Capítulo 8
Pequena fagulha
Uma semana havia se passado e, como todos os dias dela, eu estava em frente à casa de Felipe. Era o início da tarde e o sol estava quente e forte, mas ainda assim éramos agraciados com uma brisa fresca que aliviava o calor.
Desencostando-me da porta do carro e andando pelo familiar caminho de pedras, tirei o celular do bolso e mandei uma simples mensagem para Felipe.
Você: Cheguei
Ele abriu a porta antes mesmo que eu chegasse nela, fez um simples sinal com a cabeça para que eu entrasse, como sempre fazia. Isso fez seus cabelos negros voarem para trás de forma graciosa.
E ali estava, acontecendo mais uma vez: eu observando cada detalhe daquele garoto. Era algo inesperado para mim e eu não entendia completamente porque acontecia, mas não tinham sido poucas as vezes que eu simplesmente me perdia olhando-o, observando seus olhos magníficos, seu cabelo longo e ligeiramente cacheado nas pontas, seu jeito tranquilo de andar e a forma cuidadosa que sempre segurava as coisas.
Não era como se eu tivesse consciência do que fazia. Involuntariamente, meus olhos se voltavam para Felipe e captavam seus pequenos detalhes, coisinhas mínimas que não permitiam que eu desviasse o olhar. Eu ficava preso, encuralado, até perceber o que o encarava e retomar o controle sobre o meu cérebro. Entretanto, a frequência em que isso acontecia me deixava nervoso.
Assim que entrei na casa, fui recebido com pequenos e barulhentos passos. Sorri ao ver a menininha descendo a escada apressadamente, usando um macacão sujo do que parecia tinta.
- Totó! - Gritou.
Ri e me coloquei de joelhos para abraçar Anne, que se jogou com seu corpinho sobre mim. De alguma forma única, ela tinha se apegado a mim muito rapidamente naquela semana na qual passei todas as tardes ali. Tinha até começado a me chamar por um apelido - o qual era ridiculamente fofo. A menina animava aquela casa como nenhuma outra pessoa.
Ainda de joelhos, ergui os olhos para Felipe quando ele bufou e revirou os olhos, cruzando os braços:
- Tudo bem, Anne, ame mais ele do que seu irmão. - Ela franziu o cenho, confusa, e me soltou, então fiquei de pé novamente e Felipe pendeu a cabeça para o lado. - Vamos?
Ele deu as costas para mim e simplesmente começou a subir a escada rumo ao andar superior, pulando dois degraus por vez. Acenei com a mão para a Sra. Clavien, a qual nos observava sorridente da cozinha, antes de segui-lo escada a cima.
Diferente do que sempre faziámos, Felipe passou direto pela porta aberta de seu quarto, continuando pelo corredor. Franzi o cenho em confusão, porém o segui mesmo assim.
- Mamãe disse que a gente estava fazendo muita bagunça no quarto, então hoje vamos para outro lugar. - Ele explicou, parando de andar no centro do corredor.
De repente, ele esticou o braço para cima e desprendeu uma pequena e quadrada placa do teto, revelando um buraco escuro e uma escada no alto. Em choque, observei enquanto ele puxava o conjunto de degraus em madeira, fazendo a escada escorregar de cima até parar perto do chão, guiando-nos diretamente para o espaço acima. Meus lábios se dobraram em um sorriso quando percebi que aquela era a entrada até um sótão, coisa que eu não fazia ideia da existência naquela casa.
Felipe escalou e eu tive a visão completa dos músculos de suas costas, que surgiram sob a camisa fina e preta quando foram usados para impulsioná-lo para cima. Em segundos, ele já tinha chegado no topo e sido absorvido pela escuridão, mas eu continuava embaixo, segurando a escada apenas com uma das mãos e olhando para cima. O rosto do garoto logo surgiu novamente, seus brilhantes olhos fixos em mim, os cabelos caíndo ao redor do rosto quando baixou a cabeça.
A primeira coisa que me veio à mente ao vê-lo daquela forma foi: ele é lindo.
A segunda: porque merda pensei isso? Mais uma vez um pensamento involuntário surgia misteriosamente do fundo da minha mente e me dominava por alguns segundos. Pensamentos que parecia completamente ilógicos e inconsequentes para mim, mas que estavam sempre ali para me confundir
- Você vem ou não? - Ele reclamou lá em cima quando continuei sem me mexer.
