Capítulo 5
No fim, eu não cobri o plantão do Gustavo. Tanto eu como ele sabíamos que não passava de uma brincadeira. Como um cirurgião de tórax poderia ser substituído por uma médica pediátrica?
– Ai, graças a Deus nós combinamos de sair hoje! – eu entrei no carro dele com uma expressão nítida de alívio. Assim como da outra vez, nós deixamos o meu carro na minha casa e fomos no carro dele. Mas, apesar do item que eu coloquei na minha lista sobre o cara me deixar dirigir, eu realmente preferia ir de carona para poder beber.
– Por quê? – ele achou graça.
– Porque senão a Carla me arrastaria para a academia de novo! E eu odeio fazer musculação! Tô com dor em todo o corpo! Fomos domingo de manhã cedo e ontem de novo! Tá tudo doendo! Tudo mesmo, desde o dedinho do pé! Um horror! Tinha que haver outro jeito!
– Jeito de quê? De emagrecer? Mas você já está magra.
– Jeito de endurecer!
– Endurecer?
– É! Queimar as banhas e criar músculos.
– Queimar as banhas... – ele repetiu, abafando uma risadinha. Aliás, onde estava o Gustavo mal-humorado?
– É o primeiro passo – eu expliquei – Das listas.
– Ah... As tais listas que a Josi falou naquele dia.
– É.
– E o primeiro passo é queimar as banhas.
– É.
Ele me olhou de cima a baixo.
– E onde estão as banhas? – ele perguntou.
– Nas pernas... E... – eu fiquei sem jeito, mas não deixei de olhar para o rosto dele, apesar de estar com vontade de me enfiar debaixo do banco. – Na bunda... – eu falei num tom quase inaudível.
– Na bunda? – ele repetiu em voz bem alta, provavelmente para me atormentar. O ar risonho permaneceu em seu rosto.
– É... E um pouco na barriga...
– Sei. – Ele pareceu pensar no assunto – E você não gosta de fazer musculação?
– Não. – Eu admiti – Eu odeio. É uma chatice! Eu fico toda dolorida, e naquela academia da Carla só tem gente fresca, é um desfile de modas e ninguém fala comigo! Só tem panelinha, sabe? É um saco!
– E se você viesse para o hospital de bicicleta? Daria tipo uns quarenta minutos por dia de pedalada. Vinte para ir e vinte para voltar.
– Bicicleta? – nossa! Que ideia genial! – Sim! Eu posso deixar a Isa na minha mãe e ir de bicicleta da minha mãe para o hospital! E daí eu não preciso ir mais naquela porcaria de academia! E ainda posso ficar bronzeada, com o sol que eu pegar pedalando! Você é um gênio, Gustavo! Daí, se eu endurecer, posso passar para a segunda fase da lista!
– E qual seria a segunda fase?
– Comprar roupas novas, arrumar os cabelos. Ficar bonita.
– E então arranjar um novo namorado. – Ele completou.
– Não! Não é para isso! É para... – droga! Eu não podia falar: é para fazer sexo com o Bruno! Um calorão subiu ao meu rosto, e eu tenho certeza que eu fiquei vermelha. Muito vermelha!
– É para?
– Ali tem uma vaga. – Eu apontei para um espaço entre os carros. A pizzaria escolhida por ele pelo visto estava lotada.
Ele estacionou, nós descemos do carro.
– Já veio aqui? – ele perguntou ao perceber que eu observava o local com curiosidade.
– Nunca. É bonito.
Sentamos numa mesa ao ar livre, uma das que tinha as melhores vistas, no segundo olhar. Dali, enxergávamos parte da lagoa Rodrigo de Freitas.
– Você reservou uma mesa para a gente! – eu exclamei. Estava surpresa.
– É. – Ele confirmou.
– E o local é tão bonito, que até parece um encontro. – Eu brinquei. – Aliás, se você cortasse os cabelos...
