Sabe nos filmes de ação quando o herói se joga de um carro e cinco segundos depois está agindo como se nada estivesse acontecido? Hoje ao acordar descobri que não é tão simples assim levantar cantando com os pássaros e agir como os mocinhos dos filmes Acordei pedindo para Deus me deixar dormir, até essa dor no corpo passar, mas acredito que ele não me ouviu porque logo após terminar a oração, minha barriga faltou criar vida e pedir comida. Então levantei, tomei um banho e caminhei como um zumbi até a lanchonete ao lado da pensão.

Depois de pedir um lanche com Coca-Cola, fui procurar um lugar para sentar, mas aparentemente nada está me ajudando e todas as mesas encontram-se ocupadas, faltando chorar, virei para dizer à moça que me atendeu mudar o meu lanche para viagem, porém uma mulher que estava sentada sozinha em uma mesa próxima me chamou para sentar com ela.

— Muito obrigada, moça! Não estava com a menor vontade de subir as escadas novamente. — Digo puxando a cadeira para sentar

— Eu sei — simplesmente responde assim e me pergunto se estou vendo outro fantasma — Sei tudo sobre você, Tiana. E não, não sou um fantasma, sou médium. Atualmente você tem tido uma péssima interpretação sobre as pessoas né?

— Sim, está tudo saindo como não planejei, isso me frustra um pouco, mas já dizia o ditado: "gata sempre cai em pé". — as vezes penso em parar de ser tão sem noção, mas depois de um espírito aparecer em minha vida, suponho que isso seja o menor dos meus problemas — Aliás, qual seu nome?

— Alessandra. — observo a mulher que está na minha frente, tem olhos extremamente pretos, muito bonitos, mas ao encarar demais me trouxe um certo medo, é como se ela pudesse enxergar a minha alma. Deus é mais. — O que está olhando?

— Você — respondo no automático, caramba! São olhos incríveis — Seus olhos são maravilhosos, não apenas seus olhos, você é muito bonita.

— Eu sei, algumas pessoas dizem que os olhos são a janela da alma — ela diz me encarando fixamente — queria ter uma alma para que as pessoas pudessem enxergá-la.

Ela parece próximo de completar a frase, mas a garçonete nos interrompe trazendo meu lanche. Agradeço e em seguida dou uma mordida no enroladinho de presunto e queijo.

— Isso ainda vai te matar, você sabe né? —  faz uma cara engraçada, imagino que seja um quase sorriso no canto de sua boca, mas é meio difícil saber com aqueles olhos tão profundos e inexpressivos, sua cara também não mostra muito suas emoções, concluo que posso só ter idealizado ver ela sorrir — Estava ansiosa com a sua visita, os astros me disseram que você está no meio de uma busca, fiquei curiosa.

— Os astros o que? — pergunto, ainda mastigando um pedaço do enroladinho — Me desculpa, esqueci a educação em casa.

— Os astros me contaram toda a sua história. — é Tiana, você não pode mais dizer que nunca viu de tudo — Quer saber o que acho disso tudo?

— Óbvio, pode ser por ter batido a cabeça ao me jogar do carro, mas sua energia parece ser tão profunda e sábia. Imagino que tenha um grande conselho para dar.— Ok! acho que falei merda porque ela está me olhando estranho. Ramona tinha razão quando disse que deveria parar de me contar sobre o mundo espiritual, estou ficando espiritualizada e falando como ela.

— Você realmente acha isso? — Ela pergunta. — Isso não importa, me deixe dizer o que tenho para te guiar. É difícil desejar algo tão desesperadamente, algo que você nunca viu, sentiu ou tocou. Mas não significa que seja loucura, o Destino mesmo sendo um corno filho da puta, não deixa de ser sensato e se colocou esse desejo em seu coração, significa que irá valer à pena. Só não continue sendo escrota com quem quer te ajudar. — Olho para a Alessandra curiosa com a seriedade que assumiu suas feições — Sim, eu sei sobre a briga com aquele espírito. Nem todo mundo tem os seus privilégios, não quer dizer que você os ter seja errado, ou um crime, só é necessário ter em mente que ela não teve as mesmas oportunidades que você. A jornada não é apenas sua, é das duas, se focar apenas em você, nada disso dará certo porque o caminho das duas está ligado, é uma estrada necessária para que cresçam juntas.

— Você está dizendo que estamos ligadas... E que sem ela não conseguirei o que quero? — Meu Deus! Tão difícil ser feliz nessa vida, puta merda.

— É exatamente o que estou dizendo, sem ela você não consegue o que quer e sem você, ela não conseguirá cumprir o objetivo de vida e ir para a sua próxima jornada — revira os olhos — Então deixa de ser otária e vai encontrá-la. Devo confessar que colocar as iniciais no seu pulso foi uma ótima jogada e antes que pergunte, sim são reais. Uma última coisa: SoSo não pode entrar na pensão por causa dos cristais que coloquei ao redor da casa, queria que tivesse percebido que ela sumiu, mas você deu uma de sonsa e nem reparou. Pergunte os motivos dela ser assim, antes de julgar a sua personalidade.