Pisquei os olhos e observei a madeira entre meus dedos. Eu não poderia me deixar levar daquela forma: estava ali com um plano e com pouco menos de três semanas para executá-lo. Assim, agarrei o degrau e puxei meu corpo para cima.
Adentrei a escuridão, mas ela logo foi substituída pela claridade quando Felipe acendeu uma lâmpada e abriu uma pequena janela que permitia a entrada da luz solar. Eu esperava um espaço sujo, bagunçado e fedorento a mofo, porém acabei encontrando um lugar bem limpo, arejado e arrumado. Dezenas de caixas de papelão estavam espalhadas por todos os lados, havia um sofá velho e vermelho em um dos cantos e uma mesa estreita, o laptop de Felipe repousando sobre ela.
Os vários desenhos que ele já tinha preparado para o nosso trabalho estavam presos contra a parede, atrás da mesa, e havia algumas de nossas pesquisas impressas e espalhadas ao lado do computador.
- Eu nem sabia que tinha esse sótão. - Comentei.
Ele focou as duas órbitas azuis em mim, um ligeiro sorriso despontando em um dos lados de seus lábios.
- Você nunca observa muito bem as coisas, não é?
Ri, envergonhado, e imediatamente senti o familiar calor cobrir minhas bochechas por causa do intenso olhar. Talvez ele não fizesse de propósito, talvez fosse apenas o azul claríssimo, mas parecia que Felipe estava lendo minha alma inteira quando me observava daquela forma risonha.
Ele finalmente desviou o olhar e abaixou-se sob a mesa, puxando alguns fios de um emaranhado que havia ali, conectando alguns com o computador. Ainda um pouco vermelho, aproximei-me de algumas das caixas empilhadas e me apoiei nelas, esperando que Felipe terminasse o que fazia e que meu nervosismo repentino sumisse. Distraído, corri os olhos pelo espaço até pousá-los em uma caixa aberta perto de onde eu estava, revelando um porta-retrato repousando sobre velhos livros. Franzi o cenho e peguei o objeto para olhar mais de perto a foto.
Mostrava um Felipe alguns anos mais novo entre duas pessoas, um garoto e uma garota, com os braços sobre os ombros deles. Os três riam abertamente, nenhum deles verdadeiramente dando atenção ao fotógrafo, porém o que mais me deixou surpreso foi como Felipe estava: o cabelo preto era cortado curto, sem nenhum cacho aparente, vestia uma camisa vermelha, uma calça clara e rasgada e ainda calçava um velho all star azul que tinha uma carinha desenhada sobre ele.
Meu queixo caiu ao vê-lo daquela forma, capturado naquele milésimo de segundo, tão vivo e colorido que nem ao menos parecia a mesma pessoa. Os olhos azuis brilhavam intensamente e o sorriso era o mais sincero e puro que eu já tinha visto em alguém em toda a minha vida.
Fiquei tão surpreso que não percebi Felipe se aproximar até ser tarde demais.
- QUEM TE DEU O DIREITO DE MEXER NISSO? - Ele gritou, arrancando o porta-retrato das minhas mãos, jogando-o dentro da caixa de novo e fechando-a. Seus olhos estavam injetados de sangue, as bochechas muito vermelhas e sua voz demonstrou um misto entre raiva e dor. - VOCÊ NÃO DEVIA TER TOCADO NISSO, BENSON! É PARTICULAR, SÓ MEU!
- E-eu não q-queria... - Gaguejei, perdido ao vê-lo se virar de costas para mim. Meu coração saltou, assustado e apreensivo. - Eu n-não sabia que e-era tão importante, senão... senão jamais t-teria mexido... E-eu...
- Não. Não importa. - Ele me cortou, tensionando e relaxando as costas. A voz tinha voltado ao tom normal, porém não sua respiração, a qual era visivelmente mais acelerada. - Desculpe, você não teve culpa.
Sem dizer mais uma palavra, o garoto se sentou diante do computador, entretanto, quando foi apertar o botão para ligá-lo, percebi que suas mãos tremiam.
Havia algo muito estranho ali. Algo ruim, doloroso. Imediatamente, meu coração apertou, como se fosse esmagado por um punho de ferro, sentindo a dor que possuía cada palavra que ele pronunciava. Algo terrível havia acontecido entre Felipe e alguma daquelas pessoas, e eu não precisava de uma confirmação para saber aquilo. Tudo que bastava para entender isso era observar a forma como ele ainda tentava regular a própria respiração e fazer o corpo parar de tremer. Optei, então pelo silêncio: aquele era o pior momento de todos para perguntar o que acontecera.
