Capítulo 1
Um dia ensolarado jamais é lembrado.
Tempestades ficam em nossa memória, entretanto.
Aquele dia depressivo, quase aterrorizante, sempre traz uma história catastrófica ou digna dos mais quentes romances. Dias chuvosos fazem também parte das minhas próprias memórias, pelos dois motivos de uma única vez.
Hoje, contudo, em uma dia apático, nublado e sem nenhum potencial para ser memorável, surpreendo-me com uma brisa de ar fresco que faz minha vida ganhar uma nova paleta de cores quando Juliana, minha nora, entra em casa com um bebê rechonchudo em seus braços e um sorriso glorioso no rosto que somente uma mãe de primeira viagem tem. Logo atrás dela, desafiando a força do meu coração, meu filho adentra a casa embalando uma garotinha em seus braços.
Tudo ao seu redor parece deixar de ter importância para Eduardo enquanto ele murmura alguma coisa para o bebê pequeno demais para entender o que ele diz.
Eu vi a forma como seu mundo inteiro passou a girar em torno da sua esposa, desde muito antes de ele e Juliana serem um casal, de fato. Não imaginei que Eduardo fosse capaz de amar outra pessoa tanto quanto ele sempre venerou essa mulher, desde o primeiro instante. Agora, contudo, vendo os dois entrando nessa casa, grande demais somente para mim, carregando meus netos em seus braços, a forma como seus olhos cintilam mostra que sua vida nunca mais será a mesma. Que seu coração pertence, indiscutível e irremediavelmente, a essas duas pessoas, pequenas demais, frágeis demais, inocentes demais, que são seu futuro,
Um filho muda tudo.
Apenas um pai e uma mãe são capazes de entender a dimensão de um amor incondicional. Esse sentimento puro, intenso e indestrutível, que nos faz estar dispostos a entregar tudo que temos a esse pedaço nosso que habita o mundo, que nos faz celebrar suas conquistas, sonhar quando sonham, sofrer quando sofrem.
Que nos faz sangrar quando percebemos que falhamos.
Eduardo cresceu para se torar um homem que traria orgulho a qualquer mãe. Honrado, honesto, amoroso. Protetor e esforçado. Sempre foi um bom filho e se tornou um marido igualmente dedicado. Não há quem possa duvidar que será um ótimo pai; já é.
Vinicius, entretanto... Os anos passam e não consigo entender onde, ao longo do caminho, eu errei ao ponto de meu filho mais velho se tornar o ser humano que é hoje.
— Venham aqui, vocês dois — chamo, erguendo-me do sofá. — Tem bolo na cozinha, por que vocês não preparam um café enquanto eu fico com meus netos? Parece que faz semanas que não os vejo — ofereço, estendendo os braços para Juliana, que logo me entrega Felipe adormecido.
— Luíza — ela cumprimenta, abraçando-me como é possível com um bebê entre nós. — Vou preparar o café. O teimoso do seu filho ficou acordado a noite inteira com os gêmeos, de novo. Agora me diz se eu tenho condições de ficar viúva antes dos trinta porque meu marido se recusa a dormir?
Juliana reclama com um tom recheado de um humor que pertence a ela, mas seus olhos estão inundados por uma preocupação genuína que só o maior dos amores é capaz de externar.
— As crianças estão dando trabalho? Você sabe que podem ficar aqui até sua licença-maternidade terminar, certo? Vou adorar cuidar de vocês todos por alguns meses.
Essa casa vazia está me levando à loucura, dia após dia, eu poderia ter completado.
— Mãe, a senhora não precisa se preocupar com isso. — Ouço Eduardo, visivelmente cansado, já acomodado no sofá com Beatriz presa ao seu ombro. — Os bebês estão ótimos, apenas quero passar mais tempo com eles antes de voltar para o trabalho.
Vejo de relance Juliana abanar a mão, silenciosamente dispensando o comentário sonolento do marido.
— A gente fica no Rio por mais um mês antes de eu ter que voltar para o trabalho. Vamos conversar sobre isso.
Ela segue para a cozinha e volto a minha atenção para o par de mãos gorduchas do meu neto que resmunga um pouco em meus braços, ainda sem dar quaisquer sinais de que pretende acordar.
— Ainda não consigo acreditar como são lindos esses dois — murmuro, sentando-me ao lado de Eduardo. Herdaram a pele escura e os cachos de Juliana, mas consigo reconhecer com facilidade o contorno no nariz e da boca do meu filho. — Comportados, como você era. Por vezes, eu até esquecia que tinha um bebê em casa.
Eduardo sorri, os olhos fechados enquanto embala Beatriz em seus braços.
— Felipe talvez. Essa pequena aqui herdou toda a energia de Juliana. É quase impossível fazê-la dormir.
Como se para provar que o pai tem razão, ela começa a choramingar em seus braços. O resultado, contudo, é um sorriso carinhoso no rosto de Eduardo.
— Acho que ela está com fome. — Ouço Juliana gritar antes de adentrar nosso campo de visão.
— Ei, minha menina. O que acha de dar um descanso para a mamãe depois disso? — ele murmura perto do rosto de Beatriz. — Você não dormiu a noite inteira.
