52 | A Invasão
Deena estava em guarda no quarto de Ainzart há dias, esperando que ele despertasse, quando o local começou a vibrar levemente.
O ar tornou-se pesado de repente e Deena, sentada em um canto com os braços cruzados e um olhar perdido, sentiu o chão tremer sob seus pés, o que a fez erguer a cabeça. As runas nas paredes do quarto brilhavam intensamente, dançando com uma luz púrpura e negra.
No centro do aposento, a figura imóvel de Ainzart começou a se mover, soltando o ar como se o prendesse por muito tempo.
— Finalmente! — Deena sorriu, aliviada, mas também nervosa ao se levantar num pulo, começando a planar no quarto.
Quando Ainzart abriu os olhos, viu a succubus planando bem acima dele, os olhos roxos arregalados o encarando expectante e quis dar um tapa pra ela se afastar, mas sentia todo o corpo doer, cada músculo, tendão e osso parecia fora do lugar. Lentamente ele se ergueu.
Desde que deixou o palácio, não dormiu uma vez sequer, não pensou que entraria em sono profundo no instante em que tocou a cama.
Ele mesmo não havia percebido que sua aparência havia mudado. Seu corpo estava sobrecarregado com tantos núcleos de maana de caos que havia consumido, então o forçou a hibernar para assimilar tanta energia. Nos últimos dias, Deena viu com os próprios olhos como a evolução de nível de um demônio ocorria.
Primeiro, todas as escamas no corpo do demônio sangraram e se soltaram. Então, as escamas das asas ficaram cada vez mais fracas e ela mesma se esforçou em raspá-las com as garras, trabalhando quase por um dia inteiro, o demônio ficou em carne viva naquela cama, antes de, lentamente, começar a se regenerar.
Agora, com a pele nova, o corpo de Ainzart parecia mais humano do que antes, mas não menos ameaçador. Seus traços faciais estavam mais definidos, incrivelmente belos, quase angelicais. Sua altura parecia ainda maior, os músculos mais esculpidos, e a presença avassaladora que emanava agora era quase insuportável. E Deena estava maravilhada.
Os demônios eram gananciosos, invejosos, amavam o poder acima de tudo e ver um demônio evoluir e se tornar mais puro era um espetáculo digno de uma plateia. Queria rodear e observar cada detalhe do demônio, antes de notar suas asas, que se moviam incômodas enquanto Ainzart se sentava com dificuldade, tudo parecia bem menor do que antes, era frustrante se mover, a cama afundando abaixo de si, então as asas derrubando algum móvel.
Ainzart possuía um par de asas negras grandes repletas de escamas, mas agora havia dois pares de asas em suas costas, maiores, mais fortes e com uma textura que parecia absorver a luz ao redor, penas negras grandes por toda a extensão. Quando ele as abriu pela primeira vez, o movimento criou uma rajada de vento que quase derrubou Deena.
— Uau… você não sabe ser discreto, não é? — comentou a succubus, tentando esconder o nervosismo. — Bel...
Ainzart virou o olhar para ela, e a intensidade de seu olhar carmesim a fez recuar um passo. Ele parecia analisar o ambiente, processando lentamente as mudanças ao seu redor, até que um rosnado baixo soou do fundo de sua garganta.
— Quanto tempo se passou?
— Uma semana, Bel. — Deena respondeu rápido.
Os olhos de Ainzart se estreitaram. Não sentia a presença de Lissandre e a única coisa que veio em mente foi que aquele sem vergonha havia fugido e ainda levado seu livro.
— E a minha coisinha?
Deena hesitou. Não era uma conversa que ela queria ter.
— Bem... sobre isso... — antes que ela pudesse completar a frase, Ainzart deu um passo à frente, a encarando de cima, seus chifres arranhando o teto do quarto e ela recuou, batendo contra a parede.
— Deena, onde está o humano?
— E-eu perdi ele! — ela gaguejou, olhando para o chão. — Eu não sabia o que fazer! Você estava hibernando, e ele desapareceu! Eu procurei, juro, mas…
— Você o perdeu? — Ainzart resmungou, a voz rouca fazendo a demônio estremecer (não de medo) ao acenar apressada.
