Capítulo 3 - Por que eu sou assim?
Naquele primeiro dia de trabalho, não tivemos muito das relações pessoais para lembrar, mas muito do quesito profissional foi evoluído. Metade do roteiro, sabe? Tá. Mentira.
Tudo mentira.
Nós não fizemos quase nada porque ele tinha marcado uma live em parceria com o Pedro. E eu fui embora. Geralmente chegava em casa e corria para assistir aos vídeos dele, mas eu tinha outras coisas para fazer – pelo próprio Nathanael, aliás. Contei para minha mãe como fora o meu dia e ela disse que queria conhecer Nathanael, pois aquele trabalho, além de não ser convencional, era em um local extremamente perigoso: a casa de um estranho. Então eu combinei que ele passaria para me buscar no dia seguinte.
Entrei no quarto que dividia com a minha irmã mais nova, logo depois de ter saído de um breve banho, e sentei em minha cama ao perceber que ela não pararia de mandar áudios para seus grupinhos só para me dar atenção. Abri minha mochila e peguei o livro de roteiros, pensando em qual ponto deveria ser o primeiro a explicar para Nathanael. Dei uma passada de olho no capítulo sobre storyline, decorei uma explicação rápida sobre plot – apesar de imaginar que ele já soubesse –, depois cheguei nos inserts e decidi parar por aí. Peguei meu caderno e anotei tudo o que queria dizer a ele.
Eu só esperava que a conversa com a minha mãe não tirasse seu foco.
*
— Como foi? — perguntei quando ele abriu a porta do carro e entrou, sentando-se no banco do motorista.
— Calma, eu preciso respirar.
— Ela foi tão má assim? — Soltei uma risadinha enquanto ele passava as mãos pelo cabelo.
— Ela é muito legal, mas igualmente protetora.
— Ela veio com o papo das drogas?
— Sobre eu usar ou não? Sim. Dei sorte nessa.
— Ela falou sobre beber e dirigir?
— Sim. Ela é assim com todos os caras que querem sair com você?
— Não. — Coloquei o cinto e arrumei a mochila em meu colo. — O único cara que saiu comigo não sabia dirigir.
— Então como você sabe de todo esse discurso?
— Porque meus amigos escutaram. Dois deles, na verdade, porque são os únicos que dirigem, então eu imaginei que ela fosse falar com você. É um diálogo que enxergo minha mãe tendo, sabe? Mas você está bem com isso?
— Sim, só pensativo com uma coisa que ela me disse.
— E o que ela disse?
— Nada, não — desconversou, dando partida no carro.
— Se você diz... — Era claro que eu não deixaria por isso mesmo, mas naquele instante dei um desconto para ele. — Você teve tempo de pensar no que quer fazer com o começo do roteiro?
— Sinceridade? Eu não consigo lembrar muito bem a personalidade que escolhi para os personagens. Vou ter que assistir aos vídeos de novo. — Ele se referia àqueles em que contava um pouco de suas ideias para os fãs, o que eu imaginava ser mais uma forma de deixar registrado o que pensava, para não correr o risco de esquecer algo, do que de fato uma apresentação para o público. Isso porque ele não interagia como o de costume neles, que pareciam quase um diário de ideias.
— Sério?
— Pois é.
— Então eu vou precisar testar sua memória depois.
— Pode fazer isso?
— Posso.
— Como?
— Quando chegarmos na sua casa, eu mostro. Por enquanto, posso te explicar algumas coisas?
— Vá em frente.
— Bem... — Pausei para pensar nas palavras. — Primeiro precisamos fazer a storyline, que significa, literalmente, linha da história. Ou seja, é um resumo antes de começarmos.
— Teremos problemas logo aí, por causa do meu cérebro idiota.
— Vamos resolver isso — sorri, observando-o dirigir —, mas esse resumo você já me deu ontem, Nathanael, porque precisa ser curto. É apenas a direção que queremos seguir. Depois você precisa pensar no plot, e imagino que saiba o que é isso, mas vou explicar da mesma forma, ok? — Eu continuei quando ele não refutou: — Plot é a ação principal, geradora de conflitos secundários. É como uma alavanca da storyline, mais abrangente.
— Como assim?
— O plot pode ser um sentimento, uma pessoa ou uma série de coincidências. Qualquer coisa que produza uma ação. Qualquer coisa que consiga ser a base de uma história.
