Capítulo 17
Mate-me, por favor
O barulho era irritante, contínuo e forte o suficiente para me puxar lentamente dos braços do sono. Meu corpo demorou para entender realmente o que estava acontecendo e abrir os olhos ligeiramente, saindo de um sonho sobre futebol para a escuridão do meu quarto. Com um gemido de frustação, percebi que o relógio ao lado da minha cama marcava 2:16 da manhã e que o som que havia me acordado era o toque do meu celular.
Cegamente, tateei o criado-mudo com as pontas dos dedos até encontrar o celular. Sem nem ao menos checar de quem era a chamada, aceitei-a e levei o aparelho até o ouvido.
- Hum... - Resmunguei, com sono demais para falar qualquer frase completa.
- Todie! - A voz de Scott soou do outro lado. Ele disse somente o meu nome e entāo permaneceu em silêncio, possibilitando que eu ouvisse sua respiração ofegante, o assobio fraco do vento e o som contínuo e acelerados de seus pés batendo contra o chão. Ele estava correndo. - Ela disse sim! Tody, está me ouvindo? Marie disse sim para mim! Ela aceitou namorar comigo, cara!
A notícia, com toda a certeza, foi o suficiente para me despertar de uma vez por todas. Sentei-me na cama, enrolado em lençóis e arregalando os olhos para a escuridão. Mesmo que eu acreditasse veementemente no que Marie Elizabeth sentia pelo meu melhor amigo, obrigá-lo a dar o primeiro - e mais importante passo - tinha sido dar um tiro no escuro, pois poderia destruir o pouco que eles já tinham se ela o rejeitasse.
- Sério? - Perguntei, feliz.
- Mais sério impossível. - Ele continuava correndo do outro lado do telefone, pois ainda respirava pesadamente. - Eu escrevi o pedido na porra da pizza e... Jesus, quando ela abriu e ficou silêncio, foi a hora que eu mais quis chorar em toda a minha vida. Cara, eu tava lá com aquele terno quente como o inferno, um buquê de rosas e aquela porcaria de pizza, plantado do lado de fora da casa dela.
Não pude me impedir de rir ao imaginar tal cena. Eu podia ver cada detalhe, sentir cada segundo de angústica que Scott havia passado no silêncio da ausência da resposta, como se eu tivesse assistido tudo.
- Ela estava tão linda de pijama, cara. Tão, tāo linda, que quase desisti de tudo. Fiquei louco de medo de perder tudo aquilo e, se isso tivesse acontecido, nossa amizade não iria me impedir de te dar uma surra, Benson. - Ri com a ameaça, pois, com toda a sinceridade, eu teria permitido que Scott me batesse caso tudo aquilo tivesse acabado mal. Ouvi quando os passos ritmados dele começaram a reduzir de intensidade até pararem de vez, indicando que ele não mais corria. - Ela passou tanto tempo em silêncio que achei que fosse morrer e... Ah, calma.
Esperei pacientemente enquanto Scott respirava profundamente, recuperando o fôlego da corrida noturna. Ouvi-o dar mais alguns passos e entāo um som seco do que parecia alguém deixando-se cair sentado no chão. Haviam barulhos de vento e movimento do outro lado da linha, como se Scott estivesse escolhendo a melhor posição para segurar o celular e não resisti em perguntar:
- Onde você está, Scottie?
- Eu não sei exatamente. Alguma rua residencial. - Ele respondeu, respirando forte.
- Como assim você não sabe onde está? Irmão, você já notou que estamos no meio da madrugada?
- Eu sei, eu sei. Quando cheguei em casa, simplesmente não consegui dormir, então saí para correr e não sei bem por onde passei. Não iria conseguir conviver com isso sem te contar até amanhã. - Ele riu e revirei os olhos, mesmo que ele não pudesse ver. - Tody, ela disse sim e me abraçou. Ela simplesmente me abraçou e eu chorei.
- Você chorou? - Perguntei, espantado. Scott nunca fora um garoto que se deixasse levar pelos sentimentos, então pouquissímas coisas eram capazes de fazê-lo chorar.