— Sou uma péssima pessoa não sou? — Não acredito que fui tão idiota e deixei passar batido que SoSo desapareceu. Porra! Parece que estrago qualquer relação boa que tenho com outras pessoas e aparentemente estrago as que tenho com espíritos também — Faz um dia que a conheço e não vi o quanto ela já fez por mim.

— Todo mundo erra, princesa! Alguns mais do que outros, mas ninguém está livre de erros, o que faz diferença é como você vai consertar a merda que fez.

Depois dessas sábias palavras, agradeço à Alessandra por ter me feito abrir os olhos e vou procurar SoSo, não faço ideia de onde procurar, mas se somos conectadas acredito que é só questão de concentração.

Após vinte minutos pensando onde possa estar, vejo uma praça em uma rua próxima a pensão, não tem muito movimento, sentada na sombra de uma árvore é onde a encontro.

— Sinto muito! — é o que falo quando paro em sua frente, ela está chorando e isso faz com que me sinta mil vezes pior, ao perceber que sou eu, me abraça e chora desesperadamente em meu ombro — está tudo bem SoSo, calma.

— Tentei entrar na pensão, mas algo me bloqueou e tentei falar com você quando foi em direção à lanchonete só que você não me ouvia. — diz depois que me solta, sentamos na sombra da árvore — Não quero ficar sozinha de novo.

— Eu não te deixaria sozinha, nem se a minha vida dependesse disso, descobri algumas coisas hoje, precisamos conversar — respiro fundo, resolver as coisas é tão difícil — Você não conseguiu entrar na pensão porque Alessandra colocou cristais ao redor da casa e aparentemente isso bloqueia espíritos.

— Depois o pessoal não sabe o porquê ser espírito é tão difícil. O que você descobriu hoje? — repentinamente parece curiosa.

— Nós estamos conectadas, não sei por qual motivo, caso não trabalhemos juntas nada dará certo. — dá uma risadinha, como se o que falei fosse um completo absurdo. — Sei que parece besteira, mas Alessandra sabe tudo sobre a minha vida e a sua. Não acredito que mentiria sobre nossa conexão.

— Está dizendo que uma médium, super estranha que você conversou por quinze minutos sabe tudo sobre a nossa vida? Ou melhor, sua vida e minha morte — dizendo assim até parece que estou completamente louca, talvez esteja.

— SoSo, nesse momento estou conversando com um espírito, depois que você apareceu se alguém me falar que o céu é roxo e só enxergo ele azul porque sou daltônica, irei acreditar. — agora é minha vez de agir como a adulta responsável, está óbvio que ela apenas está enrolando para contar os detalhes de sua vida — Você pode parar de dar uma de sonsa e me contar o que aconteceu para ter te encontrado chorando nessa praça deprimente.

Ela respira fundo e olha para frente, está tão longe que posso reparar as memórias voltando a sua mente, talvez seja algo que não queira falar e se fosse em qualquer outra situação, respeitaria o seu espaço.

— Eu era como você, tinha um grande desejo de ser feliz ao lado de alguém, amar e ser amada como os meus pais se amavam, mas primeiro antes de correr atrás disso, precisava focar no presente, então estudei para caralho e me tornei alguém que a comunidade onde morava tinha orgulho, primeira preta daquele lugar que passou em uma universidade federal para cursar direito, poliglota e com um bom coração, estava realizada com a minha vida — sorri nostálgica, parece orgulhosa de seus feitos e quem não estaria não é? Não tinha dúvidas de que ela é foda pra caralho. — Mas ainda faltava algo, você conhece o sentimento. É algo que não sai da sua cabeça e você não consegue dormir sem pensar nisso ou acordar sem ter o desejo de ir em sua procura. Aos vinte e nove anos, que é a idade que terei eternamente, tive que fazer um congresso em outro estado e foi aí que tudo deu certo.

— Você encontrou o que procurava? — me olha sorrindo, é um sorriso sincero e profundo que só alguém que já foi muito feliz consegue ter.

— Sim, eu encontrei. Ele era novo na cidade, estava se aventurando, não era advogado, mas fazia caridade e é por esse motivo que estava lá. Grandes nomes estavam na festa pós congresso e foi lá que o vi. Na minha cabeça apaixonada, ele era a personificação do homem perfeito, durante a semana que fiquei naquele lugar antes de encontrá-lo, não parei de sonhar com ele, tudo estava conectado. Na festa ficamos do início ao fim, conversando, rindo e bebendo. Tudo na mais perfeita ordem, até adiei a minha partida para poder ficar mais tempo com ele. — pensei que o orgulho que estava sentindo não conseguisse ficar maior, mas aparentemente é possível porque ela ser feliz, me transborda de orgulho. — Ficamos uma semana, juntos, íamos voltar para minha cidade natal e viver algumas aventuras, mas ao ir para o aeroporto peguei um carro errado e aconteceu o que você já imagina, pulei do carro para me salvar, mas não calculei à velocidade, bati a cabeça e morri.

