Capítulo 14
Rebeca
― Aqui está a remessa de hoje, Rebeca ― Michele me entrega a pasta preta ainda na minúscula antessala do escritório de Don Carlo e vira as costas.
― Espere! ― diz e eu abro a porta do escritório. ― Espere eu contar o dinheiro e devolver a mala.
Ele abre um sorriso cínico.
― O chefe mandou eu não a incomodar ― diz como se houvesse verdade naquilo.
― Sua presença já me incomoda. Agora senta e espera eu contar!
E como quem estava se divertindo, ele se senta diante de mim e me espera passar cada maço de notas na máquina contadora de cédulas. O processo não deveria ser demorado se não fosse a companhia desagradável de Michele diante de mim.
Como eu imaginava.
― Está faltando duzentos mil. ― Falo como quem perdeu dez reais, mas por dentro, estou desesperada sem saber como pôr esse dinheiro faltante. Não posso sequer pedir ajuda.
― Tem certeza? ― Michele se levanta e estende a mão esperando a maleta. ― Acho que a máquina está enganada.
A biles chega a subir do ódio.
― Don não vai gostar de saber.
― Saber o quê? ― E ri virando as costas e saindo do escritório, deixando-me sem reação.
Estou perdida.
Mil coisas passam em minha cabeça. Chego a cogitar pegar esse dinheiro e sumir, mas os homens que fazem a segurança ao redor da casa jamais permitiriam minha saída. Aliás, eu não tenho a permissão de sair para canto nenhum.
Calma, Rebeca.
Abro o cofre que está completamente vazio e guardo o dinheiro.
Rebeca, onde ele guardou o dinheiro que estava aqui?
Ontem a noite eu estive no quarto do casal, mas a porta estava trancada. O imbecil fecha o quarto mesmo em sua própria casa.
Pense, Rebeca. Tem que ter uma saída. Você é mais esperta que esse idiota do Michele.
Raiva. Sou a porra da governanta da casa, a secretária, a puta dele e sequer tenho direito de entrar em todos os cômodos, e olha que eu já entrei naquele quarto várias vezes.
O que você é mesmo, Rebeca?
É isso! Eu sou a governanta dessa casa.
Entro na cozinha com a autoridade que conquistei por transar com o chefe, e que não é novidade alguma para ninguém ali e chamo a única empregada que tem direito a arrumar o quarto dos patrões.
― Ingrid! ― A chamo e ela obedece mesmo que não goste. Na verdade, a maioria das empregadas não gosta de mim por causa da forma como eu conquistei os privilégios (como se eu tivesse algo para me orgulhar) que eu tenho hoje. Ou são burras ou não enxergam o óbvio.
― Senhorita Monteiro, em que posso ajudá-la? ― Contudo todas elas me respeitam.
― Quero que você abra o quarto dos patrões para circular o ar, tirar o cheiro de mofo.
Ela nega consciente que mofo é algo que não tem nesse lugar.
― Aliás, deixe tudo aberto no segundo andar. ― Completo antes de ela fazer qualquer questionamento. ― Quero todas as portas e janelas abertas. Já deixei até o escritório escancarado ― lugar que só eu tenho permissão de arrumar o que tira dela o receio de me obedecer. ― Como o quarto dos patrões é o maior cômodo, preciso dele todo aberto para que o vento circule.
― Senhorita, o patrão não gosta de que o quarto fique aberto.
― Ele não gosta que pessoas possam adentrar no quarto sem serem convidadas, tanto que quando eles estão aqui, a porta fica sempre aberta. ― Ela assente. ― Só que só tem você, eu, a cozinheira e mais uma ajudante de limpeza. Vamos aproveitar que somos só nós e deixar tudo escancarado. Essa casa precisa de boas vibrações, ar puro e limpo. ― Ela sorri e mesmo que hesite a princípio, ela vai ao quarto buscar a chave e fazer o que eu mando.
Claro que não posso dar bandeira e por isso quando eu não estou na cozinha ajudando com os afazeres da casa, eu vou para a piscina e academia, afinal, o chefe não está aqui e eu não preciso estar à disposição dele. Somente quando foi no final da tarde que eu fui com ela para fechar todas as portas, e disfarçadamente, eu destravo a tranca da porta da varanda do quarto dos patrões.