- Felipe. - Sussurrei, chamando-o depois de alguns instantes.
Ele não me deu atenção, então me aproximei e coloquei a mão em seu ombro. Com o pequeno choque que correu pelos meus dedos e continuou percorrendo meu corpo, percebi que era a primeira vez que eu realmente o tocava. De alguma forma, isso pareceu importante.
- Que tal a gente voltar a pesquisar? - Sugeri com mais um sussurro e Felipe finalmente me olhou. Assentiu e abriu um minúsculo sorriso de alívio, o qual não chegava aos olhos.
••••
Meu primeiro passo dentro de casa foi acompanhado pelo som de vidro sendo pisoteado. Olhei para o chão, erguendo o pé para constatar que o carpete de entrada estava coberto de cacos de porcelana, e franzi o cenho.
- Mas que porra... - Resmunguei.
Porém, nada se comparava ao estado em que nossa sala se encontrava. Mais cacos de vidro estavam espalhados por todo o espaço, a mesa de centro estava virada, as cortinas arrancadas e jogadas sobre o sofá. A nossa televisão tinha na tela um rombo, parecendo ter levado um tiro.
Meu coração apertou assim que vi aquela destruição, sem entender o porquê dela.
- PAI? - Gritei.
Percorri a sala e depois segui para a cozinha. Os armários estavam abertos, os pratos jogados ao chão, os cacos esbranquiçados formando um monte no centro da cozinha. Agachei-me e peguei um dos cacos apenas para confirmar minhas suspeitas: eram os pratos que a minha mãe adorava por causa dos desenhos floridos e delicados. Vê-los quebrados foi como se uma parte dela fosse perdida para sempre e as lágrimas se derramaram pelas minhas bochechas antes que eu saisse dali.
- PAI! - Minha voz saiu estrangulada enquanto eu subia a escada correndo. Não conseguia acreditar que tinha passado uma tarde tão boa para no fim chegar em casa e ver tudo aquilo. O que estava acontecendo? - PAI! - Gritei mais uma vez quando entrei no quarto dele. As cortinas ali também estavam arrancadas e o quadro favorito da minha mãe rasgado. Uma nova onda de lágrimas surgiu, subindo pela minha garganta e me sufocando.
As pequenas coisas que um dia tinham sido dela sempre estiveram espalhadas pela casa depois que ela se fora. Eram lembranças que me deixavam seguro e feliz, como se ela não tivesse partido totalmente ainda. Porém, ali estavam suas coisas, jogadas e desvalorizadas no chão e eu me sentia novamente uma criança, o mesmo menino usando um terno preto e chorando a morte da mãe no dia de seu enterro. Eu estava perdendo ela pela segunda vez.
- O quê você está fazendo aqui? - Ouvi um sussurro arrastado atrás de mim e me virei de súbito. Diante do espelho do banheiro, o meu pai me observava pelo reflexo, o rosto vermelho, assim como os olhos, e uma garrafa de whisky quase vazia em uma de suas mãos. Na outra, havia uma foto da minha mãe, o porta retrato que antes a guardava jogado no chão com o vidro estraçalhado.
Involuntariamente, comecei a tremer. Aquela sensação de ódio começava do fundo do meu estômago e subia, consumindo todo o meu corpo pelo caminho. Ali estava meu pai, completamente bêbado, olhando-me como se nada daquilo importasse. Ele havia levado minha mãe embora de novo.
- COMO VOCÊ PÔDE DESTRUIR TUDO QUE ERA DELA DESSE JEITO? - Berrei. Avancei sobre ele e arranquei a garrafa de suas mãos, a raiva me consumindo como fogo consome palha.
- Seu menino imbecil. - Ele apontou o dedo para mim, dando passos bambos pelo banheiro, e eu senti o seu odor de álcool. - Foi tudo culpa sua! Você a matou, não eu, menino estúpido e mimado.
Neguei com a cabeça. Cores piscavam em meus olhos, pontos tão reluzentes que pareciam reais, palpáveis. Senti minhas pernas tremerem ainda mais, as lágrimas escorregarem sem fim pelas minhas bochechas. A culpa me consumiu com aquelas palavras e continuei a negar com a cabeça.
