Capítulo 3
Já faziam dois dias que eu vivia em Flós, era inacreditável como tudo ali era familiar e me fazia tão bem. Não sentia falta de absolutamente nada da minha antiga casa, nem mesmo dos objetos pessoais ou da facilidade da eletricidade.
No reino, muitas pessoas gostavam de mim, me tratavam como algo bom, com carinho e eu me sentia em casa. Não vivia mais solitária.
Olhei-me dos pés à cabeça pelo reflexo no espelho e admirei o quanto encontrava-me diferente de quando cheguei. Não usava mais as roupas do outro mundo, como calça jeans e blusa de moletom, eu usava botas pretas sem saltos, calça da mesma cor, usada por dentro das botas e na parte do tronco vestia uma linda blusa de mangas cumpridas, justa no corpo e que deixava o meu colo à mostra, era verde com dourado e os fios da costura pareciam feitos de ouro, o que fazia com que destacasse ainda mais a minha pele e meus olhos cor de mel.
Sorri ao encarar meu reflexo, satisfeita por não ser mais a Vida de antes. Ergui meu olhar e admirei meu cabelo cacheado que caía brilhoso e comprido sobre minhas costas, enfeitado por uma tiara dourada que havia sido colocada em minha cabeça por uma das mulheres que cuidavam de mim.
Muitas mulheres viviam a minha volta, o tempo todo, e sempre estavam dispostas a fazer o que eu as pedisse, mesmo que nunca pedisse nada.
Vez ou outra as ouvi falando algumas palavras em outra língua e fiquei curiosa para conhecer aquele idioma.
Não me sentia como a rainha que eles diziam, para mim eu ainda era a mesma Vida de sempre, só que mais feliz, porque naquele momento tinha amigos e pessoas com quem conversar.
Ainda sentia-me um pouco tímida em interagir, mas apesar disso puxava assunto com quem estava a minha volta, na intenção de que continuassem gostando de mim e para saber mais sobre cada canto do reino.
Cresci apenas com duas pessoas ao meu redor e ambas não eram tagarelas, o que contribuiu ainda mais para o meu jeito introvertido, no entanto, ali eu era insistentemente incentivada a falar.
Na porta do meu quarto sempre ficava um guerreiro disposto a enfrentar qualquer mal que aparecesse para me proteger e Bravo, que comecei a chamar de Iran, sempre passava por ali à espreita e tomando conta de tudo, apesar de quase não conversarmos desde o dia que acordei sozinha no quarto.
Tentei por diversas vezes uma interação maior com Iran, mas meu ex-lobo de estimação em sua forma humana era realmente bravo e arredio, diferente do que era no meu antigo mundo, quando ele passava a maior parte do tempo a minha volta e dormindo.
Em Flós, Bravo parecia até mesmo fugir de mim, desviava o olhar sempre que me encontrava e algumas vezes até tive a impressão de que mudava o caminho para que não precisasse falar comigo.
Eu sentia falta do meu antigo Bravo e tinha dificuldade de assimilar que ele e Iran eram a mesma pessoa, mas sabia que apesar do pouco contato, eu podia contar com a sua ajuda.
Nas poucas vezes que ficamos a sós o chamei pelo nome que lhe dei, tentando com isso uma intimidade que estava difícil de conseguirmos um com o outro, porém, foi em vão e passei a chamá-lo apenas de Iran mesmo e ele me chamava de majestade, por mais que eu insistisse para me chamar apenas de Vida.
Em Flós o nome Bravo caía perfeitamente bem sobre ele, já que Iran em sua forma humana era sério e carrancudo na maior parte do tempo e todos pareciam temê-lo por ser o guerreiro mais importante de Flós.
Ninguém gostava muito de falar do passado, pois a maioria ali havia perdido seus familiares para a fome, poucas famílias ainda eram completas, mas com isso o reino acabou se tornando uma grande família.
Tentei sondar sobre a história de vida do Iran, mas ninguém me contou mais do que sobre sua coragem, beleza e o quanto ele era disputado pelas moças para um possível casamento.
Na manhã do meu segundo dia em Flós, mais uma vez saí do meu quarto e caminhei pelos corredores do castelo acompanhada por Mica, uma espécie de dama de companhia, que tinha sido designada por uma das mulheres mais velha a me ajudar no que precisasse e que com poucos dias ao meu lado, se tornou uma amiga.
