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86 dias. 17 de Outubro de 1986

 

Desde que ele passou a noite comigo no hospital, o Charlie sumiu pelos três dias que se seguiram e, de repente, ele aparece na minha porta, segurando dois ingressos para o show do The Smiths.

- Você ficou maluco? Isso é só apenas para maiores de idade - lembro a ele o pequeno grande detalhe. Charlie ri e entra na minha casa sem que eu o convidasse. Fecho a porta e o sigo.

- Eu sei. Por isso, nós, eu você e o Mike, vamos fazer identidades falsas com um cara que Mike conhece.

- Que cara?

- Eu realmente não quero saber... Mike conhece todo tipo de gente.

- Mas... E a sua amiguinha, a Sindy - digo, tentando disfarçar a ironia.

- Por que você não faz assim? Não esquece a Sindy e lembra de mim?

Dou risada. Não sei o que responder. Há algo que eu não contei ao Charlie e nem pretendo contar; eu me lembro dele. Quer dizer, eu não me lembro das coisas que passamos juntos ou das nossas conversas ou sei lá mais o que fizemos juntos. Mas... É complicado. Não sei se sei explicar. É como se algo dentro de mim conhecesse e confiasse cegamente no Charlie.

- As coisas virão com o tempo - respondo.

- Certo, certo... Cadê a sua mãe?

- Mercado - respondo.

- Ótimo. Vamos logo, antes que o Mike comece a buzinar.

- Ele está aí fora? - Charlie balança a cabeça. - Ah... - E agora? O que eu faço? Tento balancear os prós e os contras, mas percebo que não existem contras. - Tá, vamos logo antes que eu mude de ideia e resolva te denunciar por isso.

- Se você tem amor à sua vida, você não faria isso.

- Olha... - começo.

- É, eu sei - ele me interrompe. - Você faria.

- É.

Mike está sentado no banco de trás e eu me pergunto o porquê. Recebo a resposta assim que eu e Charlie entramos no carro.

- Isso não vai se repetir, ruivinha. Eu só tô fazendo isso pelo meu amigo que quer muito...

Como se tivesse sido acometido por um mal de Parkinson súbito, Charlie começa a buzinar feito um doido. Mike e eu olhamos para ele, as sobrancelhas erguidas, e tudo o que ele diz é:

- Tinha uma mosca.

Mas, quando me viro para a frente, percebo que ele lança um olhar furioso para o Mike, que solta uma risadinha sem vergonha.

...

Mike teve a capacidade mental de passar o endereço errado ao Charlie, o que significa que passamos bem mais de uma hora entrando e saindo por ruas cheias por uma gente relativamente esquisita.

- Você é retardado?! - fala Charlie, quando paramos num posto de gasolina para conversar sobre o exato ponto de localização.

- Eu... eu tô meio chapado, cara.

- Ah, claro! - Charlie fica sem paciência e sai do carro para reabastecer.

Me viro para trás, onde o Mike está deitado.

- Você não faz ideia de onde esse cara trabalha, né? - pergunto e ele ri.

- É, ruivinha.

- Então por que... esquece - abro a porta e saio do carro.

- Pra onde você vai, Tess? - Charlie me chama, mas não dou ouvido à ele. Vou até a loja de conveniência do posto e entro.

Há um homem barbudo e muito baixo do outro lado do balcão.

- Boa tarde - começo educadamente. - gostaria de obter uma informação.

- Que tipo de informação? - ele questiona.

Lanço um olhar rápido para fora e vejo que Mike está dentro do carro com a cara para fora da janela e o Charlie segura a mangueira do combustível, os dois olham na minha direção. Quase não piscam.

- Saber sobre um cara. Ele...

O homem levanta a mão e eu me calo.

- Um cara? - Pergunta, semicerrando os olhos. - onde você ouviu falar sobre esse tal cara?

- Hum... O amigo do meu amigo conhece ele. Bom, pelo menos eu acho que eles se conhecem.

- Qual o nome do amigo do seu amigo? - sua voz está cheia de desconfiança.

- Mike.

Ele arqueia as sobrancelhas e se permite até mesmo sorrir.

- Mike! Ha! Não acredito que eu estava quase pegando meu taco de baseball para a amiga do Mike!

- Não somos ami... Espera aí! O que?

Ele balança a cabeça e sai de trás do balcão. Usa botas e cinto de cowboy e, se ele não tivesse acabado de dizer que estava prestes a me espancar, eu daria risada.

- Cadê ele?

Saímos da loja e, assim que o Mike viu o cara, ele pulou para fora do carro pela janela mesmo.

- Mike! - o homem abre os braços.

- Healy! - e eles se abraçam.

Eu e Charlie observamos a cena de olhos arregalados. Quando eles finalmente se afastam, Charlie pergunta:

- Como diabos vocês se conhecem?

- É uma longa história... Longa história... - fala o tal de Healy.

- Não estamos com pressa - fala Charlie.

- Na verdade... - tento dizer, mas Charlie me lança um olhar que claramente significa cala a boca.

- Eu conheci o Healy ano passado, quando fiz minha primeira identidade falsa...

- Até hoje me lembro do nome que você usou. Paul McCartney - os dois começaram a rir e eu desconfio que o Healy também esteja chapado. - depois disso, eu me mudei e não dei o endereço aos meus antigos clientes, porque algum deles me denunciou.

- E como diabos você sabia onde ele estava? - Charlie torna a perguntar.

- Eu não sabia. Mas uma hora iríamos encontrá-lo. E encontramos graças à sua ruivinha.

- Quê?! - eu e Charlie exclamamos ai mesmo tempo. - ela não é minha - Charlie fala, meio desconcertado, e lança um olhar para mim. - né?

- Claro que não!... E vamos fazer logo antes que eu mude de ideia.

- É. Vamos logo.

- Por aqui - Healy nos guia até os fundos da loja de conveniências, onde há uma sala escura com o fundo branco.

Um por vez, tiramos nossas fotos, escolhemos nossos nomes falsos (Mike ficou outra vez com Paul McCartney; Charlie escolheu George Bennet e eu fiquei com Oliver Young), esperamos o Healy preparar tudo e finalmente assinamos.

- Espero que esse show seja realmente bom - digo, quando já estamos dentro do carro. Charlie olha para trás e ele e Mike explodem em risadas. - que foi? - pergunto, meio sem graça.

- Esperar que o show dos Smiths seja realmente bom é a mesma coisa que esperar que a neve seja realmente gelada - diz Mike e o Charlie liga o carro, enxugando uma lágrima que lhe escorre o rosto.


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