38 | A Armadilha
O reverendo fechou o livro com um estalo seco e fez um gesto para que Lissandre se aproximasse.
— É uma pequena celebração. Cada batismo merece um banquete, não acha? — seu sorriso nunca pareceu tão desagradável para Lissandre quanto agora, que relutou um pouco em se aproximar.
As figuras ao redor da mesa voltaram os olhares para ele, algumas com expressões que ele não conseguia decifrar. Lissandre caminhou lentamente até a mesa, sentindo todos os olhos cravados nele. Um lugar havia sido deixado vazio no centro, e ao lado estava uma taça de vinho.
— Por favor, sente-se. — o reverendo ainda sorria, gesticulando para o assento vazio.
Lissandre obedeceu, mais para não levantar suspeitas do que por vontade própria. Ele notou que outra pessoa já estava na mesa, uma garota que parecia não ter mais de doze anos. Ela olhava para a taça à sua frente com uma mistura de medo e hesitação, antes de erguer o olhar para Lissandre.
— Quem é ela? — Lissandre tentou manter a voz firme.
O reverendo sorriu novamente.
— Ela é como você, uma alma pronta para renascer.
Lissandre sentiu um arrepio. Ele olhou para a garota, que parecia estar lutando contra o impulso de se levantar e fugir e desviou o olhar para o reverendo, que ergueu sua própria taça.
— Fico feliz de ter outra jovem alma desvirtuada se curvando aos ensinamentos de Eko. — disse o reverendo num tom sereno.
Lissandre sorriu, parecendo confiante ao olhar ao redor, todas as figuras na mesa o encaravam fixamente, a comida intocada na mesa.
— Você me convidou. Eu não podia recusar, certo? — respondeu, com um tom que misturava desafio e charme.
O reverendo sorriu, um sorriso que parecia ver através de todas as intenções de Lissandre.
— Sabe o que significa estar aqui esta noite? — o homem se inclinou sobre a mesa e Lissandre deu de ombros.
— Talvez você devesse me explicar. Afinal, parece que você sabe tudo sobre mim.
O reverendo riu baixo, um som que ecoou pelo templo enquanto relaxava e apoiava as costas no espaldar da cadeira.
— Não sei tudo, mas sei o suficiente. Sei que você está disposto a tudo para alcançar o que deseja.
— E se estiver certo? O que isso muda?
O reverendo não respondeu de imediato, a garota na mesa parecia ter prendido a respiração esperando alguma resposta, até que o reverendo tomou um gole do vinho.
— O que você deseja, rapaz, não é algo que se alcance sem sacrifício. Está disposto a entregar o que é mais precioso para você?
Lissandre respirou fundo, tentando fingir calma, seus olhos vagando ao redor, vendo que havia algo rasbicado no chão, todas as baboseiras do reverendo começando a fazer sentido. Um sacrifício.
Ele queria um sacrifício.
Seus olhos desceram para as taças de vinho, todos os outros na mesa tinham taças vazias, mas apenas ele e a garota tinham taças com a bebida com a cor profunda, quase negra com um aroma doce que o deixou desconfiado. Erguendo um pouco a taça, a levou até os lábios depois de girar um pouco a bebida dentro, um leve cheiro de ervas subiu da taça, algo que se misturava com o cheiro de ervas do templo, mas Lissandre havia sido envenenado vezes o suficiente pra reconhecer quando sua bebida estava adulterada.
Queriam dopá-los.
— Bebam. — o reverendo sorriu. — Esta noite é um momento de renascimento, crianças.
Lissandre hesitou, olhando para o vinho na taça. Ele sabia que Kalil não o deixaria sozinho naquela noite, o rapaz havia prometido que se algo desse errado, ele estaria por perto. Era nesse pensamento que ele se apoiava enquanto segurava a taça e a garota ao lado dele tomou um gole, quase engasgando. Ela estremeceu visivelmente, mas permaneceu em seu lugar.
Lissandre olhou ao redor mais uma vez, tentando identificar qualquer sinal de que algo estava prestes a dar errado. Todos na mesa o observavam com atenção.
Pela porcaria do livro..., pensou, cerrando a mandíbula, antes de levar a taça aos lábios e beber um gole suave.
O líquido era doce, mas havia algo metálico no gosto, algo que o fez estremecer. Ele colocou a taça de volta na mesa, tentando não demonstrar a sensação de torpor que começou a invadi-lo imediatamente. Era bastante resistente á drogas, havia experimentado diversas por toda a vida para criar alguma imunidade.