— No meu caso, é todo o mistério com as jaulas.
— Exatamente.
— Não é tão difícil.
— Se alguém simplificar as coisas, não mesmo.
Ele guiou o carro para um drive-thru de um prédio do Burger King.
— Você está com fome? Ou está supondo que eu estou?
— Ambos.
— Pede o combo com dois lanches, então.
— Dois pra você?
— Não! A gente divide.
— Você come só isso?
— Eu até como dois, mas não vejo necessidade agora.
— Dois para cada então — ele me contrariou, fazendo-me rir. Talvez tivesse percebido, pelo meu tom de voz, que eu não queria pedir dois só para não parecer muito esfomeada. — O que vai querer?
— O de cheddar e o whopper.
— É o mesmo que eu ia pedir!
— Telepatia — brinquei. Esperei que ele pedisse e passei quinze reais a ele, vendo-o entregar uma nota de cinquenta para a atendente e guardar o meu dinheiro no bolso.
— Pedi chá também.
— Perfeito! Não consigo comer sem beber.
— Achei que fosse só eu. — Ele sorriu para mim e dirigiu até a próxima janela.
— Enquanto esperamos, você sabe o que são inserts?
— Vagamente.
— São tomadas breves, inseridas no roteiro para dar um determinado clima, ou criar expectativa. Por exemplo, podemos criar uma cena focando no painel de senhas. Isso mostra que ele terá alguma importância futuramente.
— Não tira o interesse do telespectador?
— Não quando bem utilizado.
— Eu sempre achei que era só o diretor tentando comer o tempo. Como se ele precisasse ter, sei lá, duas horas de filme e colocasse coisas aleatórias para chegar nisso.
— Na maior parte dos filmes, sim, mas, quando o roteirista e o diretor se preocupam com isso, a história é bem diferente.
— Acho que podemos utilizar então. — Ele sorriu para mim, depois para o atendente que entregou nosso pedido. Peguei o saco de papel de sua mão e coloquei em meu colo. — Agora eu quero chegar mais rápido em casa para poder comer — resmungou, colocando as bebidas no suporte que havia no console e voltando a dirigir. — Deveria ter um jeito de dirigir e comer, sem correr nenhum perigo.
— Pelo menos você é prudente. — Encostei a cabeça na janela, também esperando que não demorasse muito. O cheiro dos hambúrgueres estava acabando comigo.
Por sorte, a casa de Nathanael não era muito longe, então logo estávamos lá. Começamos a comer o primeiro hambúrguer ainda no elevador. Rumamos para seu quarto, sentando cada um em uma ponta da cama. Nathanael pegara um prato grande na cozinha, no qual colocamos nossos segundos hambúrgueres. Os primeiros agora eram apenas história. Sobre a mesa de cabeceira dele estavam nossos copos com chá.
Por alguns instantes, eu me preocupei apenas em comer. Nathanael deu uma mordida em seu hambúrguer e o colocou sobre o prato, que deixamos no centro da cama. Ficou me encarando enquanto eu mastigava e continuou mesmo depois de ter engolido. Meu coração deu uma leve acelerada, porque estávamos consideravelmente próximos, ou tão próximos quanto a enorme cama permitia. Só que, com um quase desconhecido, era uma proximidade que eu nunca tivera, então era intimidante. Parei de comer e o encarei de volta, tentando decifrar o que habitava seus pensamentos. Ele ainda me encarava quando fez algo que eu não esperava: Nathanael arrotou.
— Auê! — meio que gritei, em um impulso. Como mandavam as regras, coloquei meu dedão sobre a testa para não apanhar. Eu sempre brincava disso com minhas melhores amigas, então era natural demais para evitar. Ainda tomada pelas minhas reações mais genuínas, impulsionei o corpo para frente e dei um tapa na testa dele, fazendo-o se desequilibrar e cair da cama. O estrondo do seu corpo com o piso foi enorme. Pisquei, atônita. O que eu tinha acabado de fazer? Eu não sabia se ria ou se pedia desculpas. — Meu Deus! — Engatinhei até o lado dele e encarei o ser humano que estava estatelado no chão. Por que eu sou assim? — Você está bem?
A princípio, Nathanael me encarou, visivelmente em choque; os olhos esbugalhados. Eu ia me desculpar, mas a gargalhada que ele deu em seguida me impediu.