- É, cara, chorei. Eu estava muito nervoso, tudo bem? Chorar é compreensível.
- Não estou julgando. - Ri, afinal, no fundo, eu era um chorão. - Só fiquei surpreso.
- Ela sussurrou de novo que aceitava e depois brigou comigo porque acabei deixando a pizza cair no chão. - Scott riu sozinho, a respiração já normalizada. Eu não poderia estar mais feliz pelo meu melhor amigo naquele momento, que parecia estar irradiando energia e felicidade por seus poros. - Seria exagerado se eu chegar na escola com mais flores para Marie?
- Seria. - Deitei-me sobre o travesseiro, abraçando-o ligeiramente de lado e apoiando o celular no rosto para ficar com os braços livres. - E, além disso, você não conseguiria encontrar uma floricultura aberta antes da aula começar.
- Tem Comissão de Professores, lembra? Não vamos ter os dois primeiros horários de aula.
- Eu tinha esquecido disso. - Confessei, coçando os olhos devido ao sono. A notícia do namoro de Scott e Marie Elizabeth havia me injetado com adrenalina, mas ela já tinha sido consumida pelo meu corpo e restara somente o sono mais uma vez. - Ainda assim, flores dois dias seguidos é exagero. Espere uma semana, pelo menos. Você sabe que Marie iria odiar uma demonstração de afeição pública.
Fomos envolvidos por um silêncio confortável e eu podia ouvir sua respiração do outro lado do celular. Bocejei longamente, forçando-me a não mergulhar no sono profundo de novo e deixar um eufórico e feliz Scott sozinho no meio da madrugada, perdido em algum lugar da cidade. O plano de ficar acordado, no entanto, estava prestes a ser um insucesso quando fui despertado pela voz do meu amigo:
- Eu poderia escrever milhares de poemas e, ainda assim, não ser capaz de explicar o que estou sentindo agora. É como se eu estivesse... Como se eu estivesse...
- Flutando? - Tentei completar seu raciocínio.
- Aham. - Concordou. - Você sabe como é isso?
- Eu tenho uma boa ideia. - Sorri para o escuro do meu quarto, fechando os olhos e pintando em minha memória o belo sorriso de lado que sempre enfeitava o rosto de Felipe. Dormir sem ele era como estar perdido em uma solitária escuridão, atormentado constantemente por pesadelos antigos. - Scottie?
- Aqui.- Ele bocejou, provavelmente pego pelo sono depois de ter parado com a corrida e se sentado.
- Depois da aula, vou contar para Felipe sobre a nossa aposta e também falar com Percy e Will sobre ele. Você me ajuda?
Eu havia demorado um bom tempo para adormecer mais cedo naquela noite, preso no pensamento do que poderia acontecer durante o dia. Não fazia ideia de como Felipe reagiria quando descobrisse que sim, eu não tinha me aproximado dele com as melhores intensões, tudo devido a uma estúpida aposta, mas que ele tinha sido a minha mudança. Em tão pouco tempo, Fê tinha se tornado meu pilar, um rosto familiar que afastava os pesadelos e me dava sonhos. No entanto, a reação dele não era a única que me preocupava: saber que Scott me apoiava era maravilhoso, mas eu não tinha certeza sobre o que meus outros amigos pensariam de mim.
- Cara, depois de hoje, eu faço qualquer coisa por você. - Meu melhor amigo riu, animado, e o som de passos, dessa vez lentos, recomeçou. - Bom, quase tudo, claro... Você entendeu!
- Você é um babaca. - Resmunguei, percebendo o duplo sentido que suas palavras carregavam, mas ri. Com o último resquício de coragem que eu tinha, cocei os olhos e propus: - Você quer que eu vá te buscar?
- Não precisa, Todie, eu me viro para chegar em casa. Valeu.
- Até mais tarde. - Falei por último e então a ligação se encerrou.
Poucos minutos depois, eu já havia adentrado o mundo dos sonhos novamente.