***
― Canalha, filho da puta ― xingo Michele assim que a máquina termina de contar a segunda remessa do dinheiro.
Faltam duzentos mil.
― Não adianta me estressar, Rebeca. O chefe pediu para que eu te tratasse como uma lady.
― Vá se foder, Michele.
― Que linguajar baixo para uma mulher tão bonita. ― Ele me olha de lado ― Pode até ser bonita, nem por isso menos puta. É um linguajar bem propício para o tipinho que é.
Jogo a maleta com raiva em cima dele e ele pega sorrindo, cantando vitória.
Tenho uma ideia que pretendo pôr em execução hoje a noite, mas e se eu não conseguir? Como provar que eu sou inocente?
"Não ache que sua palavra vale mais do que a de Michele." Aquela cadela me advertiu, e eu até cogitei isso, só não esperava que ele roubasse duzentos por dia.
Eu não dormi esperando que todos se aquietassem, os amantes ocultos se encontrassem, os vigilantes relaxassem. Até os animais noturnos precisavam silenciar para que eu tivesse coragem de sair.
Medo.
Vesti uma roupa preta de academia, peguei uma mochila e saí tateando no escuro. Não queria chamar qualquer atenção. Eu deveria ser a única dentro de casa, e por isso sequer liguei o alarme. Os únicos seguranças com permissão para perambular pela casa estão fora com os chefes.
Subi ao terceiro andar onde ficava um enorme salão geralmente usado para festas, e depois de olhar pela janela, sabia que de um jeito ou de outro eu morreria.
Ao menos eu lutaria como tenho feito todo os dias.
Amarrei o lençol em uma pilastra e com cuidado e morrendo de medo, desci por ele até chegar à varanda do quarto do meu chefe.
Meu coração doía do tanto que batia forte. Estava quase enfartando.
Rapidamente e em silêncio, caminhei até o enorme closet. Não podia ligar a luz do quarto para não chamar a atenção, somente o visor do celular e mesmo assim com pouco brilho. Minha sorte é que o cofre ficava ali, atrás do espelho.
Eu tinha quase certeza da combinação do cofre.
Quase. Porque eu, Rebeca Monteiro, azarada como sou, não teria a capacidade de primeira de adivinhar.
Merda!
Desespero começa a tomar meu ser.
Tentei mais uma combinação.
Nada.
Don Carlo e Caterina são duas pessoas que não passam muitos dias fora de casa. Acho que do tempo que eu tenho morado aqui, essa é a primeira vez que eles viajam juntos para passar cinco dias fora. E para o dinheiro que eles têm, férias deveriam ser de um mês longe de tudo e todos. Por isso nunca tive uma chance de entrar no quarto deles e explorá-lo. Conheço tudo porque observo cada detalhe todas as vezes que dona Caterina me chama para ajudá-la.
Tento mais uma vez a data de aniversário, casamento, formatura, filhos, alterando a ordem .... nada.
Diante de meu desespero, tentando reformular minhas possibilidades, começo a observar algumas fotos no pequeno aparador que eles têm no quarto até me deparar com uma de Don Carlo sorrindo, verdadeiramente feliz como se aquilo fosse algo comum.
― Que você esconde, filho da puta?
Pego o porta-retratos e imagino uma infinidade de possiblidades, milhões de motivos para tamanha felicidade.
Ele era jovem demais para casamento. Casamento? As fotos do casamento deles são horríveis.
Nascimento dos filhos ainda pior. A da formatura ele estava bem mais magro e tampouco sorria.
Só podia ser algo relacionado à máfia, só que pelo que eu soube, ele não era tão jovem, muito menos nasceu em berço de alguma família vinculada a Casamonica. Don Carlo conquistou a confiança de alguém grande.
Abro o suporte do porta-retratos que a mantém de pé e outra foto aparece atrás daquela. Ambas, pelo jeito, foram tiradas no mesmo dia já que ele está com a mesma roupa, só que a foto oculta é dele com um homem um pouco mais velho e não o reconheço.