— Você... — Ele gargalhava cada vez mais alto, se contorcendo no chão e batendo palmas esporádicas. — Você...
— Eu o quê? — Fiquei olhando, esperando seu ataque de risos acabar. Ele soltou um palavrão. Então esticou a mão, tateando sua mesa de cabeceira, e pegou o celular, desbloqueando-o e abrindo o Instagram. — O que vai fazer? — Arregalei os olhos, preocupada com o que pudesse acontecer. Como resposta, Nathanael apertou no botão que levava aos stories e começou a gravar um vídeo.
— Mano, ela acabou de me tacar no chão! — E apontou a câmera frontal para mim, ainda gargalhando. Antes que eu pudesse reagir, ele terminou o vídeo e enviou.
— Não! O que você acabou de fazer?
— O quê? Foi engraçado! — Por que ele não parava de rir?
— Mas as pessoas não vão entender! Vão pensar que eu te espanquei!
— Tá, tá. — E ele começou outro vídeo. — Sabe quando alguém arrota e você diz auê e coloca a mão na testa? E depois pode dar um tapão em todo mundo que não se preveniu? — Terminando um, ele começou outro. — Eu arrotei, e ela me bateu, só que eu tava bem na pontinha da cama e caí que nem estrume.
— Só foi mais barulhento — resmunguei, assim que o vídeo acabou.
— Daqui a pouco, o interfone toca porque o pessoal do andar de baixo deve estar pensando que eu matei alguém.
— Isso não te preocupa?
— Nah.
— E por que você riu tanto?
— Porque foi engraçado!
— Não no nível da sua gargalhada.
— Sei lá! — Vendo minha cara, ele resolveu responder. — Eu não esperava, não mesmo. E eu achei ainda mais engraçado porque uma garota nunca brincou disso comigo, sem o menor pingo de vergonha, sabe?
— Mas você caiu no chão!
— Isso foi mais engraçado ainda! — Ele se levantou e sentou ao meu lado.
Voltei a me posicionar na cama e dei uma mordida em meu hambúrguer.
— Você não se machucou?
— Não.
— Ainda bem.
— O que vamos fazer quanto à minha falta de memória? — mudou de assunto, provavelmente para acabar com meu desconforto.
— Eu pensei em um exercício que funciona mais como brincadeira. Vamos terminar aqui e eu já te falo.
E ele comeu na velocidade da luz. Eu adorava como ele era extremamente ansioso às vezes. Não que ansiedade seja algo bom para quem tem, mas eu tinha começado a gostar dele por todos aqueles seus jeitos de lidar com as situações. Apesar de nem tudo nele ser positivo e confortável, como algumas coisas que ele dizia, era uma questão de ir aprendendo que as pessoas são complexas e percebendo que têm tanto um lado bom quanto um ruim.
— E agora?
— Calma. — Terminei de comer meu próprio hambúrguer e sorri para ele, torcendo para não ter nenhum pedaço de comida nos dentes. — Quando eu sinto que estou esquecendo enredos, coloco músicas que não ouço há anos e vejo se consigo lembrar a letra.
— Você espera mesmo que eu cante? — Arregalou os olhos. Até parecia que ele não cantava nas lives!
— Não. — Ri. — Você adora séries e filmes, certo?
— Óbvio.
— Então vamos ver de quais músicas-tema você se lembra. — Dei um sorriso radiante e peguei meu celular no bolso. — YouTube, prepare-se!
— Como se o YouTube fosse te responder...
— Ok, vamos começar com uma fácil. — Aproximei meu celular do rosto, para garantir que ele não visse a resposta, então coloquei a primeira.
— Gravity Falls! — ele disse depois de um segundo de melodia. — Começar com um dos meus desenhos favoritos não testa muito minha memória.
— Essa era a fase fácil. — Então coloquei a segunda música do mesmo nível.
— Doctor Who! — ele praticamente gritou após ouvir apenas o ruído da abertura.
— Ok, agora vamos complicar.
— Vai ser só de série?
— Série e filme, porque você já disse em live que assiste muitos. — Então eu coloquei Hedwig's Theme, acreditando que ele levaria um tempo para reconhecer. Não demorou nada.