- NÃO! - Toda a dor voltou ao ouvir aquilo e gritei. Tinham se passado anos para que eu finalmente parasse de ter os pesadelos que me assombravam todas as noites desde aquele dia, mesmo que eles ainda surgissem vez ou outra. E então, meu pai fazia tudo voltar. - EU NÃO FIZ NADA!
Ele me atingiu no rosto antes que eu tivesse chance de defesa e cai no chão com um baque. Mais um soco atingiu meu nariz com brutalidade e, de repente, eu tinha a visão do homem diante de mim, o punho elevado no ar, a voz rouca e baixa, completamente dominada pelo álcool:
- Você sempre foi um merdinha. Uma criança mimada que queria toda a atenção. - O rosto do meu pai se aproximou ainda mais do meu e ele berrou: - VOCÊ A MATOU NAQUELE DIA! VOCÊ ARRUINOU MINHA VIDA!
Nessa hora, eu chorava aos soluços e, quando ele tentou me socar de novo, empurrei seu corpo para trás com o restante da força que eu tinha. Tropeçando nos cacos e no tapete, meu pai caiu dentro da banheira de forma desajeitada.
- Você tinha que fazer piadinha naquele dia. - Ele continuou falando enquanto tentava se levantar, mas não conseguia. Aparentava uma estranha calma enquanto me observava mesmo que seus olhos brilhassem de ódio, todo ele direcionado para mim. Cobri as orelhas quando ele gritou novamente: - VOCÊ! O EGOÍSTA! O ASSASSINO! COMO PODE CONTINUAR VIVENDO TODOS OS DIAS, TODY? COMO... Como...
Sua voz foi sumindo até se transformar em barulhentos soluços. Eu não conseguiria ficar ali por nem mais um segundo, então tentei levantar, mas tropecei em minhas pernas fracas e acabei caindo de quatro de novo. Arrastando-me pelo chão, cego pelas lágrimas, vários cacos de vidro rasgaram a pele das minhas mãos e me causaram ainda mais dor. Entretanto, a dor física nem chegava aos pés da emocional quando consegui, enfim, ficar de pé e sair cambaleando para fora de casa, mãos e rosto sangrando.
Voltei para o carro. Tudo estava tão embaçado e os pontos coloridos me fizeram errar várias vezes a entrada da chave antes de conseguir ajustá-la e dar partida no motor.
Deixei-me levar, sem ter ideia de para onde dirigia, usando apenas meu subconsciente como guia. As ruas eram todas iguais, o céu era preto e branco, as pessoas pareciam zumbis e mas nada fazia sentido. Mesmo assim, meu corpo ainda foi capaz de reconhecer a simples casa e o caminho de pedras antes dela e forçar meus pés a freiarem. De alguma forma, eu estava de volta à casa de Felipe.
Deitei a cabeça contra o volante por alguns instantes, buscando forças para me mover. Eu sentia o sangue começar a esfriar sobre minha pele e virei os olhos para a casa do garoto. Será que a pequena Anne estava ali? Como ela ficaria se me visse daquela forma? Sufocado, soquei o volante várias vezes e gritei antes de finalmente conseguir sair e tropeçar até a porta da casa.
Toquei a campainha e me xinguei ao ver que tinha deixado uma marca vermelha contra a parede. Dois mágicos olhos azuis me encararam quando a porta se abriu e eles se arregalaram em horror.
- Tody? - Felipe exclamou. - O que aconteceu?
Abri a boca para responder, mas tudo que veio foram as lágrimas. Em um impulso, joguei-me para frente e acabei abraçando-o, sujando a pele desnuda de suas costas com as minhas mãos.
Eu nem conseguia lembrar a última vez que tinha abraçado alguém daquela forma, tão desesperado, tão despedaçado. Não entendia porque tinha considerado logo Felipe para um momento como aquele, para simplesmente me acolher quando tudo que eu mais queria era me encolher em um canto e chorar até a morte, porém - quando ele passou os braços ao redor da minha cintura, me deixou apoiar o rosto em seu pescoço e chorar - soube que meu subconsciente tinha feito uma boa escolha.
Senti seu cheiro. Não era de perfume, mas sim uma mistura de sabonete e pele que se tornava maravilhosa, como a brisa que cortava as nossas florestas levando o cheiro dos pinheiros para todos os lados. Era leve, calmante, e inundou minhas narinas da melhor forma possível.
