinto, como uma adolescente pega em flagrante, solto as mãos de Carlos e afasto-me um centímetro, desencostando meu joelho do seu.
— Gostaria de dar boa noite para os seus netos? — Eduardo pergunta, as palavras soando pouco naturais em sua boca, como se ainda se acostumasse com a ideia. Carlos, por outro lado, desprovido de qualquer orgulho, aceita qualquer espaço que lhe é concedido e, sem titubear, levanta-se do sofá, concordando com a cabeça. — É o segundo quarto subindo as escadas. Vou subir em um minuto.
— Certo — ele concorda, seguindo na direção indicada.
Enquanto isso, eu fico onde estou, sob o olhar atento do meu filho, que se apoia no dorso do sofá.
— Vocês dois parecem estar se entendendo — Eduardo comenta.
Desvio o olhar, sentindo-me culpada. Não há qualquer acusação na voz do meu filho, mas já ouvi essa frase antes, nas mesmas exatas palavras, e, naquela ocasião, não foi um comentário despretensioso. Foi durante a celebração de fim de ano do trabalho, onde Alexandre me acompanhou e notou a intimidade quase inapropriada que havia surgido entre seu melhor amigo e eu. Naquela época, minha primeira reação instintiva foi negar; agora, faço o mesmo.
— Só estava me desculpando... por tudo — digo, movendo a mão, colocando atrás da orelha um mecha solta de cabelo.
Eduardo sorri, carinhoso, e beija minha testa.
— Faz cinco anos que meu pai morreu — diz, a voz baixa. — Você não precisa passar o resto da vida sozinha, mãe. Se ainda houver alguma coisa aqui...
— Não diga bobagens, menino — interrompo, dispensando-o com a mão, sentindo meu coração me trair somente com a semente que esse comentário planta.
— Você ainda está na flor da idade, dona Luíza — brinca. — Tenho certeza que Carlos vai fazer parte da vida das crianças, e... — Ele suspira. — Gostaria que ele fizesse parte da minha também.
Há um tremor em sua voz e seu olhar cai, então é minha vez de alcançá-lo, tocando seu braço.
— Você não está traindo a memória de Alexandre permitindo que Carlos faça parte da sua vida, querido — garanto.
Meu filho cobre minha mão com a sua.
— Nem você, mãe.
Ele beija o dorso da minha mão e se afasta, seguindo escada acima.
E me deixa sozinha, com uma nova onda de "e se".
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