– Não! – ele ficou sério de repente.
– Eu só ia dizer...
– Não! – ele repetiu, de cara amarrada.
– Ah... – eu fiz uma careta – Quer saber algo que eu ouvi falar do teu cabelo? Eu juro que não fui eu quem disse, foi outra mulher lá do hospital.
– Não quero saber.
– Tudo bem. – Eu concordei e fiquei escolhendo os sabores da pizza.
– Tá bom, fala.
– Ela disse – eu não pude evitar um sorriso. Era cruel, eu sei. Mas eu queria tanto que ele se ajeitasse, até para seu próprio bem. – Que as pontas do teu cabelo parecem roídas por traças.
Ele ficou sem fala e sem expressão, me olhando sem sequer piscar. Seus dedos tocaram nas pontas do cabelo.
– E você concorda com isso?
– Olha... Não sei se eu concordo. – Ele pareceu relaxar, e eu então acrescentei – Acho que na verdade parece roído por ratos.
– Ah. – Ele ficou tenso de novo.
– Quem corta o teu cabelo?
– Quem corta o meu cabelo? – ele repetiu, provavelmente para ganhar tempo antes de responder.
– É. Quem corta o teu cabelo? A gente deveria processar esse cabeleireiro.
– Ah... – eu vi que ele se ajeitou na cadeira, meio rígido. Então chegaram os nossos chopes. Ele tomou um gole e demorou quase um minuto para me responder. – Eu corto o meu cabelo... – ele murmurou, meio constrangido.
– Eu imaginava. Que bom que você é cirurgião, e não cabeleireiro. – Eu abafei a vontade de gargalhar.
– Tá bom. Você venceu. Vou cortar os cabelos.
– Quando?
– Fim de semana.
– Posso ir junto? – eu perguntei.
– Para quê?
– Para monitorar, ora. Não quero mais ser vista num jantar romântico com um homem com um cabelo que parece roído por traças. Tenho uma reputação a zelar.
– Isso não é um jantar romântico. – Ele retrucou, novamente de mau humor.
Isso é tão legal! Ele fica zangado tão fácil! Que divertido!
– É... – eu, ainda rindo, me inclinei e cochichei para ele. – Mas sabe essas pessoas que estão ao redor? Elas não sabem disso. Para elas, parece um jantar romântico.
– E para você não?
– Não. Se fosse um jantar romântico, eu não faria isso. – Eu me estiquei e roubei as azeitonas da fatia de pizza dele. – E se fosse um jantar romântico, eu não falaria das minhas banhas. E se fosse um jantar romântico, eu estaria nervosa e não estaria comendo nada. Então – sorri e mastiguei as azeitonas dele – Assim é bem mais divertido.
– É mesmo. – E ele também esticou o garfo e roubou as azeitonas da minha pizza. Então sorriu para mim de maneira vitoriosa.
– E se fosse um jantar romântico – eu disse – A gente estaria tentando arrancar um monte de informações um do outro. Seria chato e monótono. E assim ficamos livres para falarmos sobre o que quisermos. Aliás, da próxima vez, pediremos pizza com o dobro de azeitona.
– Falando nisso, sobre falarmos o que quisermos, qual é o prêmio do final da tal lista?
– Quem sabe daqui a dois chopes eu não te conte? Ou você pode me subornar com as tuas azeitonas. – Eu propus.
Mais um chope e algumas azeitonas depois.
– Se eu fizer tudo certo, no carnaval – comecei a mentir. Enquanto comíamos em silêncio eu pensei numa boa desculpa. – Vou poder fazer sexo com alguém.
Ele se afogou com o chope. Acho que se surpreendeu. E então parou para me olhar, ajeitando melhor os óculos.
– Com alguém quem? – ele perguntou.
– Com qualquer um. Pode ser até um desconhecido.
– Sexo com um desconhecido? – ele fez uma careta contrariada – E por que essa obsessão por sexo?