— Ele desapareceu antes de eu perceber! Eu estava sozinha, Bel, não tinha como… eu não sou forte como você, sou uma succubus! Meu forte não é brigar, é transar, qual é!
Ainzart cerrou os punhos, controlando-se para não explodir ainda mais. Ele respirou fundo, fechando os olhos por um momento. Quando os abriu novamente, estava mais calmo e ao se concentrar, usou sua habilidade de sangue, sentindo vibrar em algum lugar distante dali, seu próprio sangue vibrando e pulsando no corpo de Lissandre dava a certeza de que ele estava vivo.
Sua satisfação se desfez ao perceber que conhecia bem aquela localização e logo se aborreceu ao pensar que aquele estúpido havia sido sequestrado justo pelo lorde da cidade que tinha um fetiche estranho de "gourmetizar" suas refeições.
— Vamos. — chamou pelo filhote, que estava escondido debaixo da cama e o bichinho latiu, saindo de seu esconderijo.
— Onde ele está? — Deena não tinha ideia de como ele sabia pra onde ir, mas o seguiria mesmo se ele não a chamasse. Era um demônio de alto nível, que demônio não iria querer segui-lo?
— Ao castelo do gourmet. — seu tom era seco, torcendo pra não ser tão difícil lidar com aquele demônio esquisito quando as sombras giraram ao seu redor.
— Um gour… espera, o lorde da cidade quem pegou ele?! — ela exclamou chocada e Ainzart acenou.
O lorde daquela cidade era bem conhecido por ser um canibal, comia bestas, demônios, humanos, o que caísse em suas mãos era comida e ultimamente, ele vinha com um hábito estranho de “gourmetizar” suas refeições. Alguns demônios malucos achavam que a emoção na hora da morte alterava o sabor da comida e até se esforçavam em criar o ambiente perfeito para se alimentar, seja uma emoção como a traição, o medo ou o terror até a emoções positivas.
Ainzart o conhecia pois infelizmente quase havia sido devorado por aquela besta, enganando com cordialidade, palavras gentis, oferecendo favores e sendo extremamente solícito e prestativo antes de usar algumas ilusões para arrancar qualquer trauma que tivesse e então, tentar te devorar vivo pra apreciar todas as “emoções da carne”.
— Você vem junto. — Ainzart bufou com uma careta de nojo ao pensar em enfrentar aquele demônio maluco outra vez e Deena acenou, sem contestar. — Talvez eu faça uma troca e te ofereça de petisco no lugar do meu humano
— Sabe como eu gosto de me divertir, vou quase morrer nessa brincadeira? Se não, nem tem graça… — ela brincou, mais aliviada por ele não torturá-la por ter cometido um erro estúpido daqueles.
Que demônio perdoaria um erro daqueles tão facilmente? Com certeza, Belyal era muito magnânimo, o que a deixava ainda mais satisfeita em segui-lo.
E entrando nas sombras, os dois desapareceram, deixando o quarto para trás, sendo seguidos pelo filhote que estava ansioso para encontrar o humano que ele adotou.
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Nos dias que se seguiram ao sequestro, o demônio tratou Lissandre com uma curiosidade genuína.
Parecendo fascinado pelas coisas humanas, Kalthar surgia com uma refeição três vezes ao dia, se sentando em uma cadeira e conversando por horas, suas perguntas não tinham fim, além de não mencionar a comida ainda intocada nas bandejas. Lissandre se servia de sua própria comida, mas após três dias, até parou de considerar fugir dali.
O demônio, apesar de curioso e tagarela, não ficava de implicância, ofensas e provocações. Trouxe vários livros para Lissandre, além de construir um banheiro de acordo com as descrições de Lissandre, além de modificar a decoração mórbida daquele quarto, rapidamente Lissandre tinha seu velho quarto na mansão do arquiduque para morar. Tomando banho em uma enorme banheira de água quente, sais e espumas, lendo livros à vontade, esparramado em sua enorme cama, nem reparou quando as algemas desapareceram.