Ela, assim como as muitas mulheres que me serviam com carinho, morava no castelo e cuidava das costuras, dos tecidos e das trocas de tudo. Por causa do muito tempo de fome e da falta de um rei e um rainha em Flós, muitas mulheres passaram a viver ali, ajudando no que podiam e assim evitando morrer de fome.
Por Mica, consegui saber muito do passado antes da minha chegada, contou-me sobre os dias de fome e tormento, coisas que fizeram meu corpo se arrepiar e até mesmo me senti culpada por viver exilada por tantos anos, enquanto o povo sofria daquela maneira.
Ao dizer isso a minha nova amiga, ela me consolou dizendo que foi só eu pisar de novo no reino que a riqueza e abundância voltaram comigo.
Em uma das nossas andanças, pedi que ela me levasse ao túmulo dos meus pais biológicos, onde depositei flores e agradeci por terem me gerado.
Mica era fácil de gostar e me afeiçoei a ela logo de cara, de modo que me fez falar mais em pouco tempo de amizade, do que falei na minha vida toda. Seu olhar transmitia serenidade, tinha o rosto com sardas e os cabelos tão loiros que até brilhavam, era muito falante e a alegria em pessoa, além de muito bonita.
Inicialmente pensei que ela não tinha mais que dezoito anos, mas depois me contou ter dezenove. O que faltava em mim em comunicação, sobrava nela e talvez foi isso que nos completou.
Depois que saímos do quarto, enquanto andávamos ainda sem destino certo e com um sorriso animado, perguntei a minha nova amiga:
— Que tipo de língua é aquela que, às vezes, vocês usam para dizer palavras aleatórias?
Mica sorriu.
— É a língua dos ancestrais. Todos em Flós aprendemos as duas línguas desde pequenos.
— Vou querer aprender.
— Posso te ensinar quando tivermos tempo.
Assenti.
— Por onde andaremos hoje, Rainha?
— Já disse que não precisa me chamar de rainha, me chama de Vida.
Sempre me olhava com ultraje quando a pedia para me chamar pelo nome.
— Não acho que seja adequado.
— Somos amigas, Mica. — Me olhou como se eu tivesse dito a coisa mais maravilhosa do mundo.
— Eu, amiga da rainha? Nem acredito nisso! Nunca nem tinha visto uma rainha antes de você. — Ri.
— Bom, nem eu. — Riu e eu perguntei: — Mica, você sabe onde é a passagem que me trouxe do outro mundo para cá?
— Sim, é na fronteira de Flós.
— Todos aqui sabem?
— Sim, mas ninguém tem coragem de entrar nela.
Chegamos ao salão principal do castelo, que era amplo, com suas paredes feitas de pedras, como as do quarto em que eu estava alojada, e o chão era de um piso claro e brilhoso, onde havia o desenho de uma flor de lótus nas cores preta e lilás, que Mica me contou ser o símbolo do nosso povo.
Eu já me referia a Flós como meu povo, realmente me sentia em casa e tive facilidade em me assumir rainha.
— Bom dia — cumprimentei os guardas ao passar por eles. Andavam pelo castelo a todo momento, e em resposta paravam e me faziam reverência.
Com as reverências ainda não havia me acostumado.
Atravessei a grande porta principal e admirei o espaçoso pátio com várias árvores e flores que ficava em frente a porta. O céu de Flós parecia mágico e sempre exibia nuances com cores diversas.
Varri o pátio com o olhar e não demorei a avistar Iran supervisionando o treinamento de várias crianças entre meninas e meninos, que usavam lanças e faziam movimentos rápidos com elas.
De longe ele me olhou e lançou um meneio de cabeça discreto, que parecia mais como uma reverência. E aquele seu jeito sisudo, diferente do meu primeiro dia ali, me incomodava.
Se mantinha afastado e ao mesmo tempo por perto e eu ainda tinha dificuldade de saber se ele gostava ou não de mim como antes. Sentia-me confusa e a pergunta se ele só ficou comigo no outro mundo por ser obrigado a isso martelava em minha mente. Além de confusa pela falta que me causava e com a estranheza que sua presença deixava.
— Mesmo em meio a muita fome, tristeza e dias cinzas, ainda tínhamos esperança de dias melhores, de construir família, amor... e Iran, antes de ir para o mundo paralelo te proteger, sempre foi um guerreiro muito disputado pelas solteiras — Mica disse olhando para mim e notando que eu o encarava.