Mesmo se apagasse, não duraria mais do que dez ou vinte minutos, mas isso ainda era tempo suficiente para fazerem qualquer coisa com ele.
O mundo ao seu redor começou a girar. As vozes à mesa tornaram-se murmúrios indistintos, e o rosto do reverendo parecia flutuar à sua frente, o sorriso dele ampliando-se de forma grotesca. Lissandre tentou se levantar, mas suas pernas não obedeceram.
O último pensamento que teve antes de perder a consciência foi que Kalil estaria ali em breve.
Quando Lissandre despertou, o cheiro de incenso havia sido substituído por algo mais acre e perturbador, o cheiro de sangue. Ele tentou mover os braços, mas percebeu que estavam amarrados acima de sua cabeça. Seu corpo estava preso em algo frio e duro, provavelmente pedra.
Ele abriu os olhos, piscando contra a luz fraca dos lácrimas de luz, tentando se localizar. Estava deitado em um altar, com o peito exposto e cordas amarrando-o firmemente no lugar. Estava amordaçado, e erguendo um pouco a cabeça, bufou ao ver que suas roupas haviam sido substituídas por um monte de panos brancos que mal o cobriam, além de ter símbolos estranhos desenhados com tinta (ele rezou para que fosse tinta) vermelha em sua pele.
Olhou ao redor e viu outros corpos amarrados em altares menores ao longo do salão. Eram sete garotas, todas mais jovens que ele, todas igualmente amordaçadas e imóveis, seu coração gelou ao reconhecer uma delas: Anastácia.
Ela estava deitada a poucos metros de distância, com os olhos arregalados e cheios de lágrimas, o encarando apavorada.
Usando os mesmos trapos que ele, que mal cobriam seu corpo, ela parecia tentar falar algo e ele acenou para que ela se acalmasse um pouco. Lissandre tentou se mexer, mas as cordas cortavam sua pele cada vez que fazia força.
O reverendo estava ao lado de um grande símbolo desenhado no chão, segurando o livro vermelho em uma das mãos e um punhal na outra.
— Irmãos e irmãs! — ele começou, sua voz ecoando pelo templo. — Esta noite, oferecemos estas almas àqueles que estão além, para que nos concedam seus dons e suas bênçãos!
Lissandre encarou aquele velho com descrença. Além de sequestrar crianças, estava sacrificando elas para algum "deus"?
Que absurdo! Deuses não aceitavam sacrifícios! Demônios aceitavam sacrifícios, e adoravam ainda por cima! Ele era burro?!
O reverendo caminhou até o altar onde Lissandre estava, inclinando-se sobre ele com um sorriso sereno, mas perturbador.
— Você é especial, rapaz. — disse ele, baixo, como se fosse uma confidência. — Há algo em você que atrai os olhos dos que estão além. Eles o querem, sabia?
Lissandre apenas o encarou, o ódio queimando em seus olhos. Esse velho pervertido havia sequestrado criancinhas e ainda sua Ana, trocado suas roupas, ele a viu nua! Ela era só uma criança, esse bando de depravados!
Quanto mais pensava, mais enojado ele ficava. O reverendo inclinou a cabeça, como se apreciasse a resistência dele.
— Não se preocupe. — continuou ele, erguendo o punhal. — Seu sacrifício será o mais importante de todos.
O pânico tomou conta de Lissandre enquanto ele observava o punhal brilhar à luz das lácrimas de luz. Ele puxou as cordas novamente, ignorando o sangue que escorria de seus pulsos. Seus olhos buscaram os de Anastácia, que parecia estar tentando falar algo, mas a mordaça impedia qualquer som inteligível.
Quando o reverendo começou a recitar um cântico em uma língua desconhecida, o templo inteiro pareceu vibrar, como se algo estivesse se aproximando, pra alegria e fascínio daqueles lunáticos do templo.
Lissandre tinha certeza de que, ou Kalil chegaria com as pessoas da aldeia pra ajudar ou o demônio viria para levá-lo dali, mas ainda assim não conseguiu evitar de entrar em pânico quando viu aquelas garotas acordando lentamente, percebendo a situação em que estavam e então, entrando em pânico, soluçando e tentando se libertar.
Se havia algo que detestava, era covardia com crianças e já era a segunda vez que enfrentava uma situação dessas. Quanto azar, em ambas as vezes acabava amarrado como um porco esperando o abate!
Continua...
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