••••
O barulho irritante do despertador provocou meus ouvidos, fazendo com que eu me virasse cegamente e batesse a mão com força sobre ele. O som se extinguiu e bufei, afundando o rosto no travesseiro e chutando os lençóis com raiva, meu corpo e mente exaustos pelas poucas horas dormidas.
Após a ligação de Scott, eu havia conseguido adormecer rapidamente, porém os pesadelos logo surgiram, roubando minha paz. No primeiro deles, eu via o carro da minha mãe bater e rebater seguidas vezes contra um muro, esmagado entre este e o ônibus. A cena se repetia aceleradamente infinitas vezes e tudo o que eu podia fazer era ficar parado, incapaz de me mover e tentar impedir o acidente. Já o segundo pesadelo não era antigo, pois fora a primeira vez que o tive. Nele, eu estava parado no centro do refeitório da escola, todos os outros alunos me encarando sem piscar. Não havia som, qualquer que seja, mas eu sabia que tinha feito algo muito errado, afinal o olhar de todos era acusador.
Acordei suado e trêmulo, minha mente conturbada com as imagens. A presença de Felipe sempre roubava meus medos e pesadelos e sua ausência fez tudo se tornar ainda pior, a escuridão palpável se tornando quase sufocante. Obviamente, isso me fez ter ainda mais medo de contar a Felipe tudo o que eu deveria e perdê-lo.
Suspirei e coloquei os pés para fora da cama com um gemido sonolento. Eu me arriscaria muito durante o dia, mas já tinha meu plano formado e ele consistia levar Felipe para casa e só então contar tudo o que eu sentia. Meu peito batia descompensadamente só em pensar que talvez ele não quisesse mais ficar comigo quando descobrisse sobre a aposta, mas eu sabia que tinha que contar e me livrar desse peso de uma vez por todas. Seja como fosse, sem aquela aposta, eu nunca teria falado com Felipe e teria perdido de conhecer uma das pessoas mais incríveis da minha vida.
Peguei meu celular para mandar uma mensagem para o meu menino de olhos azuis, mas ele não ligou sob meus dedos. Encarei com cara feia a tela preta e tentei mais uma vez ligá-lo, apenas para constar o que eu já sabia: ele estava descarregado. Bufei, resmungando comigo mesmo que deveria ter olhado a porcentagem da bateria após a ligação com Scott.
Segui para o banheiro e fiz minha higiene matinal, preguiçoso demais para tomar um banho completo. Depois, vesti qualquer coisa que encontrei dentro do armário, sem me importar realmente em como meu visual estaria durante o dia, mas tendo o cuidado de colocar mais perfume. Felipe gostava do meu cheiro e isso importava mais que todo o resto.
Desci as escadas, passando na cozinha e pegando uma maçã da geladeira, pois estava com sono demais para buscar outra coisa. Prendi-a entre os dentes e fui para o carro, ligando o motor e partindo de casa.
Dirigi tranquilamente até a escola, batucando no volante ao som de I Could Have Lied e mordendo o lábio de baixo com força depois de ter devorado o meu simples café-da-manhã. Minha mente não parava de planejar o que eu diria para Felipe, criando os mais diversos cenários, todos com um final diferente.
"Fê, eu menti sobre..."
Não. Péssimo começo.
"Eu quero que você saiba que isso ficou no passado..."
Pior ainda.
"Fê, eu preciso te contar algo e talvez você não goste de descobrir..."
Havia ainda como piorar?
Eu ainda estava pensando nisso quando estacionei na vaga de sempre do estacionamento da escola, vendo como o estacionamento estava vazio de pessoas e veículos.
Normalmente os alunos ficavam ali fora, encostados em seus carros e conversando em grupos até ouvirem o sinal, mas naquela manhã, parecia mais um estacionamento fantasma, com apenas duas dezenas de solitários carros. A maioria ali havia optado por dormir mais tempo, no entanto, eu sabia que Fê vinha de ônibus e não poderia evitar chegar cedo, então fiz o mesmo.