Estava considerando aquele cativeiro um paraíso, ainda com um demônio o servindo de boa vontade, quase havia se esquecido que ainda estava no inferno.
No primeiro dia, Lissandre ainda resistia à ideia de estar ali. Sentia-se desconfortável naquele lugar, e Kalthar não poderia parecer mais asqueroso com sua aparência esguia cheia de olhos, mas, aos poucos, foi sucumbindo ao tratamento que recebia e era muito bem tratado, elogiado e apreciado, o que fez seu ego nobre subir nas alturas.
No quarto dia em cativeiro, já estava completamente relaxado.
As refeições eram servidas em bandejas de prata, e Lissandre não conseguia se lembrar da última vez que tinha comido algo tão delicioso. Na noite anterior havia cedido e experimentou uma das refeições que Kalthar trazia, e era muito melhor que as refeições que tinha em seu anel. Naquela manhã, Kalthar o havia levado para fora do quarto, para conhecer seu acervo pessoal de livros. Era uma biblioteca vasta, que possuía obras sobre magia, história do submundo e até relatos de outros humanos que haviam caído no Inferno.
— Você tem uma coleção impressionante. — comentou Lissandre, saboreando de um suculento almoço oferecido pelo demônio. — Como conseguiu tantos livros?
— Ah, eu sempre fui um colecionador. — respondeu Kalthar, sentado em uma poltrona com uma taça de vinho nas mãos. — Nos últimos séculos tive algumas oportunidades de deixar o submundo e consegui aumentar minha coleção aos poucos. Mas você, meu pequenino, é minha aquisição mais intrigante até agora.
Lissandre riu sem humor, sentindo-se mais um objeto do que uma pessoa. Mas, verdade seja dita, ele começou a gostar daquela atenção. Diferente de Ainzart e Deena, Kalthar não o provocava ou o obrigava a fazer coisas. Era esse tipo de vida que queria quando fugiu de casa, sem ter de enfrentar bestas, se enfiar em cavernas, cair em florestas ou ser perturbado por demônios… quanto mais conversava com Kalthar, mais à vontade se sentia.
Aquele lugar era um paraíso considerando todos os outros lugares em que esteve.
Os dias passaram rapidamente. No sexto dia, Lissandre já havia explorado boa parte do palácio e se acostumado ao ambiente, por se portar bem, Kalthar lhe deu acesso total ao palácio. Ele e Kalthar passavam horas conversando, trocando conhecimentos. O demônio estava particularmente interessado em detalhes do mundo humano, enquanto Lissandre aproveitava para sugar o máximo possível de informações sobre o Inferno e suas particularidades.
— O submundo tem suas vantagens, poucas comparadas ao mundo mortal, mas ainda é melhor que nada. — Kalthar sorria em uma dessas conversas, enquanto observava Lissandre folhear outro livro. — Além de faltar a... diversidade que o seu mundo tem.
— Diversidade e caos. — Lissandre replicou. — Acredite, não é tão fascinante quanto parece.
— Com certeza melhor do que viver no inferno. — o demônio arqueou as sobrancelhas e Lissandre riu, confirmando. — Sempre quis ver as criaturas aladas e pequenas que há nos livros, as... pequenas fadas, mas bem, aqui não tem a menor probabilidade de haver uma...
— Mesmo no mundo mortal é difícil vê-las... devem ser mais comuns no reino dos elfos, em Elisir, mas até lá são consideradas lendas e... — uma explosão do lado de fora o interrompeu. Ele congelou por um momento, fechando os olhos e soltando um longo suspiro. — Demorou. — murmurou para si mesmo, já sabendo o que aquilo significava.
Antes que pudesse reagir, Kalthar saltou, os olhos brilhando em fúria
— Quem é esse maldito invasor que ousa atacar meu palácio?!
— Eu tenho um palpite. — Lissandre se levantou com um misto de frustração e resignação.
Continua...
A Autora tem algo á dizer:
Ainzart
Apreciem sua aparência mais próxima à de um humano, sem escamas na pele e a pele menos cinza defunto kkkkk
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