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A Dança dos Loucos | Conto 1

Ah sim, alguns dos eventos mais notáveis ao longo dos séculos que passaram desapercebidos por muitos, foram assistidos por mim e protagonizados por incontáveis almas, desde as singelas as grandiosas. Por vezes essas histórias ocorreram dentre simples camponeses ou imponentes reis e indiferente as diferenças, todas cumpriram a tarefa de entreter este enfadonho velho no intervalo entre eras. Há uma época longínqua, em especial que gostaria de revisitar, enquanto o mundo afundava em merda e sofrimento graças ao que chamaram de A Peste Negra, minha atenção esteve voltada para um espetáculo de curta duração que marcou essas memórias desgastadas.

- Não é necessário rotular, seremos dois amigos aproveitando o baile e talvez dançando. – O fracasso tinha a data de validade marcada e vencida, assim como os pães que ele enfiava na sacola de compras de Beatrice. – O que me diz? – O esforço que fazia pra não transparecer o nervosismo era tocante.

Um mero balconista ruivo e franzino não deveria criar expectativas, principalmente com a filha dos burocratas da importação, apesar da antiga amizade que dividiram e do gostar prévio que ela dedicava a ele, como qualquer mulher inteligente, ela teria cuidado nas escolhas.

- Já tenho acompanhante para as danças, lamento Zacarih. – O toque da pele aveludada e alva no rosto do recusado, normalmente o alegraria, porém dessa vez ele compreendeu que a carícia não passava de complacência. – Nos vemos. – A amigável partida foi especialmente dolorosa, a esperança que o alimentou até então, desapareceu junto dela, culpa e autopiedade preencheram seu lugar.

- Desfaça essa cara ridícula e volte ao trabalho! – O bom senhor Riller, mais careca e estúpido a cada verão, ordenou como de costume, dando o espanador a ele, que fielmente obedeceu, limpando as garrafas de conserva e detestando cada segundo disto.

O decorrer da tarde foi trivialmente rotineiro, após organizar os estoques de cigarros por preço e almoçar grãos de vegetais na varanda da mercearia, aguardou entediado pelas seis batidas do relógio da igreja, para somente então trancar cada janela e conferir o caixa, repassando os lucros ao patrão, que sovina conferiu cada centavo.

- Maldição, as vendas estão piores que nunca. – Lambendo os dedos e foleando nota por nota em seu escritório nos fundos, reclamava de pança cheia. – Aqui está. – O maço mais leve que o habitual foi entregue a contragosto, como se o ordenado fosse um favor e não obrigação.

- Está errado, o salário combinado não foi este. – As meias novas e as vestimentas de comemoração que planejou comprar estariam fora do alcance por conta da diminuição injusta. – O senhor poderia conferir? – Educadamente pediu por aquilo que deveria estar estabeleço como seu direito, típico dos covardes.

- Atrasou por três dias, agradeça por receber. – Afoito e fechado a debates, o sovina o empurrou para fora da sala, ingrato a devoção de seu funcionário que, expulso e desesperado encarou a injustiça em suas mãos culpando a si mesmo.

- Boa noite. – Um velho que adentrou o estabelecimento cumprimentou, usando chapéu surrado e casaco longo, carregava consigo uma caixa de instrumento de corda, aparentava ser de outra região por conta do sotaque arrastado e trejeitos pouco ortodoxos. – Estou à procura de algo de valor. Diga-me, teria algo a me ofertar?

- Perdão, encerramos. – Desinteressado em estender o trabalho, ele retirou o avental bordado com os dizeres "MC Dogall" e o pendurou no gancho da parede. – Além de que aqui, o senhor não encontrará nada de valor. – A despeito da má vontade em ser atendido, o velhaco caminhou sorrateiramente entre os corredores, rangendo as tábuas desgastadas e expondo um sorriso amarelo incômodo a ele.

- Ao contrário meu bom, acredito ter encontrado exatamente o que procurava. – Com unhas sujas, arrastou uma moeda no balcão. – Eis aqui o pagamento devido, espero que faça bom uso. – Estranhando a atitude, o rapaz pegou a desnecessária recompensa, notando o cunhado e escrita incomuns e antigas nele.