Entrei no colégio, piscando os olhos ao ver poucas pessoas andando pelos corredores. Era estranho ver aquele espaço com tamanha escassez de alunos, porém isso não justificava inúmeros olhares direcionados a mim, mais que normalmente. Algumas delas seguravam ser panfletos do tamanho de uma folha A4, olhavam para ele, depois para mim e cochichavam uns com os outros.
O que está acontecendo?
Andei até o meu armário, olhando para o de Felipe, que não ficava muito longe. Naquele horário, ele já deveria estar ali, encostado no metal frio e com os fones de ouvido conectados, então onde ele estava?
Abri meu armário, franzindo o cenho para duas meninas que me encaravam. Confuso, capturei os dois livros que usaria na aula e apoiei-os no braço. De repente, senti um cutucão no meu ombro e me virei, deparando-me com uma garota que eu nunca tinha me dado ao trabalho de falar na vida. Ela abraçava os livros sobre o peito e usava óculos de armação arredondada exageradamente grande para seu rosto. Com um olhar carregado de pena, ela pousou um papel dobrado sobre os livros que eu segurava.
- Você deveria ir até a quadra. - E então fugiu, virando-se de costa e andando rápidamente para longe, como se estivesse com medo de mim.
Franzi o cenho, sem entender o porquê dela dizer isso. Será que era onde todos os alunos estavam? Fechei meu armário com um som seco e comecei a percorrer os corredores até aquele que levava à quadra fechada do colégio, que usávamos em dias de chuva ou neve para os treinos do futebol. Segurando com cuidado os livros para que não caíssem, desdobrei com os dedos o papel que a menina havia me dado e imediatamente estanquei no lugar.
Era a cópia de um dos desenhos que Felipe havia feito para mim.
Meu coração acelerou quando reconheci meu próprio rosto naquela folha, as linhas mais escurecidas por se tratar de uma cópia e não do desenho original feito a lápis. Minha pele formigou de medo ao ver minha imagem, de braços cruzados e com um biquinho nos lábios, e perceber que isso jamais poderia ter se espalhado pela escola. Senti meu corpo tremer a cada passo que eu dava, um mais rápido que o outro, em direção à quadra, o papel com meu desenho amassado entre meus dedos.
Quando estava na metade da distância das portas, ouvi uma voz familiar falar em um microfone e muitas pessoas gritarem em resposta ao que estava sendo falado, concordando com o que era dito. Com os nossos professores presos em uma reunião do Conselho, nós, além de não termos as duas primeiras aulas, também não éramos fiscalizados, por isso o que estava acontecendo por trás daquelas portas podia ser qualquer coisa.
Empurrei a porta. Meu mundo desabou.
Cópias dos desenhos que Felipe tinha feito de mim estavam jogadas por todos os lados. Centenas delas, espalhadas pelo chão, coladas nas paredes em tamanhos variados, penduradas em cordas como se estivessem em exibição fotográfica. Ao fundo da quadra, vi uma caixa de som montada e a arquibancada empilhada de alunos, que pareciam estar se divertindo bastante com o que era falado.
Parei perto da porta, finalmente reconhecendo a voz familiar eu tinha ouvido como a de Samuel. Ele segurava um bloco de folhas em uma mão e o microfone na outra, não percebendo minha presença e continuando o que dizia antes:
- Olhem bem para essa... Como podemos chamar uma coisa dessas? - E riu alto, o som irritante ecoando-se pelos muros, e apontou para algo fora do meu campo de visão.
Eu estava perdido, confuso com toda aquela situação. Não sabia o que havia acontecido, nem o que significava aquela reunião de pessoas na quadra da escola, mas era impossível pensar algo bom ao ver todos os desenhos de Felipe expostos daquela forma. Nossa vida íntima, momentos meus que compartilhei somente com Fê, estavam nas mãos das pessoas, para que rissem e interpretassem como quisessem. Com certeza haviam remexido no diário em minha mochila, retirado as páginas e descoberto quem segurava o lápis por trás delas. Meu coração batia descompensadamente e eu segurava os livros com mais força, minha mente vagando nebulosamente de pensamento em pensamento, mas fixando naquele que se perguntava onde meu menino de olhos azuis estava.
