47 | Outro Demônio Surge
Já faziam cinco dias que eles estavam na caverna e Lissandre já não sabia mais se queria viver ou morrer.
O isolamento, o silêncio quebrado apenas pelos ocasionais ruídos de Ainzart mastigando (e o maldito demônio mastigava o tempo todo) ou do vento batendo contra as rochas, e a pressão de tentar decifrar o livro vermelho estavam acabando com sua mente. Ele passava horas olhando para os símbolos, virando páginas com raiva crescente, mas aquela porcaria não tinha uma única letra que ele reconhecia.
Ao ver os mesmos caracteres indecifráveis pela centésima vez, ele bufou alto e atirou o livro no chão.
— Isso é inútil! — reclamou, os olhos voltados para Ainzart, que estava recostado contra a parede da caverna, o observando com desinteresse, mastigando uma pata de algum bicho que Lissandre nem queria saber o que era. — Se nem eu, que sei vinte e dois idiomas, consigo entender essa porcaria de livro, o que você espera que eu faça?
Ainzart encarou o livro por um momento, antes de encarar Lissandre com um sorriso. Ele mesmo não sabia ler língua nenhuma, não sabia ler e nem escrever, então achou que aquele humano reclamão que tanto se gabava conseguiria entender aquele livro. O demônio levantou uma sobrancelha, um sorriso de canto surgindo nos lábios.
— Está reclamando comigo agora? Que progresso. — debochou, o rabo batendo contra o chão. — Pensei que só reclamasse de mim pro vento, geralmente quando acha que estou longe.
— Sim, eu estou reclamando! Eu estou preso aqui há dias com um demônio que me arrastou para o inferno e que quer que eu leia uma porcaria de livro indecifrável, mas nem silêncio faz pra me deixar concentrar! Para de mastigar um minuto! Você parece uma vaca! — Ainzart arqueou as sobrancelhas, sem ideia do que era uma vaca, mas achando ofensivo do mesmo jeito quando Lissandre deslizou os dedos pelo cabelo, achando outra coisa pra reclamar. — E eu estou imundo, preciso de um banho! Já faz dias que nem vejo um pouco de água para banhar, lavar meu cabelo, comer sentado em uma mesa, dormir em uma cama, eu sou gente! — exclamou, começando a andar de um lado para o outro, gesticulando irritado enquanto o demônio o acompanhava com os olhos. Achava um tipo de record ele não ter aberto a boca pra reclamar uma vez sequer desde que o acusou de ter devorado aquela coisinha felpuda. — Eu cresci como gente, sou um humano, não um bicho como você que come feito um bicho e vive como um! Eu vou enlouquecer aqui, não consigo nem olhar pra esse livro sem querer botar fogo em mim mesmo!
— Admiro sua coragem de gritar comigo. E me chamar de vaca. — foi tudo o que ele respondeu, com óbvio desinteresse.
Lissandre cruzou os braços, resmungando alguma coisa que Ainzart não fez esforço para ouvir. O demônio se levantou, sacudindo a poeira da calça puída que ainda usava, e olhou para a saída da caverna.
— Se não consegue decifrar isso, vamos encontrar alguém que possa.
— Tipo quem? Vai me dizer que até no inferno vocês tem... sei lá, um acervo de bibliotecas com livros antigos que eu posso usar para pesquisar? — debochou.
— Sim, tem. — Ainzart sorriu, vendo uma careta confusa na face de Lissandre. — Vamos para uma cidade demoníaca.
Em suas vidas, havia derrubado muitos reis do inferno para conseguir seus reinos e subordinados.
Diferente dos mortais, os demônios não definiam a hierarquia por linhagem ou algo assim, mas sim por força. Qualquer um que desafiasse um líder poderia entrar numa batalha de vida e morte, se perdesse, obviamente morria e se ganhasse, tomava o lugar do soberano, tomando o território e tudo o que ele possuía.
Entre os demônios não havia algo como lealdade ou honra, havia admiração ou medo. E eles seguiriam os mais fortes, os admirariam, invejariam ou temeriam. Seu exército poderia se virar contra você no menor sinal de fraqueza, por isso precisavam continuamente se fortalecer.
As batalhas no inferno eram constantes, quanto maior o reino, mais poderoso era o seu soberano. Ainzart havia derrubado diversos desses reinos e sabia que havia outros reinos maiores, mas sua pressa para voltar e destruir Dillion o fez abandonar o submundo. Ele não tinha interesse em reinar e dominar todo o inferno, então não sentia nada com relação a isso.
Lissandre o encarou descrente, duvidando que os demônios realmente haviam feito algum tipo de civilização no submundo, mas ao pensar que poderia ter alguma biblioteca com livros pra ele pesquisar, já diminuiu um pouco sua raiva e mais calmo, pegou o livro do chão.
— Você tem certeza de que podemos encontrar algum livro que me ajude a decifrar isso?
— Tem centenas de bibliotecas por aí, em algumas delas deve ter algo.
Lissandre acenou, decidindo ao menos tentar e se aproximou do demônio, segurando em seu braço. Ainzart franziu o cenho, olhando para a mãozinha que o segurava, antes de olhar para Lissandre que o olhava como se esperasse algo.
— Vamos logo. — Lissandre o apressou e Ainzart sentiu que mimou muito seu mascote, até queria usá-lo como meio de transporte.
E com uma mesquinharia infantil que sabe-se lá onde ele arrumou, soltou uma gargalhada afastando a mão de Lissandre.