– Porque eu conheci o Alex quando tinha dezenove anos. Não era mais virgem, porque eu tive um namoradinho antes dele, mas veja bem... Além do Alex – dei mais um gole do meu chope – Eu só conheci outro cara, que eu nem me lembro mais como era.
– E precisa seguir essa lista para isso?
– Sim, porque eu tenho que estar pronta. Senão será um total desastre. Eu tenho que estar bem comigo mesmo. Entende? Porque no momento – baixei meu tom de voz e o meu rosto – Eu me sinto um lixo.
– Você não é um lixo. Você é bonita.
– Bonita às vezes. – Eu o corrigi.
– É. Bonita às vezes. Às vezes, menos bonita. Às vezes, linda.
– Linda? – subi meus olhos para vê-lo e dei um sorriso largo. Não pude evitar. – Verdade?
– Sim. Como agora. Com esse sorriso.
E eu continuei sorrindo, mas baixei novamente meu rosto, meio envergonhada. Era bom ganhar elogio. Mas era estranho ganhar um elogio de um homem que não era o Alex. Então ele disse, para quebrar o clima:
– Quer dizer, isso se você levar em conta o elogio de um cara com o cabelo roído de rato.
– De traça. – Eu corrigi, achando graça e rindo.
– Mais um chope?
– Sim! – olhei para o meu relógio de pulso – Eu posso ficar mais meia hora. O Alex ficou de levar a Isa para casa às dez. Quantos chopes dá para tomar em meia hora?
– Um por minuto? – ele brincou.
– Vamos ver.
– Tim-tim. – Fizemos um brinde com os novos chopes. – Semana que vem nós iremos num sushi? – eu perguntei.
– Não! Claro que não! Mas podemos ir numa churrascaria. Carne assada é sempre mais segura do que peixe cru.
– Você está perdendo o medo de comer na rua?
– Não muito, para falar a verdade. Prefiro comer em casa. Um dia, quem sabe, eu não cozinhe para você?
– Você cozinha? – fiquei de queixo caído. Eu queria um cara que cozinhasse para mim, mas não o Gustavo! Não um cara que tinha o cabelo roído de traça! Um cara pelo qual eu não sentia a menor atração física!
– É o que me resta. Tive que aprender na marra. Eu moro sozinho. Não gosto de comer na rua. Não sou muito fã de comida congelada. Então era aprender cozinhar, ou morrer de fome.
– E por que você não tem uma namorada?
– Porque eu não quero.
– Por que não?
– Porque eu sou um cara individualista. Não gosto de dividir meu espaço. Não gosto de ser obrigado a ir a lugares quando eu não estou com vontade.
– Tipo que lugares?
– Tipo o casamento do primo da vizinha da minha namorada, ou o aniversário de noventa anos da avó dela.
– Entendi. Você se acostumou a ficar só. Não tem irmãos?
– Não.
– E teus pais?
– Morreram quando eu tinha vinte e dois anos. Eu estava na faculdade, foi difícil continuar a estudar.
– A minha família é enorme. A gente nunca poderia namorar, porque você teria que ir a várias festas. – Eu brinquei. – Meu pai tem oito irmãos, e eu tenho um monte de primos. E minha avó recém fez oitenta, ainda vai demorar para ela fazer noventa. Mas quando ela fizer, não me esquecerei de não te convidar, tá?
– Tá bom. – Ele riu – Obrigado.
– E o que você faz de noite? Sozinho em casa?
– Vejo televisão. Jogo videogame. Leio livros. Navego na internet.
– Em sites pornôs?
Ele achou graça.
– Às vezes. Mas também não sou um tarado.
– E essa namorada que você teve, que te arrastava à força para vários lugares – eu deduzi – Quando foi que vocês terminaram?
– Faz três anos.
– E desde então você está sozinho?
– Não. Eu tenho um caso com uma vizinha casada.
