Compatíveis
Não me lembro quando a fagulha dessa chama se acendeu. Pouco me lembro do momento em que nós nos conhecemos, que roupa usávamos e sobre o que conversamos, mas lembro-me do seu olhar e do sentimento que nasceu e cresceu dentro de mim ao longo do tempo e foi retribuído.
Nós sempre nos entendemos. Éramos além de amigos. Pensávamos e supríamos as necessidades um do outro. Até mesmo nossas discussões não duravam muito, pois sempre resolvíamos antes de fechar os olhos na calada da noite.
Éramos tão felizes e não sabíamos.
Tão compatíveis e ao mesmo tempo incompatíveis.
Contrárias com o que desejamos sentir.
E Impossível.
A doença bateu na nossa porta e entrou sem ser convidada, destruindo nossos sonhos e a nossa felicidade. A cada dia você se sentia mais exausto e fraco. Tinha dificuldade de respirar e muitas vezes sentia-se tonto ao realizar tarefas simples do cotidiano. Foi um tempo sombrio, com visitas à hospitais até descobrir o que realmente tinha. Eu tentava me manter esperançosa e otimista, pois queria que você tivesse forças para lutar. E você sabia o que eu realmente sentia: tristeza e frustração, mas apesar disso, sua confiança de que tudo ficaria bem era o que nos deixavam dormir em paz todas as noites. Era você, meu amor, que me fortalecia sem perceber.
Então, é difícil acreditar que o destino tenha nos pregado essa peça. Tudo o que queria: era salvá-lo. Nunca imaginei que um simples cadastro iria mudar tanto as nossas vidas, no entanto, meu coração não aguentaria vê-lo morrer sem ao menos tentar. O que eu não sabia é no que eu estaria sacrificando.
— Annie, — minha amiga me chama — Não sei o que dizer..., mas pelo menos Eduardo ficará bem.
Olho para ela vagamente e respondo:
— Sim. E saber disso é meu único consolo.
Escuto minha amiga suspirar enquanto ela tenta me abraçar na lateral daquela cadeira fria da sala de espera do hospital:
— Não tinha como você saber...
Sinto uma lágrima escorrer pelas minhas bochechas e minha amiga continua:
— O mundo é tão injusto...
Enquanto tento afundar meu rosto no colo dela, querendo esconder as lágrimas que não para de cair, escuto uma voz masculina, a mesma voz do médico que eu conversara antes e que realizaria o procedimento:
— Senhorita Annie Passos, estamos preparados para a transfusão.
Olho para ele com o rosto molhado e assinto. Levanto-me da cadeira e minha amiga se despede de mim com um abraço:
— Vai dar tudo certo! – diz ela esperançosa.
Enquanto acompanho o médico, lembro-me de meses atrás, quando Eduardo descobriu a anemia aplásica. Foram feitos diversos exames e não se revelou a causa. Eduardo recebeu nesse período, várias transfusões de sangue e plaquetas, mas em um determinado momento, essas transfusões pararam de funcionar. Eu o acompanhei por todo período e o nosso amor foi mais que suficiente para conseguirmos enfrentarmos isso juntos. Será que voltaríamos ser as mesmas pessoas de antes? Após essa transfusão? Como o nosso relacionamento irá ficar? Perguntas como essas, me deixam ansiosa.
— Deita-se nessa maca. — pede o Médico.
Sigo em direção a maca e me sento, enquanto ele continua:
— Não se preocupe, a transfusão e a recuperação é rápida. — ele sorri — Como a anestesia é local, a senhorita ficará acordada durante o processo.
Assinto.
Sentada, observo o jovem médico lendo provavelmente meu prontuário clínico enquanto duas enfermeiras preparam a anestesia e todo material para a coleta.
— Impressionante! — ele diz — A sua compatibilidade com o senhor Eduardo Lopez é de cem por cento! Nunca vi nada igual, nem mesmo entre irmãos.
Sinto uma lágrima querer escorrer pelo meu rosto, mas passo a mão antes que alcance a bochecha.
— Curioso é que parece que vocês não tem o mesmo sobrenome. Talvez seja importante fazer um teste de DNA. Confirmando parentesco, você poderá ajudá-lo também na transfusão de sangue que ele precisará receber depois. É melhor quando tem parentesco — Ele olha para mim sorrindo — Se quiser, posso pedir ao médico que está acompanhando o tratamento dele para solicitar.
— Já foi solicitado. — digo — Tudo indica que somos gêmeos.
— Gêmeos? — ele diz surpreso. — Com qual embasamento?
Suspiro e respondo:
— Nascemos no mesmo dia e quase na mesma hora. E fomos adotados. Ele por um casal sem filhos, e eu por uma mulher solitária. Todos, infelizmente, já morreram para poder confirmar ou não.
O jovem de jaleco branco arregala os olhos surpreso, mas se recompõem logo em seguida. Eu continuo:
— Sabe, antes era legal termos nascido no mesmo dia. Comemorávamos juntos... Mas agora, é como uma maldição.
Já deitada, a enfermeira se aproxima de mim com a agulha e pede para que eu me vire de lado. Eu obedeço:
— Pode parecer egoísmo da minha parte. Sei que se não fosse por essa compatibilidade, Eduardo poderia morrer. Mas... — suspiro — queria que ele vivesse e tudo continuasse como antes. Porém, não posso ter as duas coisas.
Antes de fechar os olhos, vejo o médico com um olhar de compaixão sobre mim. Não gosto desse olhar pois não gosto que sintam pena de mim. Decido fechar os olhos, não por causa da anestesia, mas porque não quero continuar olhando para as paredes brancas e azuis do hospital. Quero que tudo acabe logo para podermos voltarmos para nossa casa e nossa vida de antes.