Foi então que percebi que ele devia ter acabado de sair do banho, pois eu agarrava seu cabelo molhado e sentia a umidade de seu peito nu. A calça jeans escura pendia em sua cintura desleixadamente.
Talvez fosse pelo tempo que se passou ou as sensações que meu corpo sentiu, mas a fluxo de lágrimas começou a diminuir e, depois de mais longos instantes, parou por completo. Porém, continuei abraçado com Felipe, respirando fundo em seu pescoço, absorvendo seu perfume, enquanto suas mãos faziam carinhos lentos nas minhas costas.
Uma hora ele teria que se afastar e eu sabia disso, mas saber não me impediu de me sentir desamparado e sozinho de novo.
Felipe me olhou assustado e pegou as minhas mãos molhadas de sangue.
- O que aconteceu? - Abri a boca para responder, mas ele me cortou: - Ou melhor, não, não fale nada agora. Vamos limpar os machucados primeiro e depois você explica o porquê de estar nesse estado.
- C-cadê Anne? - Gaguejei. Não queria que aquela coisinha fofa me visse destruido daquela forma. Provavelmente, minha aparência era a de um monstro para uma criança e, bem, talvez eu fosse mesmo um monstro.
- Elas foram para a casa de uma tia nossa e só voltam mais tarde. - Felipe me fez sentar no sofá e foi pegar o kit de primeiro socorros na cozinha.
- Levante a cabeça. - Ele disse e apenas obedeci, erguendo o rosto para que ele pudesse começar a limpar meu nariz. Prendi o olhar naquelas bolotas azuis quase que imediatamente. Era incrível como aqueles olhos eram místicos, mágicos, e consumiam toda a dor ao redor, impedindo-me de ligar para a queimação que o desinfetante fazia sobre os meus machucados. Felipe estava concentrado no que fazia que nem percebeu o quanto eu me perdi em seu olhar: ali encontrei sugurança, uma força nova, um apoio. Aquela conexão estranha estava de volta e eu senti um aperto bom no peito. Entretanto, a intensidade daquilo me deixou nervoso e acabei por virar o rosto para evitar seus olhos.
- Fique quieto, Benson. - Ele ordenou, trazendo o meu rosto de volta pelo queixo e terminando de passar o algodão molhado ali. - Agora, me dê a mão.
Estendi-a com a palma para cima. Com uma pinça, Felipe tirou cuidadosamente os pedaçinhos de vidro da pele e depois colocou um remédio que me deu a impressão de ter a mão queimada. Por fim, enrolou-a em uma gaze.
Abandonou o kit médico sobre a mesinha de centro e fez o costumeiro sinal com a cabeça para que eu o seguisse até o quarto. Subimos a escada no mais completo silêncio e, ao chegarmos no quarto, sentamos lado a lado na cama. Ficamos daquela forma por alguns minutos; Eu olhando para a mão machucada, ele brincando com o anel de caveira que tinha na mão direita. A escuridão da noite nos envolvia e era ligeiramente quebrada apenas pela pequena lâmpada ao lado da cama.
Por fim, Felipe falou, a voz rouca:
- O que aconteceu?
Respirei fundo. Meus amigos sabia sobre a morte da minha mãe, porém muitos deles não sabiam como nem por que aquilo havia acontecido. Alguns supunham que ela tinham câncer, outros que ela havia se suicidado. Scott era o único a saber a verdade, mesmo que não fizesse ideia do quanto eu era o culpado por ela.
- Eu cheguei em casa e encontrei tudo quebrado. - Comecei aos sussurros, revivendo a cena na minha mente. - Meu pai tinha tinha feito um rastro de destruição onde passou, quebrando tudo que eu tinha de lembrança da minha mãe. Eu o encontrei no banheiro, bêbado. Foi ele que me bateu e me acusou de ter matado a minha mãe.
- Como ele pôde te culpar por isso? - Felipe resmungou, chocado. Voltei a chorar, soluçando minha alma para fora, e ele me abraçou pelos ombros, permitindo que eu repousasse o rosto em seu pescoço. - Shhh, Benson. Não precisa contar.
Mas eu queria contar. Aquele momento era crucial. Naquele momento eu pronunciaria a frase que nunca tive coragem de dizer para ninguém. Em um sussurro, tão baixo que apenas ele era capaz de ouvir, confessei:
- E-Eu... eu realmente matei ela.
