Uma Parte de Mim
O casamento entre Matthew e Brenda, apesar de surpreender a todos que conheciam a natureza irresponsável do homem, não foi um evento particularmente chamativo. Dava para dizer que foi uma cerimônia puramente simbólica, simbolismo esse que não parecia comover muito nenhum dos noivos.
As coisas na floresta continuaram como sempre, como se nada realmente importante tivesse acontecido. Isso claro, até o inevitável dia em que Matthew e a casa inteira foram acordados com as reclamações de Brenda, que não duraram tempo o bastante nem para Saimon conseguir buscar um médico.
Da mesma forma que as contrações leves da esposa evoluíram rápido para gritos agonizantes de dor, em pouco mais de meia hora Matthew se viu inesperadamente puxando uma pequena pessoa pelos pés, que saiu numa facilidade assombrosa para um bebê que estava virado na pior posição possível.
E assim, de um minuto para o outro, seu nervosismo foi substituído por uma sensação simplesmente indescritível ao ver aquele projeto de ser humano o encarando com seu rosto rechonchudo e confuso. Tinha algo de extraordinário em ver aquele ser tomar consciência do mundo e das pessoas que o cercavam, de o ver enxergar tudo aquilo pela primeira vez, e melhor, de notar que ela fazia isso com os olhinhos escuros que Matthew tinha certeza que em breve seriam da mesma cor dos seus.
[...]
Nascida em uma família de lobisomens e bruxos, Megan Beatrice estava acostumada a ter de fingir ser normal. Bem, normal na medida do possível.
Sua rotina não era tão diferente da que a maioria das crianças tinha. MegBeat tinha aulas, como toda criança de seis anos deveria ter, embora essas aulas por sua vez fossem dadas no conforto da biblioteca de seu "tio" Saimon, onde o mesmo a ensinava gramática; equações simples; história; geografia e sociologia.
Ela sempre se mostrou extremamente eficiente durante as aulas, mas todos os dias esperava ansiosamente para que essas aulas acabassem. Não porque não as apreciasse, pelo contrário, amava as aulas e amava o tempo que passava com seu tio, que embora fosse na verdade seu primo de segundo grau, sempre esteve presente como um segundo pai.
Mas em sua visão, o melhor professor do mundo era outro.
Matthew Holkkins era quem levava esse título. Diferente de Saimon, o pai da garota tinha um jeito peculiar de ensino. Ao invés de em um escritório, as aulas ocorriam nos jardins ou nas sacadas da casa, e ao invés de ensinar a filha a compreender a história e o raciocínio que move o mundo, ele decidiu deixar que ela aprendesse por conta própria, com a música; a pintura; a botânica e a dança.
Ele amava vê-la dançar, foi exatamente isso que motivou aquela decisão fatídica.
As vezes quando criava uma nova coreografia, MegBeat gostava de fazer um show surpresa para o pai. Ela organizava tudo com a ajuda da mãe e dos tios, sendo ela quem sempre decidia o designer do palco e das roupas.
Queria algo ligado ao outono. Decidiu de última hora, durante aquelas ideias estranhas que temos na madrugada, que seria uma ótima ideia buscar folhas de bordo secas. E como dita a sensação de urgência que a mente infantil dá para praticamente tudo, a garota se levantou e se pôs a ir buscar as benditas folhas para o palco.
Apesar de não sair muito de casa, Megan Beatrice não se sentia presa, a residência de sua família ficava em uma estrada deserta e fria envolta por árvores. Com poucos metros de caminhada, a garota já estava dentro da floresta, e como toda boa floresta daquela área do Canadá no outono, o que não faltava eram folhas de bordo secas pelo chão.
Mesmo já sendo quatro da manhã, a floresta estava completamente escura. Não era algo incomum, MB já se aventurou por lá antes e sabia que as densas camadas de folhas barravam a chegada da luz. O outono ainda não estava no auge em que fazia todas as árvores ficarem temporariamente despidas.
Ela seguia pulando e se equilibrando em uma perna por vez, trocando de perna toda vez que pulava encima de outra pedra, como sempre fazia ao tomar aquele caminho. Sua cesta já estava quase cheia de folhas, quando uma rajada de vento levou boa parte das que estavam por cima do montinho que a garota havia feito.
