Quando Éramos Crianças
Rosalyn acordou com um som verberando pelos corredores.
Caminhava por todas as paredes e suavizava com o silêncio da noite, não era incômodo ou cruel, mas a acordou mesmo assim.
O susto fora de imediato muito rápido e impulsivo, a nota intensificou-se em algum momento e a música do piano a despertou, fazendo-a notar, enfim, a ausência do cavalheiro em sua cama.
Ela suspirou pela falta, passando a mão no rosto para recobrar a paciência.
Faziam alguns meses que estavam casados. Uma cerimônia pouco chamativa, de poucos convidados e pouca atenção. Algumas pessoas e conhecidos de grandes empresas ainda desconheciam o matrimônio, e caso eles soubessem, o casal temia perder sua privacidade para a imprensa, que pouco os respeitava e de tudo fazia para arrancar-lhes nem que fossem as fofocas e as mentiras. E como tinham em comum o desgosto por essa atenção mórbida dos cidadãos, o casal fora cuidadoso em tudo que envolveu sua união.
A lua de mel ainda estava para acontecer. Eles não queriam partir da cidade e levantar suspeitas, não queriam simplesmente fugir sem notícia alguma e seu marido ainda tinha que trabalhar em alguns projetos problemáticos, e isso os levou a ficarem.
Embora não mencionado, Rosalyn trabalhou por algum tempo como instrutora.
Uma professora de pequenas meninas no início da vida, sendo preparadas ainda tão novas para serem oferecidas em casamento.
A própria ruiva odiava essa repetição entre o sexo feminino, que nunca parecia sair do lugar, e em sua teimosia de querer estar tão alto quanto um homem poderia estar, Rosalyn privou-se do casório e despertou a polêmica entre a sociedade.
Chamaram-na de encalhada, de amaldiçoada e até de bruxa, tentaram acusá-la de heresia algumas vezes, pois invejavam sua capacidade que há muito superou a dos homens comuns, não porque ela era um prodígio ou porque tinha algum dom especial, mas porque ela estudou.
Ela lutou pelo reconhecimento desde muito jovem, se prendeu a esse objetivo em sua vida e nunca direcionou seus olhares a mais ninguém ou a mais nada.
Magno era como ela, focado em seus próprios negócios, ele nunca se intrometeu no que diziam sobre a ruiva, na verdade ele nunca se importou muito com ela ou se incomodou com sua presença. Ele era sério e focado, sem preconceitos no que dizia sobre trabalho, e uma vez que conhecera uma mulher tão astuta pelo acaso em um navio de partida para a América, Magno visou seus próprios negócios novamente e jogou algumas partidas de baralho com a jovem e mais outros cavalheiros.
Eles se conheciam antes, quando eram muito jovens. Mas a juventude e ingenuidade infantil fora deixada no passado quando se reencontraram, eles nem mesmo tocaram no assunto quando Magno beijou sua mão em cumprimento pela primeira vez, ambos fingiram na frente de todos não se conhecerem, e em determinado momento, eles estavam juntos, falando sobre o passado, lembrando a infância, de quando Magno a colhia flores e fazia desengonçados buquês, antes de oferecê-la o seu primeiro vasinho de flores vivas.
Mesmo em tenra idade, Magno e Rosalyn estavam envolvidos em uma amizade de cortejos delicados, o jovem jurou casar-se com ela e às vezes discutiu com outros garotos que se mostravam dispostos a fazerem o mesmo. Ele a serviu como amigo e pequeno namorado infantil, eles cresceram juntos em um orfanato onde foram criados por freiras, antes que Magno fosse adotado por ser um pequeno prodígio de boas notas.
Rosalyn não deixava de ser uma garota inteligente, entretanto, quando os pais de Magno o foram adotar, escolheram-no pelo gênero. Não quiseram levar a menina quando ele pediu humildemente. Disseram que ter uma menina dava trabalho e não recompensava o suficiente, ela não serviria como herdeira e gastaria seus suprimentos.
Em consequência, Magno fora levado do orfanato aos trancos e barrancos, com pisoteios e gritos, e complementa o homem no dia em que se encontraram, que ele continuou em suas birras por mais de uma semana, antes que um severo instrutor o calasse à força bruta, forçando-o o amadurecimento.
Rosalyn riu um pouco sobre aquilo, mas Magno continuava passivo.
Ele declarou curiosidade em vê-la novamente após tanto tempo. Ironizava o tempo e a mudança, ironizava a aparência da mulher, relembrando que, quando jovem, ela não era bonita. Era feia e doente. Mas ele a amava.
O homem disse em todas as letras.
Ele a amava.
Uma pequena criança que sabia o que era o amor e que o descrevia.