E foi quando eu o vi.
Samuel caminhou alguns passos para a frente e pude vê-lo. Felipe. De joelhos no centro da quadra, a cabeça baixa entre as mãos, as bochechas brilhantes pelas lágrimas que desciam continuamente, as roupas pretas recobertas com um pó branco que só poderia ser farinha e uma gosma amarelada de gema de ovo. Percebi que era para ele que apontavam e dele que riam, maldosamente transformando o seu choro em um espetáculo.
Não consegui me mexer. Não consegui respirar.
Algumas pessoas perceberam minha presença fantasmagórica próxima a porta e apontaram, fazendo com que Sam se virasse para mim com um enorme sorriso nos lábios, como se visse um grande amigo. Ergueu as folhas com a escrita de Felipe nelas, exibindo-as para mim enquanto se aproximava e apontava para mim orgulhosamente.
- Como eu estava dizendo antes do nosso celebre convidado chegar, - Continuou Sam, balançando a cópia do diário de um lado para o outro. - Nosso Capitão ganhou uma aposta e tanto com toda essa história! Tenho certeza de que passou por muitos maus momentos para cumprir o que prometeu. Quem diria que ele conseguiria realmente desmascarar essa bichinha?
Apontou para Felipe, que tinha erguido ligeiramente os olhos e focado-os em mim, o branco totalmente desaparecido sob a vermelhidão das veias injetadas. Não piscou mais, as orbes azuladas presas em mim e somente em mim, e sua expressão se distorceu da tristeza e vergonha para algo muito mais intenso.
Ódio.
Vi-me novamente preso em mim mesmo. Eu estava paralisado por aquele olhar e as milhares de palavras que eram transmitidas por ele. Palavras duras, de culpa, mágoa, tristeza e desapontamento. Palavras jogadas pelos olhos de Felipe, as quais cortavam minha pele, deixando-a sangrando ao chão, encharcando minha alma com o vermelho escuro e viscoso. O silêncio de seus lábios não suprimia a força do que era transmitido.
Faça alguma coisa! Minha mente implorou.
Mas não consegui me mexer. De repente, eu tinha voltado no tempo, para o dia em que me anunciaram o falecimento da minha mãe. O dia em que minha mente havia se desconectado do meu corpo, não respondendo aos meus comando, deixando-me flutuar na inconstância de um limbo interminável. Os sons soavam diferentes, minhas pernas tremiam e eu não conseguia mais sentir o meu corpo, nem mesmo pensar corretamente. Simplesmente travei, meus olhos desfocados ainda sobre Felipe, a imagem borrada demais para ser nítida, enquanto Samuel continuava com seu discurso:
- Eu li esse diário algumas vezes e então descobri mais uma coisa: o viado aqui também tem outro segredo a esconder. - Sam riu, genuinamente contente e sem nenhum traço de remorso em seu rosto. - Alguns anos atrás, ele se envolveu em um grave acidente que causou a morte de duas pessoas.
Não! Isso não!
Quis correr até Felipe, agarrá-lo e nunca mais soltá-lo. Dizer o quanto ele era importante, como seu sorriso era o mais bonito do mundo e tudo em si era maravilhoso, até mesmo seus defeitos. Quis pedir desculpas por aquilo, por não ter sido mais cuidadoso com o que ele havia me confiado, por permitir que ele sofresse daquela forma com algo que já tinha sido doloroso demais.
Mas não consegui me mexer.
- A bicha estava louca e causou todo o acidente. - Sam falou, pegando uma folha de jornal das mãos de um de seus cães seguidores. - Segundo os jornais da época, ele estava bêbado e saiu do local em choque, berrando que era o culpado. Pouco depois, entrou em coma por dois dias. - Virou-se para Felipe, apontando o dedo dramaticamente: - Ele fez o carro perder o controle. Ele matou duas pessoas. Estamos diante de um assassino, meus amigos.