Não há qualquer foto daquele estranho nem no casamento, nem nas festas de aniversários dos filhos. E pensar na possibilidade de Don Carlo ser amante daquele homem é improvável. Don Carlo chega a ser homofóbico.
― O que é isso? ― ligo a lanterna para ver melhor o que tem escrito na parte de trás da foto.
Io e Pietro – iniziazione – Aprile/86, 22
Iniciação?
Isso! A data que ele foi incorporado à organização.
Levanto-me de supetão e coloco a data.
Nada!
Foi então que eu lembrei que tanto a senha do computador quanto do cofre, o ano vem primeiro, seguido do mês e dia.
Touché. Ele se abre como se fosse um enorme sorriso.
O cofre era bem maior que o outro e estava recheado de euros, dólares e até algumas barras de ouro.
Puta que pariu!
E pelo que eu saiba, aquilo era só o que ele mantinha em casa para uma eventualidade. Depois ele levava para Deus sabe onde.
Com cuidado, retiro primeiro as várias pastas diante do dinheiro para não desarrumar e me fazer perder mais tempo. Eu tinha que sair antes de amanhecer para não correr o risco de ser pega. Acostumada com os maços de dinheiro, eu retiro o que deduzo ser o que preciso, e percebo que a pilha baixou consideravelmente.
É um milhão e oitocentos, Rebeca, não mil e oitocentos. Acha mesmo que passaria despercebido?
Inspiro e expiro profundamente para pensar no que fazer. A pior parte eu já fiz que foi entrar no quarto.
Pense, Rebeca. O que você poderia colocar ali para disfarçar?
Abro a porta do banheiro procurando algo, uma luz, qualquer coisa para eu enganar.
Caixa de absorvente íntimo para o dia a dia!
Caralho... vai ter que servir.
Ponho embaixo da pilha de dinheiro e com aquele monte de papeis em frente, posso escondê-lo.
Pilha de papeis!
Abro a primeira pasta e vejo que uma série de documentos, alguns até carimbados com a palavra "executado".
Minhas mãos tremem.
Pego uma resma de papel e substituo o conteúdo de cada pasta por folhas em branco... e para cada pilha de papel, eu intercalo com uma folha em branco para quando eu devolver, não pôr nenhum fora de ordem. Não que eu pretenda ficar com isso muito tempo, mas vai que eles voltam antes e o desgraçado abre o cofre.
Depois de deixar tudo em ordem como estava, eu volto. Claro que a dificuldade é infinitamente maior já que para descer, todo santo ajuda.
Obrigada, Miguel, por ter me treinado e me feito forte.
Volto para meu quarto e qual é dormir?
Vou até o escritório do chefe, ligo o computador dele, e para cada arquivo que abro, renomeio antes para alguma receita culinária. Don Carlo não é um especialista, mas não posso sair apagando vestígios do que eu fiz, então, foda-se se ficar registrado que eu abri a receita caseira de docinhos da vovó. Melhor isso que arquivos com nome de fichas de fulano_de_tal, dossiê, relatórios.
Copio tudo no meu HD com meus arquivos pessoais. São minhas "receitas" que eu me utilizo de vez em quando para satisfazer o prazer dos filhos deles de comer doces.
Eu passei o resto da noite e a manhã inteira copiando os arquivos. Muitos documentos eu escaneei desesperada com o conteúdo.
Era tanta coisa ilegal, errada, pareceres absurdos, provas incontestáveis que eu me perguntei porque eu não joguei toda aquela merda no ventilador e delatei para a polícia.
Até do casal Giancarlo e Francesca, pais de Matteo, eu tinha provas de suas picaretagens, ou melhor, assassinato.
Calma, Rebeca. Ponha em ordem cada coisa. Eles controlam a polícia e se você enviar isso para a pessoa errada, você se fode.
Naquele mesmo dia eu recebi a encomenda que havia feito. E no final da tarde, o papel de alguém desesperada pelo roubo de mais duzentos mil nunca foi tão falso.
Eu agora tinha o trunfo, só precisava ser certeira.
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