Magno descreveu o sentimento forte que nutria pela ruiva quando criança, a sua necessidade de estar perto dela sempre que estava acamada. O pequeno Magno da época sentia empatia pela garota, e a pequena Rosalyn era um anjo em forma de gente.
O Magno adulto contou os porquês que o levaram até ela, que o faziam amá-la. E a forma como descrevia o amor de quando era criança era digna de um prodígio como ele foi julgado ser.
Magno comentava os acontecimentos, seguindo ainda o mistério quando muitas vezes questionava se já não a conhecia de vidas passadas.
A de cabelos alaranjados se contraiu cada vez mais na conversa, e como estavam no pôr-do-sol em um cruzeiro, logo a dama veio a se afastar, anunciando sua sonolência, antes de deixá-lo, talvez para sempre. Sem fé de que um dia conversariam daquela forma novamente, sem fé de que o passado voltaria, fazendo seu coração bombear mais rápido mais uma vez.
Todavia, eles se encontraram diversas vezes no navio.
Dançaram muitas danças, beberam muitos drinques e jogaram muitos jogos. E quando estavam prestes a descer do cruzeiro, a proposta fora posta na mesa:
"Vem à minha casa?"
As pessoas chamaram-na de vadia, xingaram-na no dia em que a viram entrar na mansão daquele homem pela primeira vez.
Rosalyn se perguntou porque aceitara, porque quis estar tão perto dele cada vez mais. Contudo, depois que Magno compartilhou com ela de que o sentimento ingênuo de criança ainda vivia nele, Rosalyn percebeu que era o mesmo com ela. Que ela nunca cresceu ou deixou de lado o passado.
Sim, ela o esqueceu na maior parte do tempo, tal como ele mesmo fez, mas encontrá-lo, trouxe a nostalgia de uma época em que se amavam, e era estranho estar perto dele, sem que esse sentimento não os envolvesse como um cobertor.
Eles quiseram estar mais perto, quiseram ser crianças novamente, sem que um monte de adultos os pudesse julgar. Eles quiseram se entregar ao emocional, quiseram o passado de volta e foram envolvidos nesses sonhos.
Foi maravilhoso.
Tudo que viveram até o momento.
Rosalyn ainda não o perdoava por tocar sua intimidade antes do casamento, porém, ele acusou-a de não apresentar resistência, e ambos agora passaram a discutir sempre que tocavam no assunto.
Era uma briga boba, uma briga de crianças, no entanto era algo que os divertia. Sempre sairiam rindo quando Rosalyn fechasse a porta do quarto na cara de Magno e o obrigasse a dormir no sofá.
O cavalheiro não aceitava, é claro, ele passava muito minutos a persuadindo do outro lado da porta, e no primeiro sinal de hesitação por parte de Rosalyn ele entrava, a imobilizava e a calava, resolvendo toda a discussão, calando-a com afeto e dormindo tranquilamente depois, sem sentir-se culpado de sua mente maligna.
Homem traidor.
Ela pensava sempre que o tinha dormindo confortavelmente na cama depois de ela declarar explicitamente que ele dormiria no sofá.
Porém, naquela noite, ela não disse nada daquilo.
Ela não o queria longe.
E ele estava no piano pela madrugada, distante dela.
Não evitou a obrigação de esposa em puxar seu marido à força até a cama novamente, levantando-se um pouco nervosa para caminhar pelos corredores até o salão onde sabia que o encontraria. E quando encontrou, seu olhar parecia mais suave, uma vez que notou algo sombrio naqueles olhos verdes de seu homem.
A mulher se aproximou devagar, não o chamou para não cortar a música, e quando esteve próxima o suficiente, encostou sua palma em seu ombro, chamando-o a atenção para seu rosto feminino que o recebia com um sorriso singelo.
Ele sentiu-se quase tímido quando notou naquele olhar o toque de cumplicidade e entendimento. A mulher o ia confrontar sobre sua ausência, mas apenas de olhar para ele era como se ela já soubesse.
E sem jeito por ter todo o seu interior despido por aquele sorriso, Magno desviou o olhar envergonhado parando de tocar e abraçando o corpo de Rosalyn que veio a enlaçar-se no seu, sentando-se em seu colo e envolvendo seu pescoço para firmá-lo diante de si, como se jamais o fosse deixar escapar.
- Eu tenho um marido, sabia? - Ela começou a falar, daquele jeitinho que só ela sabia.
O homem desviou mais o olhar, e ela o trouxe de volta para o seu rosto, sorrindo levemente.
- Não vai dormir comigo? - Rosalyn perguntou em voz baixa, como se cortar o silêncio da noite fosse um pecado, e ela pensava que era.