Eduardo beija a testa da filha antes de entregá-la para Juliana. Pego-me com um sorriso no rosto assistindo à interação dos dois. Um beijo singelo, um toque despretensioso. Posso apostar que os dois sequer notam o discreto tocar de dedos que nada tem a ver com a criança trocando de braços. Tenho certeza que não percebem o sorriso apaixonado nos rostos cansados, o olhar carinhoso trocado que dispensa juras de amor em voz alta.
Os anos passaram e o que poderia ter sido nada além de um caso passageiro de escritório, como tantos outros são, que resultam em nada além de memórias antigas demais e corações partidos, virou muito mais. Os dois transformaram o potencial desastre em uma linda história de amor. Disso tudo, eu ganhei dois lindos netos que me fizeram voltar a amar a vida como há muito tempo não o fazia.
É engraçado o que a chegada de uma criança pode fazer com uma família. Duas, então, é quase demais para o meu coração já muito fragilizado pelo tempo.
— Por que você não vai dormir um pouco? — pergunto a Eduardo, após Juliana se acomodar em uma poltrona para amamentar nossa menina.
Eduardo suspira e esfrega o rosto. Por fim, concorda com a cabeça, levanta-se do sofá, murmura alguma coisa que não posso ouvir para Juliana e vem até mim, pegando Felipe dos meus braços.
Com um sorriso no rosto, assisto-o subir as escadas com o filho adormecido no ombro. Quando volto a encarar minha nora, Juliana tem, no lugar do seu tão costumeiro sorriso, uma ruga profunda entre as sobrancelhas. Os olhos atentos o acompanham enquanto sobe a escada e ela não disfarça o estalar discreto de dedos que é uma mania e marca certeira de nervosismo.
— Qual o problema, querida? — pergunto, cruzando as pernas e apanhando o livro que deixei sobre a mesa de centro.
Juliana coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha e me encara, incerta, um tanto nervosa. Ofereço-a um sorriso sereno e me aproximo, trocando de lugar e sentando-me na poltrona ao lado dela. Acaricio os cachinhos escuros da minha neta antes de segurar a mão nervosa da minha nora antes que ela quebre os dedos tentando estalá-los mais vezes do que é humanamente possível.
— Juliana. Nós já passamos por coisa demais nessa família para que você precise hesitar antes de me dizer qualquer coisa. Qual o problema?
— Não é um problema, eu acho — ela responde, franzindo os lábios por um segundo. Por fim, suspira. — Não tem jeito fácil de dizer isso.
Uma preocupação repentina me toma. Preocupo-me de imediato que algo de errado esteja acontecendo com as crianças, mas não imagino que Juliana estaria tão calma se fosse o caso.
— Luíza... Nós não viemos aqui hoje apenas para uma visita. Deus sabe que eu preciso de uma folga ou meus braços vão cair, então aceito toda e qualquer ajuda para cuidar desses dois — brinca, mas dura apenas um segundo. — Nós dois viemos aqui porque o Edu quer conversar com você, mas como eu não consigo não surtar com alguma coisa por mais do que cinco segundos...
— Juliana — interrompo, conhecendo-a bem para saber que, caso não seja impedida, ela vai se perder em pensamentos e potencialmente transformar algo simples em um problema desnecessariamente complicado. — Apenas diga.
Ela olha para Beatriz por um segundo e acaricia a bochecha dela antes de respirar fundo.
— Luíza, o Edu decidiu que quer conhecer o pai dele.
*
Quando meu marido morreu, quase cinco anos atrás, não foi o exato momento em que me senti completamente sozinha, como se minha metade tivesse deixado o mundo e me deixado sozinha para viver uma vida sofrida e sem amor. Há muito tempo meu casamento não era meu porto seguro, meu lugar tranquilo. Caso eu decida ser brutalmente honesta comigo mesmo, terei que admitir que é provável que jamais tenha sido.
Fiz o que pude para amar Alexandre. Quando não consegui, fiz o possível para ser uma ótima esposa. E fui, por longas quatro décadas e meia. Cada dia de cada mês de cada ano de uma vida muito diferente do que sonhava quando era uma garotinha. Cada dia de cada mês, menos aquele mês, aquele fatídico mês, em que cometi o erro de me permitir acreditar em contos de fadas e finais felizes. Em príncipes perfeitos, apaixonados, românticos e de coração bom.
Eu era inocente, naquela época.
Mas sei que isso não é justificativa o suficiente para ter traído meus votos sagrados de casamento. Alexandre era meu marido e eu não o honrei. Contudo, dessa desonra surgiu meu maior presente, a maior alegria da minha vida, então não consigo me arrepender. Nem pelo mais breve dos instantes.
Não tenho certeza, contudo, se, a essa altura da vida, com rugas no rosto, o peso de uma vida inteira nas costas e o coração fatigado demais por um casamento que destruiu cada pedaço meu, tenho qualquer estrutura emocional para deixar que aquele homem, o pai do meu filho, volte para a minha vida.
Entretanto, quando me acomodo na beirada da cama, velando o sono pacífico de Eduardo e meu neto no seu antigo quarto, sinto meu coração apertado por saber que sou capaz de absolutamente qualquer coisa por ele.
E a possibilidade de trazer à tona o que lutei para enterrar por todos esses anos me desespera por completo.
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