– Não! – fiquei de queixo caído – Verdade?
– É. Gostaria de dizer que é mentira, mas infelizmente não é.
– Mas isso é tão feio! Coitado do marido dela! Como você consegue? – fiquei horrorizada.
– Relaxa. Ele não é nenhum santo. Ele também dá as escapadinhas dele. Foi por isso que eu conheci a mulher dele. Encontrei-a chorando na garagem do prédio, escondida, quando ela descobriu que o marido tinha uma amante, e nós começamos a conversar. Daí ficamos amigos. Ela ia lá em casa de vez em quando, e então certa vez rolou. Ela não se separa por causa dos filhos.
– Nossa! – não consegui evitar meu assombro – E você a ama?
– Lógico que não!
– Não? – eu estava cada vez mais chocada.
– Se eu amasse, você acha que eu aceitaria dividi-la com outro?
– Mas...
– Tá bom. Se você quer saber, eu já fui como você. Eu amava essa minha ex, essa que me arrastava para as festas. Eu odiava ir às festas, mas fazia parte do relacionamento. Era o que ela gostava, e eu a amava, então fazia várias coisas por ela. Várias concessões. E um dia pedi para se casar comigo. E foi então que ela disse que não me amava. Que não gostava de mim o suficiente para se casar. E a gente terminou.
– Ah... E daí você resolveu ser um solteirão para o resto da vida, ter um caso com uma mulher casada e nunca mais ir a um cabeleireiro. Ótima escolha. Estou pensando em adotar o mesmo estilo de vida. O que você acha? – comentei de maneira irônica.
– Acho que está na hora da gente ir embora. – Ele se irritou de novo.
– Você é muito brabo, sabia? É pior do que o Alex!
– Esse Alex é um santo!
– Um santo?
– É, porque se você infernizava a vida dele e tirava a paciência dele como tira a minha, ele só pode ser um santo para ter te aguentado por dez anos!
Eu baixei meu rosto e comprimi meus lábios numa fina linha. Meus olhos automaticamente se encheram de lágrimas, e eu fiquei alguns minutos triste, olhando para a mesa, segurando a vontade de chorar.
– Desculpa. – Ele esticou o braço para me tocar, e eu recuei. Então ele trouxe a cadeira mais perto da minha, me puxou em direção a ele e me abraçou, mesmo contra a minha vontade. – Desculpa mesmo, Luiza, eu sou um idiota.
– Tudo bem... – eu apoiei a cabeça em seu peito, mantendo os meus braços sobre o meu colo. Era estranhamente confortável ficar aninhada a ele. Nossa! Acho que estou carente demais! Eu estou gostando disso! Eu realmente estou gostando disso! Com o susto pela descoberta, eu me afastei rapidamente.
– Eu tenho que ir... São quase dez horas.
– Vou pedir a conta.
– Quer que eu pegue um táxi para eu não te infernizar mais? – perguntei num tom humilde.
– Lógico que não! Luiza, desculpa por aquilo. Você não me inferniza! Quero dizer, não todo o tempo. – Ele deu uma risadinha – Talvez durante um terço do tempo. O tempo em que fica falando sobre o meu cabelo... Ou sobre as minhas roupas...
– Ou sobre a tua amante casada.
– É. Isso também.
– É... Eu não tenho nada a ver com isso.
– Não. Não tem mesmo.
– Desculpa por dizer o que eu penso... É que às vezes eu sou sincera demais...
– Já percebi.
Pagamos a conta.
– Vamos? Senão ele vai te ligar daqui a pouco. – O Gustavo brincou. – Como um marido ciumento.
– Ex-marido ciumento.
– É. Pode ser também.
– No dia em que você for cozinhar para mim, tua amante não ficará com ciúmes também?
– Não sei. Se a gente se encontrar com ela, provavelmente.
– Porque você não vai contar. – Eu deduzi.
– Não.
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