Nossa casa.
Doce ilusão.
Choro novamente baixinho, enquanto esfrego o dedo no anel encaixado perfeitamente na minha mão direita. Um anel de noivado que Eduardo meu deu um pouco antes de ficar doente.
Era noite de natal, estávamos jantando num dos restaurantes mais chiques da nossa cidade com direito a uma garrafa cara de champanhe. No início acreditei que estávamos apenas comemorando o natal e a recente promoção na empresa em que ele trabalhava. Mas estava errada. A promoção não chegou, mas o desejo de casar-se comigo permaneceu com a mesma intensidade de antes. E foi nessa noite, com a iluminação da vela sobre a mesa e a luz das estrelas que brilhavam no céu, que Eduardo me pediu em casamento e eu disse "sim". Foi o melhor dia da minha vida.
— Prontinho. — disse o médico sorridente — Terminamos. Você precisará ficar em repouso e observação nas próximas horas, mas acredito que ainda hoje terá alta.
— Obrigada — respondo.
***
Quase uma semana se passou desde minha doação. Eduardo está se recuperando bem e já obtive o resultado do teste de DNA. Entretanto, ainda não abri o envelope e nem levei para o médico. Esse resultado eu quero abrir junto com Eduardo. Quero que nós dois tenhamos a resposta para as nossas angustias juntos.
A verdade é que apesar de Eduardo saber que eu fui a doadora da medula, ele não sabe, ou talvez finge não saber a gravidade da situação. Sempre o vejo sorrindo, alegre e não mede esforços ao tentar me tocar como antes, apesar de eu afastá-lo. Mesmo sem eu dizer o porquê, sinto que ele entende o motivo, pois não discuti comigo embora seu rosto revele claramente a sua frustração.
Estamos no quarto particular do hospital, quando Eduardo puxa minha mão, mas eu a afasto novamente. Ele revira os olhos e dessa vez, diz com tranquilidade:
— Annie, — suspira — Eu te amo. Quero que fique perto de mim, quero abraça-la, beijá-la.
Sentada na poltrona ao lado da sua cama, seguro a sua mão e o olho fixamente:
— Edu...
— Eu sei o que se passa por essa sua cabecinha linda — ele me interrompe sorrindo — Mas eu não me importo. Quero aproveitar todos os momentos com você. Nós vamos nos casar!
— Não sei se podemos...
— Nós só precisamos querer! Por favor, não me afaste...
Apoio os braços na beirada da cama, abaixo a cabeça e choro. Choro todas as lágrimas e medos que segurei por meses: medo da doença, da perda, da alta compatibilidade, do teste de DNA e medo do desconhecido.
Pela primeira vez sinto que estou de pés e mãos atadas. Sem poder o que fazer, sem ter a chance de escolher.
Sinto uma mão na minha cabeça a acariciando, me consolando. A mesma mão que já percorreu por todo meu corpo e que recentemente, tentei afasta-la.
— Vamos abrir o resultado juntos. — ele pede.
Levanto a cabeça e assinto. Olho para ele fixamente:
— Mas, — Eduardo continua — Independente do resultado, o que sinto por você não vai mudar.
Olho-o assustada, mas ele apenas sorrir.
Com receio, pego a minha bolsa apoiada nos pés da poltrona e procuro pelo teste.
— Aqui está. — digo assim que encontro.
— Vamos abrir juntos. — ele diz.
Ele pede com um gesto com as mãos para que eu me sento ao seu lado. Obedeço, e juntos, abrimos o resultado:
"... assim, diante de todos os testes, concluímos que Annie Passos e Eduardo Lopez são irmãos gêmeos."
E novamente choro. Choro em seu ombro.
Enquanto soluço, Eduardo toma o papel das minhas mãos e o rasga.
— O que está fazendo? — pergunto ainda chorosa.
Ele olha sério para mim e responde:
— Destruindo as provas.
— Mas...?
Ele toca a ponta do seu dedo em meus lábios e diz:
— Eu te disse que independente do resultado meus sentimentos por você não iriam mudar.
— Mas isso é...
— Não temos os mesmos sobrenomes e nem fomos criados juntos. Nos conhecemos por acaso. — ele me interrompe — Ainda podemos nos casar, se assim desejarmos.
— Mas e esse teste? — eu pergunto — As pessoas vão saber.
Ele pisca com cumplicidade para mim, enquanto diz:
— Testes de DNA são confidenciais. Se destruirmos, não haverá provas. E se alguém perguntar, não precisamos responder com a verdade.
— Mas isso é errado, ilegal.
Ele segura meu rosto com as duas mãos enquanto diz:
— Errado é deixar de te amar. É mandar eu apagar todo meu sentimento por conta de um resultado. Não quero e nem vou me privar de viver com quem amo por medo de represálias da sociedade, por um tabu. Eu te amo Annie e não pretendo destruir o que sinto por você por causa de um papel. Sei que vai ser difícil, possivelmente não poderemos ter filhos biológicos no futuro, mas só de saber que estarei com você é o suficiente para mim. Por que sem você, eu não sou nada. Você é a minha vida.
Com lágrimas nos olhos, tento dizer algo, mas ele me impede:
— Annie, eu amo você. Quero estar com você independente de qualquer coisa. Mas e você? Ainda me ama? Ainda quer se casar comigo apesar de tudo?
Suspiro, deixando a insegurança de lado, enquanto respondo:
— Sim.
Eduardo me puxa para perto de si e me beija.
***
...sem revisão...
O que vocês acharam da história?
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