— Não dá pra invadir um reino com teleporte, teremos de andar. — mentiu, apenas querendo ver esse reclamão enfrentando algumas dificuldades por tê-lo chamado de vaca e Lissandre espremeu os lábios.
— Bom, então deixa pra lá. Eu não vou ir. — ele ainda deu de ombros, se ajeitando para se sentar de volta na caverna, o que fez Ainzart se impressionar ainda mais.
Além de folgado, ainda é preguiçoso, o demônio conteve o riso.
Em todas as suas vidas, apenas uma criatura ousava agir de forma tão descarada com ele. Aquela succubus era bem similar ao humano.
Ambos reclamavam muito, eram folgados e sem vergonha e ainda não tinham nenhum temor em falar mal dele diante dele, mesmo que fossem fracos e covardes. Todos ou o temiam ou odiavam, estava cercado de abutres que queriam arrancar sua cabeça para tomar seu lugar, mas então lá estava Dyen, o perturbando e provocando o tempo todo. Talvez por isso ele tolerava o temperamento egocêntrico do humano e o achava divertido?
Ele a havia encontrado por acaso no deserto, uma succubus sem vergonha que tentava seduzi-lo com frequência e que parecia não ter o menor interesse em seu poder ou a posição que ocupou no inferno. Ela eventualmente se tornou seu braço direito no comando, não era forte e nem inteligente, mas era diferente dos outros demônios e tinha algum senso de lealdade.
Mesmo quando ele perdeu a batalha contra a santa, a succubus se sacrificou pra tentar protegê-lo.
Por um momento, considerou mesmo voar até a cidade mais próxima, mas ao pensar que poderia encontrá-la caso fossem a pé, decidiu que não usaria o teleporte por algum tempo.
— Vamos logo. — sorriu para o humano, que negou com um aceno.
— Eu vou ficar por aqui mesmo. — Lissandre já se acomodava no chão e o demônio bufou divertido.
— Nem pensar, vamos. — e com um gesto, ele desfez as sombras da entrada da caverna, marchando para fora e ignorando o gemido aborrecido que Lissandre soltou, se levantando com dificuldade e o seguindo, arrastando os pés pelo caminho.
A viagem começou antes que Lissandre pudesse questionar o plano exato. Ainzart parecia saber exatamente para onde ir, traçando um caminho pelo deserto e por terrenos ásperos com passos firmes e rápidos, enquanto Lissandre tentava acompanhar, tropeçando ocasionalmente nas pedras ou na areia solta.
— Você conhece esse lugar? — perguntou Lissandre, ofegante. Como o demônio sabia pra onde ia com tanta confiança se nunca havia estado no inferno antes?
— Mais do que você conhece sua própria casa. — ele retorquiu, olhando ao redor com aborrecimento e Lissandre se calou.
Lissandre não conhecia a casa em que havia crescido. Só visitava três áreas, nem sabia exatamente onde o irmão ou o pai dormiam.
Horas depois, enquanto caminhavam por uma trilha irregular cercada por colinas de rocha negra, o som de um rugido preencheu o ar e ambos pararam.
— O que foi isso?— Lissandre questionou, olhando para a direção que Ainzart olhava, mas sem ver nada, se aproximou mais do demônio.
O rugido foi acompanhado por uma gargalhada feminina, seguido de um baque surdo e o som de explosões e Ainzart, curioso como uma criança, agarrou Lissandre e voou de uma vez. Lissandre berrou pelo susto, apavorado por estar acima do solo e se agarrou no demônio com tudo o que pôde enquanto voavam na direção dos sons de batalha.
Quando chegaram ao local, encontraram uma cena peculiar: uma demônio de pele rosa e asas negras, enfrentava uma besta demoníaca que parecia um tipo de verme de areia, com mais de dez metros de largura e um corpo segmentado coberto por placas negras e irregulares, como carapaças afiadas.
Exibindo uma enorme boca circular e repleta de fileiras de dentes serrilhados, a criatura se erguia no solo antes de atacar na direção da demônio que voava e ria, causando explosões de fogo na criatura, que rugia. Uma cortina de poeira se erguia com cada golpe e, pousando no alto de uma pedra, Ainzart soltou Lissandre, emocionado por reencontrá-la muito antes do que devia.
A demônio desferiu outro golpe na criatura, mas acabou recebendo um golpe da calda da criatura, que rugiu e a arremessou contra uma parede de pedras, a atordoando, desferindo outro golpe que teria sido fatal se a demônio não tivesse cruzado os antebraços diante do rosto para evitar que a cabeça fosse esmagada, caindo no chão enquanto a criatura se preparava para atacá-la outra vez.
No mesmo instante, as sombras ao redor de Ainzart se estenderam como serpentes, imobilizando a besta, a impedindo de atacar por um instante, o que permitiu que a demônio se erguesse e desferisse um golpe final, decapitando a criatura com suas garras.
O corpo da criatura caiu no chão com um baque alto e a demônio, ferida, caiu com um riso escandaloso, apoiando o braço quebrado ao cuspir um punhado de sangue negro na areia.
— Criatura nojenta! — e ainda chutou a cabeça da criatura que havia caído perto de seus pés.
Lissandre estava surpreso por Ainzart ter intervido, mesmo que a batalha fosse longe, a demônio olhou na direção de ambos como se soubesse que estavam ali.
— Por que a ajudou? — Lissandre sussurrou, sem saber se a demônio estaria agradecida ou furiosa por atrapalharem sua caçada.
— Por quê ela é minha. — Ainzart retorquiu na mesma hora e Lissandre ficou espantado ao ver o demônio fazer outra expressão além do desdém ou desdém: alegria genuína.
Continua...
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