Ergui o rosto e o vi totalmente confuso, as sobrancelhas juntas e franzidas. Continuei falando, por entre o choro:
- É porque...Eu s-só... eu só tinha 11 anos e não tinha noção do que queria da vida. Um dia ela me obrigou a ir para a escola, mas eu não queria ir p-para ficar em casa dormindo e brincando, mas tive que obedecer mesmo assim. Quando eu e-estava na escola, fingi passar muito mal. Fiz uma verdadeira cena, chorei, gritei, falei que morreria de dor. O diretor ligou desesperado para a m-minha mãe e ela saiu do trabalho como uma louca e...
Eu não tinha mais forças para continuar. Coloquei o rosto entre as pernas, sentindo as mãos frias de Felipe subirem e descerem pelas minhas costas, como ele tinha feito antes, porém, nessa vez, não foi suficiente para me acalmar. Obriguei o ar a entrar em meus pulmões e finquei as unhas na minha calça, buscando as palavras.
- N-Na pressa para ir me buscar, ela passou em um sinal vermelho e... - Encolhi-me ainda mais. - ... E o ônibus e-esmagou o nosso carro contra um muro. Eu soube imediatamente que era minha culpa. M-Meu pai gritou comigo hoje, disse que eu era um garoto mimado e assassino, e é v-verdade. É verdade porque não... não quis ir para uma maldita escola e i-isso... e isso matou minha mãe. I-Isso a levou de mim.
Não aguentei mais. A dor era forte demais e eu não conseguia nem mesmo respirar corretamente. Algo sufocava meus pulmões, minha boca estava seca, minha cabeça latejava. Abracei as pernas e continuei chorando, desabando a dor que tinha sido escondida todos aqueles anos. Não adiantava dizer que eu tinha seguido em frente, que os pesadelos um dia sumiriam para sempre, que eu poderia viver sem a culpa porque nada disso era verdade.
Nem tinha coragem de levantar a cabeça, de perceber que o olhar de Felipe deveria ser de mais puro horror.
- Você não matou ela. - O menino dos olhos azuis disse e puxou meu rosto, obrigando-me olhá-lo de perto. - Me ouviu, Tody? Você não matou sua mãe! Foi um acidente, algo que você jamais poderia ter adivinhado que iria acontecer. Foi um acontecimento do destino que ia acontecer de uma forma ou de outra. Talvez, se você tivesse ficar em casa, outra coisa teria acontecido, talvez até mesmo algo pior. São coisas inexplicáveis que acontecem na vida, sem aviso, e nos devastam por completo. Mas entenda que ninguém te culparia. Você foi apenas a criança que ficou órfã.
Não consegui mais parar de chorar. Tentei baixar o rosto, enrolar-me sobre meu próprio corpo, mas Felipe o segurou, mantendo-o erguido pelo queixo.
- Às vezes... Às vezes as pessoas fazem coisas ruins, realmente ruins. Algumas vezes, as pessoas são mesmo culpadas por algo que aconteceu, mas esse não é seu caso e eu sei que, lá no fundo, você sabe disso. Todo mundo sabe quando é verdadeiramente culpado por algo e quando não é.
De repente, os olhos dele encheram de lágrimas e ele as segurou por alguns segundos enquanto se afastava de mim, virando-se de costas ao de levantar da cama. Em um choque, percebi que ele estivera falando de si mesmo nas entrelinhas e esperei que contasse alguma coisa, mas recebi apenas o silêncio como resposta. Um flash de memória me fez lembrar da foto que vi mais cedo e associá-la ao silêncio de Felipe: algo realmente tinha acontecido ali, entre ele e aquelas pessoas.
As minhas lágrimas ainda desciam, silenciosas e solitárias, quando ele se virou de novo, já com os olhos secos um minúsculo sorriso de reconforto entre os lábios. Um sorriso falso, eu sabia, mas ainda assim melhor que nada.
Foi quando percebi que não poderia voltar para casa naquela noite e, mesmo se pudesse, não o faria. Felipe estava ali, de pé ao lado da cama, esperando que eu dissesse algo, que o respondesse. Mas eu tinha certeza que ele já tinha entendido a minha resposta quando ergui o rosto e perguntei baixinho:
- Eu posso dormir aqui hoje? - Minhas bochechas queimaram de vergonha. Era duro admitir que precisava disso, de ficar ali naquela noite. A linha tênue que me ligava a ele ficava cada vez mais firme e eu senti a necessidade de tê-lo por perto naquela noite. Precisava me sentir seguro e Felipe me deixava em segurança.