A noite linda e silenciosa, pouco ativa e calma, podia ser assustadora, mas se ela fosse barulhenta, coisas ruins aconteciam. Antes uma noite silenciosa, que os gritos de uma mulher ou o som da batida de um carro, antes o toque do piano, que uma grande orquestra com bebidas, que tirariam a paz da mente dos homens e feririam a mente das crianças.
Nada de bebidas ou de festas hoje.
Vamos dormir juntos em silêncio.
Eles combinaram que o fariam, mas ele estava quebrando sua promessa.
- Perdão. - Magno falou. Sem olhá-la nos olhos, embora observasse o seu ombro com extenso vazio no olhar. - Eu estava sem sono. Não queria acordá-la.
Rosalyn ficou em silêncio e abraçou mais o pescoço do homem, aproximando-se dele e o beijando em poucos segundos, antes de se afastar novamente e encará-lo.
- Me lembrei de quando nos encontramos no navio. - A mulher falou nostálgica repassando o sentimento para o homem.
-Oh, aquele dia foi estranho. Eu era uma criança apaixonada, mas reencontrei-a como uma criatura desapegada.
- Eu ficaria triste com seu desapego se eu mesma não tivesse feito o mesmo.
- Sim... Mas me diga, senhorita... Me reconheceste naquele dia? - Ela ficou em silêncio por um tempo.
- Reconheci. - E respondeu, então...
O reconhecera desde o momento que o vira. Mas não tinha planos de falar com ele, ou de se reaproximar. Quiçá, ela tenha tentado até se afastar, ou torcer para que ele se aproximasse, contudo quando ele chegou perto dela, ela o quis longe de novo, e quando ele falou com ela, o coração dela voltou a acelerar.
Por bastante tempo ela implorou sua distância, mas queria agora sua proximidade.
- Venha logo dormir. - Ela pediu em tom de súplica, o encarando com olhos pidões.
- Não tenho sono.
- Então, ao menos saia do piano. Se não vai dormir, também não durmo. Mas se for para estar acordada, quero que seja em nossa cama.
- Estarias insinuando então para fazermos mais do que apenas ficar acordados... - Rosalyn deu um tapa no braço do homem. Forte, pois apesar da aparência delicada, a mão dela podia ser muito pesada, mesmo para uma mulher. - Ai! - Ele resmungou em uma voz mais alta, soltando a cintura da mulher para esfregar o braço.
- Não seja ousado, homem sem vergonha! Atrevido! Libertino! Mente suja! - Cada xingo foi um tapa, e para cada tapa, Magno pronunciava um "ai".
- Perdão! Perdão, madame! - Ele falou, tentando recobrar uma pose mais cavalheiresca, visto que apanhava de sua mulher no braço depois de uma gracinha baixa como aquela.
Ele realmente pensou em algo assim.
Porém, ele havia entendido o que ela queria dizer.
Foi simplesmente uma piada numa hora errada.
- Tu quebrastes o ânimo do momento! - Rosalyn falou, e Magno se obrigou a concordar com um aceno de sua cabeça. - Se não vier dormir o deixarei sozinho com sua pouca-vergonha! - A ruiva anunciou já se erguendo do colo do homem, dando dois passos curtos antes do cavalheiro voltar a puxá-la.
Ele a guiou para seu colo novamente, a segurou na cintura e a beijou, mais demoradamente que o beijo anterior.
A mulher, no impulso, ao reconhecer o marido, já estava com os braços em seu pescoço novamente e ambos se beijavam. Daquela forma que demorava, do jeito calmo que ela gostava. Que combinava com a paz da noite, que possuía o ritmo da brisa e que soava como uma música suave de harpa.
Eles nunca se envolveram em um beijo desses, sentados sobre o mesmo espaço, com a mulher em seu colo confortavelmente, vestindo poucos tecidos, mas uma vez que sentiram isso eles pensaram que poderiam estar assim até o final da noite, antes da mulher cortar o contato e se levantar inocentemente, deixando o ser masculino com feições de paisagem enquanto voltava seu olhar confuso para ela.
- Deite-se comigo, senhor. - Ela pediu em uma voz suave, estendendo sua palma vermelha pelos tapas anteriores.
O homem balançou o rosto negativamente.
- Não tenho sono.
- Então tenha outra coisa. - Ela falou com um sorriso zombeteiro, partindo da sala após uma piscada rápida de seus olhos.
Magno a observou até que sumisse pela porta.
Ele se voltou ao piano. Tocou suas teclas pensando em apertá-las de novo, entretanto, olhou para trás, para a porta que a mulher passou, e em um último vislumbre do piano, o fechou, se levantou e caminhou a passos muito largos atrás da mulher.
Quando encontrou-a no corredor, ela o olhou risonha e saiu correndo.
Magno se assustou, reconhecendo que ela já fizeram aquilo várias vezes.
Ela vai trancar a porta!
Ele pensou com desespero, começando a correr atrás dela.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro