01 ⨯ Segredos do coração
Blair Antunes sempre se sentiu como uma garota comum em meio a uma família que parecia ter assinado um contrato vitalício com o talento. Enquanto seus primos brilhavam nas artes, esportes e até em debates acadêmicos, Blair parecia destinada a ser a espectadora que aplaudia dos bastidores. A dança, algo que deveria ser uma válvula de escape, era uma atividade que ela fazia mais por insistência do que por paixão — um lembrete constante de que, enquanto as outras meninas flutuavam pelo palco, ela mal conseguia se sentir no ritmo. Blair suspirou, levemente frustrada com sua performance anterior. Seu pé esquerdo ainda estava dolorido da queda que havia levado no estúdio e não pela primeira vez, ela se perguntou se realmente aquele era seu melhor, se não havia mais a ser entregue, se seus talentos se resumiam de maneira tão medíocre. Ela tirou o pé de dentro do tênis e o massageou levemente, abafando um ruído entre seus dentes.
Naquela tarde abafada, Blair estava na sala dos Grier, esperando Mathew chegar do treino. A menina se sentia como se estivesse em um museu onde tudo era intocável, meticulosamente planejado para ser admirado. Os sofás eram revestidos de um veludo que parecia nunca ter sido marcado por peso algum, como se ali ninguém ousasse se sentar. A mesa de centro, com detalhes entalhados em madeira escura, ostentava arranjos de flores cuidadosamente dispostos e livros que pareciam mais decorativos do que lidos. As paredes, pintadas em um tom suave de creme, eram adornadas com molduras douradas que abrigavam pinturas clássicas — naturezas-mortas e paisagens que pareciam ter saído de uma galeria europeia.
Blair olhou ao redor, as mãos entrelaçadas sobre o colo, e deixou o olhar vagar até a estante que se erguia imponente em um canto. Estava preenchida com volumes encadernados, alguns com títulos em línguas que ela não reconhecia. Talvez fossem apenas adereços, mas a perfeição das lombadas alinhadas fazia parecer que carregavam o peso de gerações de intelectuais. O aroma sutil de madeira encerada e flores frescas preenchia o ambiente, tão diferente do cheiro de café e bolo de fubá que costumava dominar sua própria casa.
Por um momento, ela se levantou e foi até a janela, onde as pesadas cortinas de veludo azul-escuro estavam puxadas para o lado, revelando uma vista privilegiada do jardim perfeitamente aparado. Sentiu-se pequena ali. Não era a primeira vez que aquele pensamento a invadia — que ela, com seus tênis um pouco gastos e as unhas pintadas de forma apressada, era uma intrusa naquele mundo cuidadosamente planejado. Mas, ao mesmo tempo, havia algo quase fascinante na quietude da sala, na forma como cada peça parecia ter sido escolhida para contar uma história de elegância.
Ela voltou para o sofá. Afundou levemente na almofada e passou os dedos pelo tecido, sentindo a textura macia. Era impossível não pensar em como aquele lugar era diferente do que ela conhecia. Modernidade monocromática parecia ter sido banida dali, e substituída por uma tradição que se recusava a ceder ao tempo. Conhecia Mathew desde a infância, mas a diferença entre o mundo dele e o dela nunca deixava de impressioná-la. Não só financeiramente falando, mas também em seus ciclos sociais.
Quando Mathew entrou, havia algo de descontraído, mas ao mesmo tempo revigorante em sua presença. O frescor do banho ainda parecia envolvê-lo, com os cabelos escuros ligeiramente úmidos caindo sobre a testa. Carregava a mochila sobre um ombro e uma garrafa de água na outra mão, mas parecia indiferente ao cuidado com que os móveis ao redor foram dispostos. Mathew era o tipo de pessoa que parecia se adaptar a qualquer lugar, sem esforço, como se até mesmo aquela sala vitoriana tivesse sido feita para acolhê-lo.
Ele jogou a mochila no canto, com um gesto familiar e despreocupado, e deixou-se cair ao lado de Blair no sofá, os cabelos ainda brilhando sob a luz do lustre. Pegou o controle do videogame com um sorriso casual, como se aquele fosse o seu verdadeiro trono, a única peça que fazia sentido no meio de tanta formalidade. Blair, por reflexo, calçou rapidamente o tênis, receosa de que ele notasse e fizesse algum comentário ácido sobre sua última tentativa desastrosa no estúdio de dança.
— Preparada para mais uma surra? — Mathew perguntou, com um sorriso que irradiava provocação.
Blair tentou rir, mas o som saiu vazio. A dor no pé latejava, e o tênis parecia um castigo, apertando e lembrando-a da queda no ensaio. Mathew, sempre atento, notou seu silêncio incomum e inclinou a cabeça, curioso.
— O que foi? Está com aquela cara de quem comeu limão.
Ela hesitou antes de responder, seus dedos distraidamente alisando a costura do sofá. A textura do tecido parecia oferecer uma fuga momentânea, uma desculpa para não encará-lo diretamente.
— Só estou... sei lá. Me sentindo fora do lugar com o grupo de dança, mais do que o normal.
Mathew suavizou o sorriso, trocando a provocação por algo mais empático. Ele tinha esse talento irritante de compreender Blair sem que ela precisasse explicar muito. Recostou-se no sofá, seus olhos escuros estudando o rosto dela com cuidado.
— Blair, você sabe que não precisa provar nada para ninguém, certo? Você dança porque gosta, e é isso que importa. Além disso, ninguém faz a versão "pés de chumbo" como você.
Ela riu, mas havia um quê de tristeza em seu riso, algo que ele percebeu de imediato. Mathew ajustou a postura, se inclinando levemente para frente, como se a proximidade pudesse fazer com que suas palavras tivessem mais peso.
— Estou falando sério. Você tem essa coisa... — Ele gesticulou com as mãos, tentando encontrar as palavras certas. — Você sente a música, sabe? Talvez não seja perfeito, mas é real.
Blair levantou o olhar, estudando-o por um momento. A luz do abajur ao lado projetava sombras suaves no rosto de Mathew, suavizando sua expressão.
— Você sempre tenta me animar, né? — disse ela, com um sorriso que não chegou completamente aos olhos.
— É o meu trabalho, lembra? Fã número um, terapeuta não oficial... — Ele piscou, brincalhão, enquanto pegava um controle de videogame da mesa de centro e entregava nas mãos de Blair. — Além disso, minha vida seria muito chata se eu não tivesse que te convencer de que você é incrível.
Dessa vez, Blair riu de verdade, um som breve, mas genuíno. Mathew era uma das poucas pessoas que conseguia atravessar a muralha de insegurança que ela mesma construíra.
Blair permaneceu no grupo de dança por algo que ia além da própria vontade ou habilidade. Era uma promessa, um pacto selado em um desses momentos que só fazem sentido na adolescência, quando tudo parece eterno e inquebrável. No início do ensino fundamental, ela, Kayla, Lídia, Jade e Rachel haviam decidido que ficariam no grupo até o último ano do ensino médio, independentemente das críticas ou da exaustão. Na época, parecia uma promessa romântica, quase poética — uma forma de resistir à pressão crescente de escolher carreiras, passar no vestibular e seguir em frente.
"Vamos dançar até o fim", Kayla dissera, erguendo a mão para um toque coletivo. E, entre risos e exclamações de concordância, o acordo havia sido selado. Para Blair, o compromisso se tornou um símbolo de lealdade, um fio que mantinha o grupo unido apesar das diferenças. Era mais do que apenas dançar; era sobre permanecer fiel a algo maior, algo que pertencera a todas elas, mesmo que agora parecesse desbotado e fora de lugar.
Ao longo dos anos, o pacto resistira aos olhares críticos de quem dizia que já não era hora para ensaios e coreografias. "Vocês ainda estão nisso? Não é melhor focar no vestibular para a faculdade?" Ouvir isso era comum, mas as meninas apenas sorriam e davam de ombros. Era uma escolha delas, e, mesmo quando o brilho do entusiasmo inicial diminuía, havia algo reconfortante em saber que aquele compromisso ainda as conectava. Para Blair, a dança tornou-se mais sobre o ato de manter essa promessa do que sobre qualquer outra coisa. Cada ensaio era uma pequena vitória, um lembrete de que, por mais que o futuro a pressionasse, ela ainda tinha aquele espaço onde tudo fazia sentido. Mesmo quando as dores no pé ou a falta de confiança ameaçavam derrubá-la, ela continuava, porque sabia que não estava sozinha.
Era estranho pensar que, no fim, talvez fosse isso que as mantivesse juntas. Não a dança em si, mas o pacto silencioso de que, por alguns minutos ou algumas horas, poderiam esquecer o resto do mundo e apenas se movimentar, rir e ser adolescentes.
Mais tarde, Blair chegou ao estúdio de dança, apoiando levemente o peso no pé machucado, o desconforto transformando cada passo em um lembrete sutil. O ambiente estava silencioso à primeira vista, mas logo foi preenchido por vozes animadas e o som dos pés batendo no chão enquanto as meninas aqueciam. O estúdio, com suas paredes brancas e espelhos que iam do chão ao teto, parecia maior do que realmente era, refletindo não apenas os movimentos das alunas, mas também suas expressões — ora confiantes, ora cheias de ansiedade velada.
No canto, Kayla ajustava a fita da sapatilha com a precisão de alguém que fazia aquilo há anos, enquanto Lídia ria de algo que Jade havia sussurrado, sua risada ecoando pelo espaço. Rachel, como sempre, estava no centro, conferindo o reflexo no espelho e ajustando uma mecha de cabelo com a ponta dos dedos, a postura impecável como se estivesse prestes a gravar um comercial. As meninas brilhavam no estúdio, seus movimentos fluindo com a elegância que parecia natural para elas, cada uma carregando uma presença magnética que dominava a sala.
Blair tentou não se sentir deslocada enquanto se juntava ao grupo, o pé latejando discretamente a cada passo. Ela ajustou a saia, sentindo-se pequena em comparação às colegas. A professora Lauren, com o coque severo e os olhos atentos, observava as alunas como um falcão, corrigindo posturas com um tom autoritário. Apesar da imparcialidade que deveria transmitir, todos sabiam que seus elogios eram invariavelmente direcionados a Rachel, sua filha e a favorita declarada.
— Excelente, Rachel, exatamente assim! — Lauren exclamou, cruzando os braços enquanto observava os movimentos graciosos da filha. — Meninas, tentem seguir o exemplo.
Rachel lançou um sorriso contido pelo espelho, uma expressão que parecia quase ensaiada, antes de voltar a se concentrar na coreografia. Blair, por sua vez, esforçava-se para acompanhar os passos, mas o pé machucado tornava os movimentos mais lentos, e ela sentia os olhos críticos de Lauren pesarem sobre ela.
— Blair, mais leveza nos braços — disse a professora, em um tom que parecia indiferente.
Blair assentiu rapidamente, tentando ajustar sua postura, mas a crítica se somou à sensação constante de inadequação. Ela sabia que Rachel era impecável, e, por isso, qualquer erro que cometesse parecia ainda mais evidente.
Enquanto os ensaios continuavam, Blair notou como os sorrisos das meninas se tornavam mais tensos e as trocas de olhares, mais frequentes. Apesar das risadas ocasionais e dos comentários aparentemente casuais, havia uma competição silenciosa entre elas, uma dança de egos mascarada por amizade.
No fim do ensaio, enquanto as meninas se reuniam para beber água e trocar as sapatilhas por chinelos no vestiário, Blair sentou-se em um banco próximo à janela, massageando discretamente o tornozelo. O vento frio entrava por uma fresta, trazendo um alívio momentâneo ao calor que se acumulava no estúdio. Ela olhou para as amigas, que agora discutiam animadamente sobre um vídeo do Instagram, e sentiu a familiar distância se formar. Não era apenas física, mas emocional — como se houvesse um muro invisível separando-a da confiança quase inabalável que elas exalavam. Rachel passou por ela com a elegância casual de quem sabia que todos os olhos estavam voltados para si.
— Você está bem, Blair? — perguntou, mas sua voz soou mais educada do que preocupada.
Blair acenou com a cabeça, forçando um sorriso.
— Só um pouco cansada, mas tudo certo.
Embora agora parecesse que um abismo as separava, Blair e Rachel já haviam sido inseparáveis. Na adolescência, compartilhavam segredos e aventuras que pareciam ser o centro de suas vidas. Eram sempre as duas que se arriscavam a ir a festas juntas, rindo de como conseguiam se passar por mais velhas. Foi com Rachel que Blair tomou seu primeiro gole de bebida alcoólica, em uma noite que ainda permanecia vívida na memória. Conseguiram comprar em um bar duvidoso, em uma esquina escura, os corações acelerados pela adrenalina de fazer algo proibido. Naquele tempo, Rachel parecia ser movida por uma mistura de ousadia e lealdade, alguém com quem Blair acreditava que sempre poderia contar.
Mas algo mudou. No último ano, desde que Rachel começou a namorar, uma nova distância surgiu entre elas. A amiga que antes era um porto seguro parecia agora distante, mais preocupada em manter a perfeição que os outros esperavam do que em reviver as cumplicidades de antigamente. Blair não conseguia decidir o que era mais estranho: a mudança repentina ou o fato de que ela parecia irrevogável.
— Bom, descanse bastante. — Rachel murmurou, antes de se virar e se juntar às outras com um sorriso luminoso.
Ela suspirou, mas antes que pudesse se afundar mais nessa melancolia antiga, as vozes animadas de Kayla e Lídia a puxaram de volta à realidade.
— Vocês viram a Lisa hoje na escola? — Kayla começou, enquanto ajustava a maquiagem no espelho. — Ela está exalando Mathew Grier por todos os poros.
Blair fingiu desinteresse, mas seus dedos apertaram o elástico que prendia o cabelo enquanto desfazia o coque. Ela tentou disfarçar o desconforto, focando em se livrar do collant e da meia calça para evitar participar. Era uma regra não escrita entre elas: fofocar fazia parte da rotina, mas o alvo daquela vez a incomodava. Não era apenas o fato de Lisa estar interessada em Mathew. Era o jeito como a menção ao nome dele fazia algo dentro de Blair se contorcer.
— Parece que ela esqueceu que o resto do colégio existe, né? — Lídia complementou, revirando os olhos com exagero teatral.
— Trágico mesmo, — Rachel acrescentou, surgindo com aquele tom calculado, tão doce quanto afiado. — Lisa Stone correndo atrás de alguém? Logo ela, que sempre age como se estivesse acima de tudo?
Lisa Stone, de fato, parecia estar acima de tudo. Vinda de uma família cuja fortuna era moldada por negócios milionários, ela encarnava a alta sociedade com uma naturalidade que intimidava. Tudo nela, desde a postura impecável até as roupas sempre de grife, exalava a confiança de quem sabia exatamente onde pertencia.
— Talvez a Lisa só não ligue para o que os outros pensam, — Jade disse, quebrando o tom jocoso da conversa com sua habitual seriedade. — Se quer o Mathew, vai atrás, e não está nem aí para quem percebe.
Um silêncio desconfortável pairou sobre o grupo. Jade tinha esse talento peculiar de ir direto ao ponto, cortando a superfície com uma precisão que deixava todos expostos. E, com uma única frase, ela havia tocado uma verdade que nenhuma delas ousava encarar: a vulnerabilidade que todas escondiam tão cuidadosamente.
Curiosamente, Jade e Lisa tinham uma dinâmica diferente das outras. Apesar de suas personalidades contrastantes — Lisa, com seu charme magnético e presença dominante, e Jade, com sua postura reservada e olhar atento —, havia algo entre elas que ultrapassava palavras. Uma cumplicidade quase telepática. Quando Lisa lançava um comentário mordaz, Jade muitas vezes completava com uma observação afiada ou, simplesmente, aquele sorriso enigmático que parecia dizer: "Eu sei exatamente o que você quis dizer." No fundo, era como se elas fossem uma dupla ensaiada, um equilíbrio perfeito entre fogo e gelo.
A essa altura, Blair já estava com todas as suas coisas arrumadas e desarrumadas dentro da bolsa, o pé na porta para ir embora antes que a fofoca se alastrasse. Seus pensamentos se prenderam ao que ouvira. Lisa Stone queria Mathew Grier — e fazia sentido. Ele era o tipo de garoto que parecia inalcançável. Capitão do time de basquete, carismático e descontraído, Mathew era admirado por todos. Lisa não se contentava com pouco, e Mathew era o prêmio final.
Blair encostou a cabeça na janela de seu quarto, observando a luz da noite tingir o céu com tons de azul. A brisa suave entrava pelas cortinas semiabertas, trazendo o cheiro doce de flores do jardim ao lado. Havia algo tranquilizador naquela monotonia — o som distante de carros passando na rua, os passos leves de Carter no corredor, o crepitar da panela na cozinha, onde Emma preparava algo que certamente seria simples, mas reconfortante.
Com um sorriso tênue, Blair esticou as pernas sobre a cama, sentindo a textura macia da colcha contra sua pele. Estava de pijama, embora o relógio ainda não marcasse nove horas. Sentia-se bem assim, descalça, o cabelo preso de forma desajeitada, a liberdade de não ter ninguém para impressionar. Blair fechou os olhos e se recostou, ouvindo o som de sua própria respiração. Existir era suficiente. Estava viva, e havia um estranho conforto nessa simplicidade.
Seu celular vibrou ao lado dela, e Blair pegou o aparelho.
[20:27] Mathew: Me avisa quando estiver em casa. Ah, e sim, você é a melhor, caso alguém pergunte.
Um sorriso escapou. Mesmo com todas as dúvidas e comparações, Mathew tinha esse poder de lembrá-la de que ela era mais do que as inseguranças que carregava.
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