Apesar de ter muitas folhas secas no chão em que MegBeat pisava naquele mesmo instante, a garota optou por ir atrás das que o vento tinha levado
"aquelas são especiais", era o que sua mente dizia, como sempre colocando sentimentos exagerados em objetos inanimados.
Era um costume da garota, sabem? Um desses costumes inocentes que as crianças tem.
Nos anos seguintes, ela tentaria desesperadamente se lembrar desse momento, em vão. Com sua mente pregando peças a essa lembrança, deixando tudo maior ou menor do que MB sentia que foi.
Mas naquele instante ela percebia tudo como realmente acontecia, estava sentindo pela primeira vez algo que voltaria eternamente para assombrar sua mente.
Com os joelhos curvados e as mãos entendidas para pegar suas malditas folhas, o cheiro fresco de terra e grama após uma noite de chuva, um de seus últimos pensamentos a dizendo que seria ótimo se encontrasse uma poça de lama para estrear suas novas galochas azuis.
A sensação que invadiu seu estômago era tão fria, e para alguém que nasceu e cresceu naquela parte do Canadá ficar incomodando com o frio, então a situação era realmente extrema.
O cheiro fresco de terra e grama molhada, agora se tornava um cheiro forte como o de ovos podres, mas mais intenso, como enxofre puro. O cheiro parecia usar seu nariz para ir direto ao cérebro, ardia tanto que chegava a doer mais do que um corte profundo.
E a sua volta tudo parecia negro, não era apenas escuro, tudo ali tinha uma estranha energia negra, como se ela pudesse sentir a escuridão. Foi definitivamente a pior coisa que já tinha sentido em sua vida.
Tudo isso seria motivo mais do que o suficiente para fugir dali, correr o mais rápido possível e chamar por seus pais ou por seu tio
Mas ela não conseguia correr, não conseguia gritar, estava completamente paralisada.
Em pouco tempo sentiu essa energia negra tomar uma forma humanoide, como uma pessoa formada por sombras, sem qualquer resquício de algo próximo a uma alma.
Mesmo sem conseguir enxergar nada, ela sabia que aquela pessoa de sombra a cercava. Se esse ser respirasse, sua respiração poderia ser sentida no pescoço de MB.
A energia negra ao seu redor a fazia sentir que aquela coisa tapava sua boca, que seja lá o que aquilo tivesse no lugar das mãos, estava percorrendo seu corpo até encontrar seus olhos.
No começo parecia um dedo, empurrando mais e mais contra o olho da menina, fazendo sua visão ficar avermelhada. Depois foi como se aquele ser tivesse se desprendido de sua forma humanoide e entrado por completo nela, como um pequeno tornado sendo sugado para dentro do que deveria ser seu olho esquerdo,
Mas não era, não mais.
Ela não sentiu quando suas costas tocaram o chão, nem sentiu que estava espumando pela boca, e a visão trêmula era a única coisa que a indicava que seu corpo estava convulsionando.
Naquele confuso momento, tudo o que a sua mente tentava compreender, era o que seria aquela figura que surgiu por trás das árvores de bordo. Era difícil distinguir a pele pálida da neblina que tomava conta do local, assim como era difícil distinguir os cabelos negros naquela escuridão
Mas os olhos, mesmo ali vivendo esse momento pela primeira vez, ela sabia que nunca esqueceria aqueles olhos vesgos e apáticos, a forma como pareciam um poço sem fim de angústia
Como olhos mortos
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As vezes era bom pensar no lado positivo das coisas. Fazia muito tempo que queria ir visitar sua tia Ruth, e para alguém que amava botânica, uma vida na Amazônia poderia ser um ótimo recomeço.
Ir morar em outro país, para quem não costumava nem ao menos sair de casa essa era uma aventura e tanto.
A tia havia se deslocando para outra grande convenção de bruxas, a maior da América Latina. Mas a cerca de dois anos, essa mesma convenção se envolveu numa guerra civil entre os clãs de seres sobrenaturais.
Algumas alcateias ganharam força na Amazônia, e Ruth decidiu se juntar a um pequeno grupo de lobisomens. Esses por sua vez a aceitaram mesmo desconfiados, em troca de uma barreira de proteção para os defender dos ataques de outros clãs.
Antes as visitas da tia nunca eram muito longas, seu pai não gostava do envolvimento dela com aquela convenção, ele afirmava que eram uma seita.
Quando MegBeat acordou, já não estava mais no avião e sim no banco de trás de um carro ao lado de sua mãe. Brenda odiava sentar no banco da frente, especialmente quando era Matthew quem estava dirigindo.
O caminho que tomavam era cercado por árvores enormes, essas não eram como as árvores que tinham perto da propriedade de sua família no Canadá. Ao invés de apenas laranja e marrom, as folhas contavam com tons roxos; rosas; vermelhos e amarelos, alguns até mantinham um pouco do verde.
Ela poderia ver melhor se não fosse por aquele curativo, tinha de usar para fazer pressão no ferimento e evitar que sangrasse. O que era estranho, pois tinha ouvido seus pais dizerem que, embora tivesse algo avermelhado saindo aos montes do olho da menina quando a encontraram, aquilo não era sangue.
Já fazia quatro dias corridos desde o incidente, e até então ninguém se atreveu a tirar o curativo, diziam que era melhor esperarem pela ajuda da tia já que essa por sua vez era uma ótima curandeira.
MB não via a hora de seu olho voltar ao normal, era péssimo ver vultos por onde passava. Como entre as lindas árvores que tinham sua beleza estragada por aquelas manchas negras espreitando entre os troncos.
Foi olhando entre as árvores que a garota notou uma agitação, mas dessa vez não eram vultos, eram pessoas e estavam vindo ao encontro deles.
Sua nova alcateia era formada por três famílias de lobos. Eles encaravam Matthew de cima a baixo e cochichavam por suas costas, zombando do fato dele não ter a audição dos lobisomens.
Apesar de carregar parte dos traços mestiços que aqueles lobos pareciam odiar, eles a receberam de braços abertos. Talvez por ser uma criança, talvez por sentirem pena de sua situação, ou talvez porque ser só metade lobo já bastava para eles.
Ruth não demorou muito para se juntar a família, havia ido buscar alguns ingredientes para ajudar na cicatrização do ferimento.
Antes do sol se por, a garota já havia sido lavada nas supostas águas de cura da floresta, havia tido de inalar o vapor vindo do chá de rosas e insetos para a regeneração, teve de comer o carvão vindo de um tal carvalho das angústias, e agora se via deitada na mesa da cozinha ouvindo os estranhos encantamentos da tia.
A voz de Ruth foi ficando mais distante, era tão doce e melódica, uma grande tentação para seu olho cansado que estava tendo de dobrar seus esforços. Em poucos minutos MegBeat já havia caído no sono.
O toque gentil sobre seu olho foi o que a despertou. Ao notar o curativo nas mãos da tia, a garota nem se espantou com a gosma negra presa a parte de baixo do tecido, que até a pouco tempo estava encostado no seu olho ferido.
O que a incomodava era o fato de que as sombras estavam tomando formas humanas, e que mesmo sem o curativo pesado contra seu olho, a garota não conseguia abrir as pálpebras. Talvez não tivesse acordado por completo, e a visão de sua família a olhando de forma apavorada era apenas um sonho, assim como aquelas estranhas almas depressivas sem corpo cercando a cena.
A garota decidiu se levantar, teve um pouco de dificuldade por conta da visão parecer estar ainda mais degradada agora. Sua família pareceu tentar impedir, mas nenhum deles se atreveu a tocá-la.
MB apenas precisava de uma bebida, para ajudar com sua garganta seca depois de comer carvão. Ela não esperava que sua imagem refletida na porta da geladeira, iria ser uma das visões mais angustiantes que ela já presenciou até então.
Isso explicava muita coisa
Seu olho, ele nunca voltaria ao normal, não tinha mais um olho para voltar ao normal. Tudo o que tinha era um void negro, que parecia querer sugar toda a luz a sua volta.
De repente, ela percebeu que as visões das almas sem corpo não estavam apenas mais realistas do que antes dela tirar o curativo, percebeu que tinha criado uma ponte permanente com aquelas almas cinzentas.
Isso se tornou óbvio, ao ver novamente a figura infantil masculina tocar seu ombro. Agora sua pele pálida e seus cabelos negros eram mais perceptíveis do que da primeira vez, mas não era isso que ela encarava, seu olhar seguia uma única direção
Os olhos mortos do garoto de névoas.
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