— Harry Potter! — respondeu e eu sorri em concordância. — Filme que não amo de paixão. — Fez uma careta, deixando evidente que era um reflexo de sua experiência ruim. Apesar de eu amar Harry Potter, sabia bem que não é para todo mundo.
— Eu sei disso. Esperava que você não soubesse. — Entortei a boca, em um ato quase involuntário, e coloquei outra.
— Calma! — Ele levantou a mão, fazendo sinal para que eu esperasse. Demorou uns vinte segundos para reconhecer. — De volta para o futuro!
— Essa foi mais difícil, hein? — Sorri. Então coloquei a música de Stranger Things só para ouvi-lo dizer:
— Bagulhos sinistros.
— Ok, agora uma difícil! — brinquei, trocando para a música mais fácil de identificar do mundo.
— Missão impossível! — Ele balançou a cabeça. — Não pode colocar algo difícil de verdade?
— Está pedindo um desafio, senhor Dante?
— Dã.
— Ok então! — E eu coloquei uma música que sabia que ele conhecia, mas que não iria reconhecer logo de cara.
— Ah, eu não lembro de onde é! — Ele fez careta, então começou a balançar os braços. — Que raiva! Calma!
— Você tem dez segundos.
— Ai... Não bota pressão!
— Cinco... Quatro...
— Tá! Fala qual é!
— Prologue, de Celeste.
— Sério? — E ele fez uma cara de decepção. — Eu errei música de jogo?
— Vamos resolver isso. — Sorri e coloquei uma das minhas favoritas. Ele ouviu dez segundos dela antes de gritar:
— Deponia! — O sorriso que ele deu poderia iluminar um buraco negro. — Como você conhece Deponia?
— Você tá brincando? Eu amo jogar Deponia!
— Você é a única pessoa que conheço que joga Deponia.
— Bom gosto, não é? — brinquei.
— Vai, coloca mais uma.
— Ok, acho que essa você vai errar! — Coloquei Wonder Woman's Wrath.
— Que música é essa? — Ele franziu o cenho, uma ruga se formando em sua testa. Dei de ombros, determinada a não oferecer nenhuma dica. — Eu sinto que já ouvi, só não faço a menor ideia de onde! É angustiante. — Nathanael fez diversas caretas. Era evidente que estava frustrado e que continuaria assim se não conseguisse reconhecer a música. Ele levou aproximadamente um minuto e meio para se exaltar. — Wonder Woman!
— Acertou.
— Cara, não sabia que essa música era tão grande!
— No filme a gente nem percebe, porque a cena hipnotiza.
— Mas a música é muito boa.
— Não é? — Sorri, feliz por alguém concordar comigo. Então coloquei minha trilha sonora favorita. — Vai. Se acertar essa, você ganha pontos comigo.
— Ok. — E ele franziu a testa novamente. — Eu acho que não conheço.
— Conhece! Eu sei que você já assistiu ao filme.
— Não estou reconhecendo. — Fez careta e ficou longos segundos em silêncio, tentando decifrar de onde era. — Acho que não conheço.
— Está falando sério?
— Sim.
— Você não percebeu essa música no filme?
— Pelo que estou vendo, não.
— Isso não te lembra nada?
— Não.
— Ok. — Suspirei. Só revelei quando a música chegou em dois minutos e meio. — É a música tema de Star Trek. Ela super aparece em Into Darkness e Beyond.
— Acho que perdi pontos com você então, moça viciada.
— Como sabe que eu...? — Não terminei a frase, porque ele apontou para o meu celular. Lembrei então do adesivo da Frota Estelar que eu deixava junto com a capinha. — Ah, é. Pois é.
— Star Trek ou Star Wars?
— Sabe que no fundo até os gêneros são diferentes, não sabe?
— Não se esquiva da pergunta.
— Star Trek.
— Imaginei.
— E você?
— Como você disse, os gêneros são diferentes.
— Ih, alguém está com medo de responder!
— Eu não estou com medo! — Bufou. — Star Wars, menos aquele fracasso que foi Rogue One... Filme desnecessário — resmungou.
— Eu gostei de Rogue One até.
— Viu? É por isso que você prefere Star Trek! Assistiu Star Wars errado!
— E você por acaso assistiu todas as séries e todos os filmes de Star Trek?
— Não. Talvez um dia você me convença a ver.
— Talvez.
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