Eu tremia. Todo o meu corpo tremia e eu não conseguia sentir minhas pernas nem minhas mãos. Faça alguma coisa!
- Um assassino gay, ainda mais! - Berrou alguém da platéia.
- Fica desenhando homens nus! - Gritou outro.
Com um resquício de consciência, esse comentário me fez perceber algo: Sam não tinha feito cópias do desenho em que eu estava dormindo na cama de Felipe, aquele que me mostrava da forma mais simples e íntima possível. Ele não queria expor a mim e sim a Felipe, pois saberia que isso seria muito pior que arrancar meu coração e jogá-lo fora. Esse era o motivo pelo qual Samuel desfilava com um sorriso orgulhoso, sabendo que finalmente havia conseguido o que mais queria: me quebrar.
- Deseja dizer alguma coisa, Benson? Abra um sorriso, Capitão! - Ele girou na minha frente, os braços abertos como se estivesse em uma verdadeira apresentação teatral. - Nada disso teria sido possível se você não tivesse nos mostrado tudo isso! Estamos eliminando um doente do nosso colégio, afinal, ele também é suicida, não é?
Algumas pessoas arregalaram os olhos, surpresas e confusas, perguntando-se se aquelas palavras eram realmente literais, e senti algo molhado escorrer pela minha bochecha, demorando alguns segundos para perceber que eu chorava também. Uma lágrima, a única gota solitária capaz de transbordar da minha dormência espiritual.
- Acho que nossa bichinha não conseguiu conviver muito bem consigo mesmo depois de matar duas pessoas. - Sam continuou, andando até Felipe e abaixando-se ligeiramente ao seu lado, provocando-o mais de perto. - E então você quis ir passear no além mundo também, não foi?
Ele teria continuado a falar, mas o grito que ecoou pela quadra o cortou. Um grito de puro desespero e frustação, de dor e agonia, da mais pura angústia possível sentir por um ser humano. Um grito que cortou minha respiração de tão desesperador que era, tão doloroso quando lâminas finas de vidro perfurando a pele. Um grito vindo do meu menino de olhos azuis seguido de palavras berradas:
- EU ODEIO VOCÊS! TODOS VOCÊS! - Felipe ficou de pé e empurrou Samuel pelo peito com as mãos, que o fez cambalear para trás e rir da demonstração de repúdio. Alguns alunos vaiaram e outros riram enquanto Fê andava com passos bambos até mim.
Meu peito inchou e minha respiração se tornou superficial. Senti que estava afundando em uma água escura, densa, que me empurrava cada vez mais para o fundo, cada vez mais longe da superfície, cada vez mais para longe do ar que me manteria vivo. Cada vez mais para longe de Felipe. Era quase irônico, já que ele se aproximava de mim com passos descontrolados e rápidos.
- E, acima de tudo eu odeio você. - Sua voz era baixa, rápida e cortante. Fê bateu as mãos sobre o meu peito com certa força, o cabelo esvoaçante e esbranquiçado de farinha, as bochechas cobertas por uma cortina de lágrimas e gema de ovo. - Eu me abri para você. Eu confiei em você.
Abri a boca, mas nenhuma palavra se formou entre os meus lábios. Eu precisava absolutamente falar que o que foi dito era mentira, que eu nunca contaria o que ele tinha me confiado para ninguém, que eu não fazia ideia daquilo tudo. Eu precisava dizer que ele tinha meu coração, minha alma e meu corpo para si, que eu não era a mesma pessoa e tudo por sua causa. Precisava dizer para Felipe que aquele formigamento bom que eu sentia perto dele só podia ser traduzido como amor.
Mas minha voz me traiu, assim como meu corpo. Eu estava em estado de choque, parado e silencioso.
Felipe frente a frente comigo, o rosto a centímetros do meus, desafiando-me a dizer algo. Os seus olhos queimavam de dor e angústia, mas ainda assim havia minúsculos pingos coloridos que denunciavam esperança. Esperança de que eu falasse, esperança de que eu me mexesse, esperança que eu o defendesse. Porém, quando nenhuma dessas coisas aconteceu, ele baixou a voz, falando com voz rouca e direcionando cada pequena palavra para mim:
- Eu espero que você morra!