- Hã... Bem... - Ele me observou com receio. - A cama extra está suja e sem fôrro.
- Tudo bem. - Passei as mãos pelo rosto, tendo cuidado com a gaze, e levantei da cama. De onde aquela ideia estúpida de dormir ali tinha saído? - Eu vou para casa.
- Não! - Felipe se aproximou de mim, os olhos azuis ligeiramente arregalados. - Você entendeu errado, Tody. Você pode ficar aqui sim. Quer dizer, a não ser que não queira dividir uma cama porque ela é tudo que eu tenho para oferecer.
Olhei para onde eu estava sentado segundos antes. Era uma simples cama de solteiro, coberta por um tecido acizentado, e o espaço jamais seria suficiente para duas pessoas dormirem com conforto. Provavelmente, eu ficaria quase caíndo dela, porém não me importei.
- Eu não tenho problemas com isso. - Falei.
Ele assentiu e eu podia dizer, pelo brilho em seu olhar, que estava surpreso. Desviou o olhar do meu rosto para minha camisa.
- Você vai precisar tirar essa roupa suja de sangue. Pode pegar alguma coisa no armário se quiser. - Felipe apontou para o móvel antes de entrar no banheiro. Fiquei alguns segundos parado, sem saber exatamente o que fazer e ouvindo o barulho da torneira aberta não muito longe, até tomar coragem e abrir a porta de seu guarda-roupas. Era uma bagunça completa ali dentro: roupas pretas se misturavam com coloridas e isso me fez perceber que nem sempre aquele garoto teve esse estilo de Morcego, coberto pelo tom preto. Era um pequeno detalhe que se associava à foto do menino sorridente e colorido que eu tinha visto mais cedo.
Quando Felipe voltou do banheiro, eu já tinha me livrado de minhas roupas, deixando-as manchadas de vermelho e emboladas em um canto do quarto. Ele me observou usando um de seus pijamas e, involuntariamente, fiquei vermelho de novo, sem entender bem o porquê.
- Bem, pelo menos coube em você, Capitão. - Ele riu e seu sorriso foi tão genuinamente lindo que acabei por sorrir junto, distendendo minhas bochechas ressecadas. Esse era um efeito que só aquele menino estranho tinha sobre mim e, em partes, isso me preocupava.
Felipe não disse mais nada, apenas se deitou em uma das pontas da cama, deixando o estreito espaço ao seu lado para mim. Era cedo ainda, muito mais cedo do que eu costumava dormir, porém meus olhos pendiam e meu corpo estava exausto, física e mentalmente. Quando deitei ao lado dele, não sabia o que fazer com os meus braços, que ficavam desconfortáveis em qualquer posição, mas acabei dando um jeito de deixá-los dobrados sob o meu rosto, tentando ficar o mais quieto possível.
- Boa noite, Garoto-Morcego. - Sussurrei, mas dessa vez, eu tinha certeza que ele sabia que aquelas palavras carregavam um tom completamente diferente. Eram confidentes, um agradecimento silencioso.
- Boa noite, Tody.
E então eu fiquei ali, parado por um longo tempo e olhando para as estrelas brilhantes no teto. Ouvia a respiração baixa e ritmada de Felipe ao meu lado, que ficava cada vez mais leve a cada passo que ele dava para o mundo dos sonhos. Senti o conforto de dormir perto de alguém depois de tanto tempo, alguém que manteria meus demônios afastados durante a noite.
Estranhamente, eu era um menino pequeno novamente enquanto ficava ali, apertado naquela cama. Assustado, porém, de certa forma, feliz e leve.
Depois de um tempo, sorri. E então, adormeci.
____________
Só tenho que pedir desculpas pela demora. Muitas coisas aconteceram e acabei sem tempo de corrigir esse capítulo (ele é um dos mais difíceis e complexos da história).
Tenho outra novidade: futuramente, estarei postando outro romance gay chamado Dançando Sob As Estrelas (outra razão pela demora). Avisarei aqui quando postar ela.
Adoro quando vocês comentam ;)
All the love
Kyv❤
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