- De onde o senhor...? – Antes que pudesse indagar, o sino da entrada anunciou a ausência do desconhecido. Em um gesto involuntário, o dobrão foi guardado em seu bolso, de modo que assemelhou ter consciência.

Sendo herdeiro do sapateiro alcoólatra viciado em jogatinas, a reputação da família Larson não era das melhores, das sessenta moças disponíveis ao cortejo, nenhuma iria se dispor ao vexame de o namorar, graças aos boatos o tratamento que recebeu por toda vida foi equivalente ao de cães sarnentos, e esse desdém coletivo podia ser observado durante as caminhadas noturnas rumo a sua moradia singela e vazia, localizada nas piores ruas, cobertas de lama e terra, onde risadas e zombarias estavam presentes por todos os lados continuamente.

- Boa noite, Senhora Tweene. – Saudando e temendo a reação de espichar as dívidas, ele prosseguiu na invenção de desculpas. – Mil perdões pelo atraso, me comprometo a entregar todos os custos das roupas na próxima semana. – Da sacada ela deu as costas, amaldiçoando o fracasso.

- Enfim te achei. – A frase seguida do soco o levou ao chão antes que pudesse reagir, disparados por Jonathan, atual pretendente de Beatrice que como o esperado, buscava por represália. – Ousou convidar a minha namorada para sair? – O erguendo-o pela gola, voltou a acertar golpes nas costelas e estômago diante de toda vizinhança. – Ouça lixo, ouse falar com ela e da próxima, a surra será ainda pior. – Terminado a ameaça, o derrubou satisfeito em honrar quem que julgava o pertencer.

Os curiosos e bisbilhoteiros da vizinhança, escarniavam dos urros de dor que emitia. Arrependido pela coragem de em enfim convidar a amada, ele se ergueu, debilitado e odiando as risadas desrespeitosas que cercavam a viela.

- Pro inferno, que todos esses loucos queimem e morram! – Ao esbravejar, se escorou derrubando o dobrão do bolso que caiu penetrando o solo, à medida que afundava ia também infectando e liberando a doença vinda do desejo de seu detentor.

Belas canções tendem a ter o momento de virada preciso, bem próximo ao encerramento, o ápice que compensa a longa inserção e leva ouvidos atentos ao êxtase através dos gritos de desespero do odor de carne queimando que foi espalhando lentamente no decorrer da noite. Passos desatentos gerou a epidemia que ao poucos revelou o lindíssimo pandemônio, atos singelos como os da esposa do prefeito que esmagou o crânio do marido a marteladas, ou o açougueiro que desmembrou os próprios membros, e é claro, a costureira perfurando os olhos a agulhadas, cada indivíduo que pegou desvaneceu na doce e suicida loucura.

- Zacarih, Zacarih acorde! – Na penumbra do quarto, ele foi despertado por aquela face encantadora, coberta por sangue. – Venha comigo, temos que dançar. – Desnorteado se levantou sendo arrastado pra fora. – Veja, o mundo está em festa! – Rodopiando em meio ao caos chovendo na forma de cinzas vindas dos incêndios.

- Santo Deus! – Os corpos espalhados, criaram o cenário que devolveu a fé a muito perdida. – O que tá havendo?

- Jonathan contou o que fez, eu disse que ele havia exagerado e ele insistiu que não. – Gargalhando insanamente, ela apontou pra cabeça decepada, posta no colo do corpo morto do agressor. – Gostaria de dançar?

- Nem sequer temos música. – Derramando lágrimas, enfim percebeu a realização dos sonhos íntimos que escondeu para si.

- O que te faz pensar assim? – A fala dela foi acompanhada pela chegada do misterioso e familiar músico, que desembainhou o violino e sentado numa pilha de cadáveres desatou a tocar, elevando o espírito e embalando os movimentos dos dois.

- Eu te amo, Beatrice. – Tomando-a em seus braços, sorriu perturbadoramente. – Você é toda minha. – A beijou despreocupado com a duração daqueles instantes e acolhendo de coração a insanidade.

As notas que alcancei sublimes alcançadasnaquele baile improvisado foram únicas e distintas, a paixão e vinda daquelecasal encantou meu eu, e perfurou por séculos em minha mente. São excepcionais as cerimônias que prendem e divertem a morte.

[Este capítulo foi revisado pela nossa equipe]

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