Passou a mão no rosto para afastar a clara de ovo que escorria até quase seus olhos e então se foi, correndo para fora da quadra com passos rápidos e batendo a porta atrás de si com certa força. Eu, no entanto, não consegui fazer nada além de respirar e observar desfocadamente a porta atrás de mim, a voz irritante de Samuel servindo como uma terrível trilha sonora. Havia um zumbido intenso em meus ouvidos e então, como se o ar ao meu redor tivesse se tornado mais denso, percebi o gigantesco vácuo se expandir em mim.
Felipe.
Felipe.
Felipe.
Eu o perdi.
Ele me odeia.
Eu preciso dele.
E então meu corpo finalmente ligou e eu pude me mexer novamente. Ele respondeu a todos pensamentos e minhas mãos agiram antes mesmo que eu percebesse: dei dois passos para frente e soquei um sorridente Sam tão forte que ele caiu zonzo no chão, totalmente sem chance de se proteger. Caí sobre ele, pontos negros surgindo em minha visão enquanto eu não parava de socá-lo, manchando minhas mãos com sangue.
Eu não pensava, não respirava, só gritava forte e socava o corpo já fraco e desvanecido sob mim. O mundo virou um caos em poucos segundos: pessoas gritaram e fugiram, outras tentaram me agarrar, mas não eram fortes o suficiente para me segurar. Minha visão ficou embaçada e avermelhada, de repente vendo sangue em todos os lugares e em lugar nenhum. Fui consumido pelo desejo de arrancar a vida de Samuel, de socá-lo até que perdesse a consciência e parasse de respirar para sempre. Eu o queria morto.
- QUE PORRA ESTÁ ACONTECENDO AQUI? - Ouvi a voz de Scott perto de mim, seguido do bater da porta da quadra. Ele me agarrou por trás, prendendo meus braços em minhas costas e puxando meu corpo para longe da poça de sangue que Sam tinha se transformado.
- ME SOLTA! - Berrei, debatendo-me enquanto meu melhor amigo me apertava ainda mais em seus braços. - ME DEIXA MATAR ELE! ME DEIXA MATAR ELE!
Mas Scott não soltou. Apenas manteve o aperto e sussurrou incansavelmente "calma, calma, calma" perto da minha orelha. Depois de alguns segundos, comecei a chorar compulsivamente enquanto a raiva se diluia em dor. Perdi a força das pernas, quase indo ao chão, mas sendo segurado pelo meu melhor amigo. Os pontos pretos aumentaram sobre a minha visão e as vozes foram ficando cada vez mais longe, como se todos estivessem falando dentro d'água.
Marie Elizabeth surgiu afobada no meu reduzido campo de visão e agarrou meu rosto, puxando-o para cima quando meu corpo se curvou para frente. Sua expressão era de puro horror e ela tentava falar alguma coisa, mas as palavras eram incompreensível para mim. O rosto dela, colorido pela maquiagem, foi desaparecendo lentamente junto com o restante do mundo.
Por um segundo, desejei que aquele fosse o meu fim, minha morte. A vida havia saído correndo pela porta e eu não tinha sido capaz de ir atrás dela.
Felipe.
Felipe.
Seu desejo se fez. Estou morrendo.
E então tudo ficou preto.
____________________
Olá, meus amores.
Me desculpem pela demora gigantesca para esse capítulo. Além de viajar, ainda sofri com um bloqueio criativo terrível (por isso odiei esse capítulo bastante). Ele é bem triste, mas eu esperava fazer algo melhor.
Enfim, estamos na fase dramática da história. Preparem-se.
Até a próxima,
Kyv❤
Twitter: direcaomars
Ps.: MUITO, MUITO OBRIGADA PELO MEIO MILHÃO DE LEITURAS! Isso vale o mundo para mim! ❤❤❤
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