— E o que aconteceu depois? — não consigo acreditar que isso aconteceu com alguém tão precioso, não é justo, agora entendo uma parte do que ela passou e simplesmente não consigo aceitar.

— O que você pensa que acontece quando um preto é morto sem identificação? Fui enterrada como indigente, porque todos os meus documentos estavam na bolsa dentro do carro. Os meus pais superaram o meu desaparecimento meses depois, porque não tem ensino o suficiente para saber o que fazer e a minha alma gêmea me acha uma vadia sem consideração por ter desaparecido. — Nem sei quem é esse homem e já quero socar a cara dele, como ele pode pensar que ela desapareceria dessa forma? – Segura à emoção, meu amor! Ele não acha nada disso, é bom demais para descer tanto o nível pensando em algo assim. Pensa que desisti dele e tem razão.

— Você já tentou entrar em contato com alguém da sua vida? — Sim, é uma pergunta besta, mas isso não faz o menor sentido, por que posso vê-la e ninguém mais pode? Se bem que com todas as experiências contadas por Raven, um espírito não conseguir se comunicar com a família, não é algo anormal.

— Sim, eu já fui ver os meus pais e você já deve imaginar que não rolou nada de mais, já com o homem gostoso que costumava chamar de amor da minha vida, nunca nem cheguei perto.

— Eu sinto muito que você tenha passado por tudo isso, não dá para entender o que passa na cabeça das pessoas em fazer tão pouco caso de uma vida, o cara que te sequestrou é um filho da puta, espero que esteja queimando no inferno e todos que deixaram você ser enterrada sem identificação, vão tomar um processo porque irei assegurar que isso aconteça. — nunca senti tanta raiva e olha que muitas pessoas já foram um lixo comigo. Não é justo que ela tenha perdido toda a sua vida por negligência de outras pessoas que deveriam garantir a sua segurança. — Tenho uma amiga que pode fazer os seus pais te verem, se você quiser.

— Você não precisa fazer nada disso, quando morri deixei de me importar com coisas que me importava em vida, já não sofro por meus pais ou pela forma que morri, já não ligo mais para a minha alma gêmea. A única coisa que me importa no momento é não ficar sozinha e ficar com você. Atingi um novo nível ao morrer e gosto de como estou lidando com isso. — da para ver na cara dela que está sendo sincera, mas mesmo assim irei dar um final digno para seu corpo, para que finalmente a vida dela tenha valido à pena. Contarei aos seus pais e eles poderão descansar de verdade dessa vez, porque saberão que sua filha caiu, mas não foi sem lutar.

— Você merece o mundo, mulher! Está fazendo de tudo para realizar o meu desejo então nada mais justo do que receber uma pequena retribuição. — Dou um sorriso para SoSo, Alessandra tinha razão resolver as coisas era necessário e sinto nossa conexão fluir.

— Falando em desejo, tenho algo para te dizer sobre isso. Aprendi que amamos nossas almas gêmeas muito antes de conhecê-la, pode ser uma característica que te atrai, um sonho que você simplesmente tem regularmente com características específicas, mas sempre, sempre tem algo que te ligue aquela pessoa. É algo que não tem explicação, não dá para controlar esse impulso que te leva até ela. Esse é o problema, a única coisa que quebra esse elo é a morte, depois de morta, não tem mais nada que te ligue aquela pessoa ou a qualquer outra que fez parte de sua vida. Meio perigoso já que se sua metade da laranja for um maníaco, alguém vai ter que morrer para se livrar da conexão — segura o sorriso e sei que só está tentando me aterrorizar, retribuo o sorriso para mostrar que sua provocação não teve o menor efeito — Morrer me fez perder o homem que demorei tanto tempo para encontrar, os sentimentos também se foram, não sinto mais nada faz muito tempo. Mas você apareceu e da mesma forma que se sente perdida com essa confusão de sentimentos, também me sinto. É como se te ver chorando lá pedindo para ser feliz ativasse algo que há muito tempo estava adormecido. Agora sei que foi a nossa conexão que despertou e não consigo lidar com tudo o que isso me trouxe. É por isso que fui tão horrível, não sei lidar com nada que tenha um sentido real — Ao terminar de falar respira fundo, até espíritos cansam depois de fazer um monólogo.

— Eu não entendo como se sente e não vou mentir dizendo que tudo isso faz sentido — Dou um sorriso, porque nunca iremos entender nada do que está acontecendo — Então iremos superar tudo isso e agir como se nada estivesse acontecido, quando chegar o dia da festa vamos nos divertir e encontrar aquele homem gostoso. Tudo bem se for desse jeito?

— Osh! É claro que está tudo bem, quem gosta de problema é professor de matemática. Só de pensar que vamos encontrar vários homens maravilhosos, já estou pedindo perdão, por todos os pensamentos pecaminosos que terei.

— Isso mesmo, pense na quantidade de pessoas famosas e bem sucedidas que vamos encontrar, sendo que nem convidada fui. — Suspiro, só de pensar já fiquei com medo de tudo dar errado.

— Para de show, meu anjo! Tudo se resolve no final.