— Você já me disse isso
Mica sorriu.
— Repito, porque ainda tem moças que sonham com isso. Principalmente a Ravina. Sobre ela não te contei.
— Ravina?
— Sim, eles meio que tinham um namoro antes de Iran seguir para o mundo paralelo para te proteger.
— Namoro?
— Bem, não exatamente, mas Iran dava a sua parte da comida para ela e ambos sempre eram vistos juntos. Ele a ensinou a usar a espada, porque ela não tem pai.
— E onde está Ravina?
— Ela não mora no castelo, mora com a tia nas redondezas dos muros do castelo. Quase não a vi mais depois que Iran partiu para ser seu guardião. Depois que ele voltou também não os vi juntos. Talvez tenham se desgostado por ficarem mais de um ano sem se verem. Sei que ele não a procurou e as moças que trabalham no castelo estão muito interessadas nele.
O observei mais um pouco e entendi o motivo, ele era forte e muito bonito, naquele momento usava uma espécie de uniforme na cor azul marinho que destacava ainda mais seus olhos claros, além de ser sempre educado e solícito com todos, mesmo em meio a sua carranca de guerreiro.
— Imagino que sim. — Encarei-o e pensei se ele não estava me tratando com indiferença em Flós por me culpar por separá-lo da tal Ravina, mas logo deixei essa hipótese de lado ao pensar que ele não a procurou após voltar.
— Posso espalhar o boato de que você está interessada nele.
— Está louca! Por que faria isso?
Deu de ombros.
— Imaginei que estivesse, pelo modo como estava o admirando.
— Não estava o admirando, só... olhando-o enquanto você contava a história. — Olhei novamente para ele.
— Sei... — disse desconfiada e mudou de assunto: — Vida, no outro mundo... Como era?
Tirei meus olhos do Iran e encarei Mica.
— Bom, não sei como é para as pessoas normais, no meu caso era solitário e triste, cinza e sem graça. Não muito diferente de vocês, com o bônus de que eu não passava fome.
— Não passar fome é bom. Você namorou alguém?
Encarei Mica para entender a sua pergunta, mas logo minhas bochechas ficaram quentes e respondi, envergonhada:
— Não, na verdade, não entendo muito sobre namoro, lá eu não tinha amigos nem vizinhos ou sequer alguém que não fosse meus pais... os guerreiros... para conversar, depois que ambos se foram, eu tinha apenas Bravo... digo o Iran.
Eu sabia o que era um namoro, apesar de meus pais adotivos nunca terem me contado nada a respeito, eu lia livros e assistia novelas, filmes e programas de TV no único canal que funcionava na TV da casa longínqua em que eu morava.
Sabia um pouco do que acontecia entre um homem e uma mulher, nunca vivenciei nada parecido, nem sequer um beijo ou um aperto de mão, mas sabia.
— Eu queria conhecer seu mundo.
— Meu mundo é Flós e acredite, aqui é muito melhor. — Ela sorriu feliz.
Para mudar de assunto e me afastar de Iran que claramente parecia desconfortável com minha presença, incentivei Mica a sairmos dos muros do castelo e continuarmos andando pelas ruas de Flós, onde ela me mostrou tudo e me contou a história do que conhecia.
Observei as construções que eram de casas umas ao lado das outras e todas iguais, grandes construções com telhas de barro e paredes de pedras, a única coisa que as diferenciava eram as flores que cada morador enfeitava sua casa. Já as ruas eram todas largas e de paralelepípedo.
— Está vendo a igualdade delas? — Mica apontou para as casas a nossa frente, enquanto andávamos devagar e eu assenti. — Nosso reino sempre teve a igualdade como lema, por isso todos têm moradias iguais e cada um contribui de um modo para o funcionamento de tudo. A única casa diferente é o castelo, mas apenas para que a hierarquia funcione e mostre quem é o líder do nosso reino.
— Que interessante!
— Antes de você chegar, quando aqui era tudo cinza e quase sem vida, o castelo sempre esteve aberto como agora, para que dividíssemos o pouco que tínhamos com todas as famílias.
— Que bonito.
— Sim. Tivemos um ótimo rei e rainha que cuidaram de tudo em vida, depois o pai do Valery, o Valery e agora temos você, nossa rainha.
Senti o peso do comentário.
— Não sei se estou à altura.
— Tenho certeza que está e o guardião do trono terá orgulho de passá-lo a você.
— Ainda não conheci o guardião.
— Valery é o nome dele. Um ótimo homem. Você ainda não o conheceu, porque no dia que soubemos do seu retorno, imediatamente ele saiu para uma ronda nos limites do reino e assim resguardar a sua segurança. Tenho certeza que no mesmo momento em que voltar, a primeira coisa que fará será uma visita.
— Então ele é uma boa pessoa?
— Sim, muito boa — Mica falou e notei seus olhos brilharem. — Ele herdou este cargo quando o pai morreu, senhor Mailon, que era braço direito do rei e também ótima pessoa. Tivemos muitas perdas importantes no reino. — Mica ficou triste como se lembrasse de momentos difíceis, mas logo se recuperou e completou: — Valery desde a partida do pai cumpriu suas obrigações com destreza e cuidou bem do castelo até você voltar. Todos gostam dele aqui.
Enquanto Mica e eu andávamos pelas estradas de pedra do reino, observei que todos eram bem magros e quando apontei isso para ela, me contou que naquele momento estavam muito bem e a cada dia ganhavam peso e um pouco de cor, isso desde que voltei e a comida, como mágica, se tornou abundante.
— Você não faz ideia de como era a nossa aparência nos tempos cinzas. — Um calafrio percorreu seu corpo. — Espero nunca mais voltar a vivê-lo. — Os únicos que eram um pouco mais fortes eram os guerreiros e a guarda, mas por causa da nossa proteção em um possível ataque.
— Ataque?
— Sim, Cinere não pode entrar em Flós, mas... nunca se sabe.
Mudei de assunto para tirar de seu rosto aquele ar preocupado e continuamos andando por Flós, enquanto eu a perguntava tudo sobre o que via por ali.
— E vocês tem festas, bailes ou algo assim?
— A Mariev, que trabalha no castelo muito antes de tudo isso começar, conta que as festas eram uma beleza e que o que fizemos para manter as tradições vivas, não chega nem perto do que era antes da maldição. Ontem ela me disse que está ansiosa para a primeira festa de verdade do reino.
Sorri.
— Nisso somos iguais, também nunca fui a uma festa.
— As casas próximas do castelo são sempre as responsáveis pela animação. As meninas aprendem a dançar logo que aprendem a andar. É bonito de ver. Isso aconteceu mesmo em meio a fome. Os mais velhos dizem que podemos perder tudo, menos nossas raízes e tradições.
— Que bonito.
Quanto mais andávamos, mais eu me apaixonava por minha nova casa e por meu povo, que eram extremamente carinhosos comigo e deixavam muito clara a gratidão que tinham por eu estar de volta.
A cada passo Mica me dava mais informações sobre tudo e eu prestava atenção em cada palavra, queria entender bem como era Flós.
— Está vendo aquela construção? É onde ficam os cavalos, que ir até lá? —perguntou animada.
— Vamos. Amo cavalos.
Andamos mais alguns metros, até que chegamos ao que parecia uma espécie de estábulo. Um espaço grande, todo feito em madeira e pintado de branco, dentro dele tinham diversas baias, que em cada uma estava alojado um lindo cavalo e todos eram muito grandes.
— Se você quiser podemos dar uma volta, se não estiver cansada.
— Cansada nada, adoraria andar pelos arredores.
— Você vai ver como Flós é linda.
— Ainda mais do que já vi?
— Ainda mais.
Mica chamou um senhor simpático que cuidava dos animais, ele os selou para nós e assim que estavam prontos para serem montados, saímos a galope por entre as ruas do reino.
Passamos por diversos vilarejos pelos arredores do castelo e Mica foi me explicando o que cada um era especialista em fazer para o funcionamento do reino. Tinha o que era responsável pela agricultura, outro pelas frutas, outro pela confecção de roupas e daí por diante. Os vilarejos levavam os nomes de suas especialidades.
Mica me explicou que durante os anos de cinzas tudo ficou parado, pois nada que se plantasse se colhia e o povo fazia o menor esforço possível para que assim evitasse gastar o pouco de energia que tinham e consumir menos recursos que eram disponíveis para sobrevivência de todos.
Soube que em uma estufa dentro do castelo era produzido alguns alimentos que sempre foi dividido entre o povo, em pouca quantidade apenas o suficiente para que os mantivessem bem e vivos.
Depois de visitarmos vários vilarejos, eu já me sentia um pouco cansada e com fome, então pedi a Mica para que voltássemos para o castelo:
— Tem certeza, Vida?
— Mica, estou começando a ficar com fome.
— Então estamos no lugar certo. Está vendo aquele morro? — perguntou apontando para um pequeno monte a uns cem metros a nossa frente, e eu assenti. — Logo atrás dele fica um vilarejo, ao lado do rio e que divide a fronteira entre Cinere e Flós. Esse vilarejo faz o melhor pão de todo o reino e é conhecido como vilarejo do Trigo.
— Ah, então vamos até eles. — Me animei e Mica riu.
Cavalgamos depressa com os nossos cabelos ao vento e sorrindo, até a brisa ali me parecia mais acolhedora e fresca.
Eu sorria feliz, Mica me acompanhava e assim que chegamos ao topo do morro, nosso sorriso sumiu. Para a nossa surpresa, uma fumaça espessa saía do vilarejo logo abaixo e a poucos metros de nós.
Olhei para a Mica e vi seu rosto se transformar em algo sombrio e o medo era evidente nele, mas ainda assim bateu com as pernas na barriga do cavalo para descer até lá e eu a segui.
A galope descemos o pequeno monte e chegamos a uma parte plana, onde dava início a rua do vilarejo, no entanto, antes que pisássemos na primeira pedra dela, os cavalos empinaram ficando apenas nas patas traseiras e relincharam alto. Por pouco não nos derrubaram.
Notamos que a nossa frente tinha uma espécie de barreira invisível que não permitia que entrássemos no vilarejo.
Mica cavalgou mais à frente, rente a barreira invisível, e voltou com uma expressão muito preocupada e eu a acompanhava, apesar de não saber nada do que acontecia.
— Não, não, não... de novo não — repetia freneticamente e com seu rosto tão apavorado quanto alguém que estava vendo a morte.
— O que está acontecendo, Mica?
Ela andava com o cavalo de um lado para o outro, ainda perto da barreira e de onde estávamos conseguíamos apenas observar o cenário assustador que mudava por completo bem a nossa frente.
Do campo verde com árvores vistosas e céu azul não restava nada, as casas estavam cobertas com uma espécie de fuligem e uma névoa branca pairava pelo lugar o deixando sombrio e com a aparência morta.
Mica estava com o semblante em pânico, continuava andando com o cavalo de um lado para o outro, como se tentasse achar um jeito de entrar, mas era em vão.
— Mica, me fala o que está acontecendo — pedi preocupada.
— Eu não sei. — Seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Eu não sei.
Foi então que um homem muito magro, com feições cansadas e com dificuldade de andar começou a aparecer em meio a fumaça e seguir em nossa direção. O avaliei e era pele e osso, estava descalço, vestia trapos e seus ossos eram tão aparentes que mais parecia um esqueleto.
Mica levou a mão a boca contendo um soluço, descemos dos nossos cavalos como que para ampará-lo, mas a barreira não deixava, só podíamos escutá-lo.
— Minha Rainha — falou com a voz arrastada e com muita dificuldade.
— O que está acontecendo? — Mica perguntou, agoniada.
— A maldição... ela voltou e está muito, muito pior.
— Não! — Mica gritou. — Como? Por quê? A Rainha está aqui, a maldição foi quebrada.
— Os Cineres... eles estiveram aqui, querem tomar Flós e... — O homem parava para tentar respirar. — Transformar tudo em cinzas. A maldição não foi quebrada. O mais importante era o retorno da de pele como a noite. Seu retorno teve um momento de pausa na maldição, mas... tem mais...
— Mais? Nunca soubemos de mais.
— Os cineres disseram algo sobre as ramificações...
Ouvimos um uivo de lobo ao longe, que fez meu corpo se arrepiar.
— Eles não podem entrar em Flós. Como conseguiram entrar em Trigo? — Mica perguntou.
— Talvez por sermos os mais próximos deles. Mas vão embora. — Olhou para Mica. — Peça para que protejam a rainha. O mal está à espreita.
— E vocês? — perguntei.
— Ainda conseguimos nos manter vivos, mas não sei por quanto tempo.
Novamente ouvimos um uivo de lobo e dessa vez parecia mais perto.
— Procurem um ancião de Flós, um mago ou alguém que possa reviver a maldição e assim desvendar o que falta para que fiquemos livre desse mal. — O homem parecia ter tanta dificuldade para falar, como se gastasse suas últimas forças e eu tinha a impressão de que ele desmaiaria a qualquer momento.
O uivo voltou a preencher nossos ouvidos e ainda mais perto, quando olhamos para o lado do qual achávamos que era de onde o barulho vinha, uma nuvem cinza se aproximava e o homem disse alto, com o pouco de força que tinha:
— Corram! Procurem um jeito de nos ajudar.
Mica subiu em seu cavalo e também montei novamente no meu, depois com um aceno rápido a certifiquei de que era para cavalgarmos depressa para o mais longe possível dali.
Começamos a galopar, mas logo no início, em meio a uma névoa densa que se aproximava, o meu cavalo se assustou, empinou e caí de cima dele batendo com a lateral do corpo no chão e sentindo o impacto me atingir.
Mesmo com a dor pulsando, forcei-me a levantar, porque sabia que não podia ficar ali por muito mais tempo, mas para o meu desespero quando olhei em volta vi meu animal sair em disparada, me deixando para trás e Mica, provavelmente por causa da névoa, não notou o que aconteceu.
Levantei-me, meio mancando e comecei a correr com a maior velocidade que meu corpo e minhas pernas aguentavam. Senti meus pulmões queimarem e pedirem por uma pausa, mas eu estava com muito medo, meu coração batia acelerado e carregava o pressentimento que se eu parasse, seria o fim.
Gritei por Mica pedindo que voltasse para me buscar, mas a névoa era cada vez mais densa e eu mal sabia se estava correndo para o lado certo.
Ouvi o uivo alto e apavorante muito perto e tive a sensação de que a qualquer momento eu seria devorada por um lobo, então me mantive em movimento, mesmo sem saber para qual lado seguir.
Corri desesperada e sem noção de por quanto tempo, talvez apenas segundos, e novamente o barulho do uivo se fez presente muito perto, tentei correr ainda mais, só que meu corpo não obedecia.
Em um momento em que o desespero tomou conta de mim, senti uma presença forte se aproximar e vencida por minhas pernas cansadas, tropecei em uma raiz e caí ficando à mercê do pior.
Tentei me arrastar, já pensando que seria devorada por um lobo ou pelo que fosse que estava em meu encalço, olhei em volta aflita e à procura de algo que eu pudesse usar como arma, não achei nada e tentei levantar ao ouvir passadas pesadas.
Relembrei o horror e desespero que havia vivido há poucos dias quando cheguei em Flós, meu coração saltitava no peito e de tanto pavor eu quase não respirava.
Foi então que as passadas chegaram ao meu lado, olhei para cima e vi um grande cavalo branco, que bruscamente parou perto de mim.
Mesmo com dificuldade pela névoa, aliviada percebi quem montava o animal e com sua voz grossa, ouvi Iran pedir:
— Me dê sua mão. — Esticou o braço em minha direção e depressa venci a dor, levantei e aceitei a sua oferta.
Iran juntou seu antebraço ao meu e como se eu fosse muito leve, me puxou para cima do seu cavalo, colocou-me sentada de lado na sua frente e entre seus braços.
Segurava as rédeas com uma das mãos e com a outra me prensava de encontro ao seu corpo, como que me protegendo do que quer que fosse que pudesse me fazer mal. Eu sentia a sua respiração ofegante próximo do meu rosto e pescoço e isso, apesar do medo que eu sentia, fazia com que me sentisse segura e até me acalmava.
Perguntei-me como Iran sabia que precisávamos dele, como apareceu para nos salvar tão depressa e me senti aliviada por tê-lo por perto.
Depois de alguns poucos minutos cavalgando muito rápido em meio a névoa, ela foi se dissipando e enfim chegamos a um campo verde, onde avistei Mica com um semblante preocupado e andando impaciente de um lado para o outro em cima do seu cavalo.
— Rainha! — Cavalgou em nossa direção. — Está bem? Me perdoa, eu não te achei, tentei voltar, mas a névoa me deixou perdida, foi quando encontrei com Iran e pedi que ele a achasse.
— Você não tem culpa de nada, Mica — acalmei-a.
— Me desculpa. — Seus olhos lacrimejaram.
— Não fique assim, está tudo bem.
— Vamos para o castelo que ainda estamos muito vulneráveis aqui — Iran disse sisudo, sem nos deixar dizer mais nada e começou a cavalgar muito rápido, sendo acompanhado de perto por Mica.
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