34 | Perseguidor
Lissandre tinha certeza de que estava vivendo algum tipo de pesadelo.
O porco, enorme e rosado, corria em sua direção com tanta sede de sangue que ele teve certeza de que morreria atropelado. O som dos cascos ecoava pelo quintal, e os gêmeos Irick e Briar estavam dobrados de tanto rir.
— Ei! Parem de rir e façam alguma coisa! — Lissandre gritou, saltando por cima de um pedaço de madeira abandonado no caminho, mas os meninos mal conseguiam respirar de tanto gargalhar.
Lissandre correu em zigue-zague, tentando despistar o porco, se sentindo um maratonista. O suor escorria por sua testa enquanto seus olhos varriam o quintal em busca de socorro, Kalil e Benny que ouviram a zona do lado de fora saíram só pra saber o que estava acontecendo. Lissandre primeiro avistou o rapaz saindo na varanda, nem pensou muito.
— Kalil! Me ajuda! — gritou em pânico, correndo em direção ao homem.
Kalil nem teve tempo de reagir, Lissandre saltou em sua diireção, agarrando-se em seu braço e escalando-o com uma destreza desesperada, como um gato subindo em uma árvore.
— Mas o quê...?! — Kalil começou, tentando equilibrar Lissandre com a mão, o porco quase o atropelando, mas levando uma bicuda enquanto Kalil recuava as escadas de volta.
O porco parou em frente a Kalil, bufando e raspando o chão com os cascos e Benny, com uma gargalhada, bateu os pés no chão, espantando o bicho.
— Vai embora, sua chata! — Benny gritou, gesticulando para o porco, que finalmente recuou, voltando lentamente para o cercado depois de guinchar na direção deles.
Lissandre ainda estava agarrado aos ombros de Kalil, o rosto enterrado na lateral do pescoço dele. Tremia levemente, o corpo ainda em alerta pela adrenalina. Kalil suspirou, levantando os braços para dar alguns tapinhas tranquilizadores nas costas de Lissandre.
— Ei, ei, está tudo bem. Já passou, Noah. — A voz de Kalil era grave, mas havia um tom gentil, como quem tentava acalmar um animal assustado.
Lissandre ergueu o rosto, ainda ofegante, olhando para a porca como quem via toucinho fresco.
— Esta porca maldita, eu nem fiz nada! — ralhou, antes de voltar o olhar na direção dos gêmeos. — E vocês nem pra me ajudarem!
— Deixaram o porco perseguir o garoto? — Benny exclamou enquanto erguia a cerca pra fechar a porca outra vez e Irick e Briar começaram a negar, mas o homem nem quis ouvir, pegando um pedaço de pau e ameaçando bater nos pequenos pestinhas, que gritaram e correram, procurando a avó pra evitar uma surra.
Ver eles correndo do pai fez Lissandre se sentir vingado e um sorrisinho maléfico quase escapou, até sentir mais tapinhas gentis nas costas e arregalou os olhos, encarando Kalil em quem ainda se agarrava.
— Você corre rápido, essa porca já me derrubou um monte de vezes. — Kalil disse, com um sorriso contido e Lissandre o soltou como se saltasse pra trás, o empurrando no processo, seu rosto ficando vermelho de vergonha.
Benny se aproximou, ainda rindo de Lissandre.
— Meu herói! — Benny disse em tom teatral, inclinando-se como se fosse fazer uma reverência para Lissandre — Noah, o caçador de porcos.
Lissandre bufou, ajeitando a camisa e virando de costas para esconder a vermelhidão do rosto.
— Pai, não perturbe ele agora. — Kalil suspirou.
— Ela apenas queria te cumprimentar, garoto. — Benny deu dois tapinhas no ombro de Lissandre. — É uma porca bem mansa. Na maior parte do tempo.
— Prefiro que fique mansa bem longe de mim. — ele olhou de relance para a porca, já no cercado.
Ainda sentia a respiração curta, as mãos suando frio só de lembrar do grito e do som dos cascos do bicho o perseguindo, mas ao olhar pro par de pai e filho, sentiu-se ainda mais constrangido.
Além de correr desembestado por aí, se agarrou no alfa como uma criança enquanto xispavam o bicho. Se sentia ridículo e não queria continuar sendo alvo de zombarias de Benny, então depois de considerar um pouco, não queria mais passar o dia com aquelas duas pestinhas, muito menos ir aos campos.
— Obrigado por espantar aquela porca, Benny. — se inclinou um pouco, sem querer olhar pro alfa, apontou distraído pra qualquer canto. — Vou dar uma volta por aí, bom trabalho para vocês. — murmurou, saindo em direção à borda do terreno, onde a floresta começava a se desenhar no horizonte, Benny gargalhou divertido enquanto Kalil ajeitava as roupas, olhando pro pai com desamparo.
Lissandre considerava seriamente se enfiar na floresta e nunca mais voltar depois daquele vexame.
A floresta parecia um refúgio perfeito. As árvores altas ofereciam sombras frescas, e o som dos pássaros ajudava a acalmar o coração acelerado de Lissandre. Ele andava sem rumo, tentando deixar para trás o vexame recente, mas foi interrompido por um som suave vindo de algum lugar entre os arbustos.
Era um ganido, baixo e curioso, como o chamado de um animal pequeno. Lissandre parou, franzindo a testa, e se aproximou lentamente do som, tendo certeza de já tê-lo ouvido antes.
Entre as folhas, ele encontrou aquele filhote felpudo. O animal parecia magro, mas não ferido e estava se espreguiçando na grama com preguiça.
— O que você está fazendo aqui? — Lissandre perguntou, agachando-se para olhar mais de perto. — Está me seguindo, sua coisinha arrogante?
O filhote inclinou a cabeça, os olhos brilhando sob a luz que escapava pelas frestas das árvores, antes de farejar um pouco o ar. Lissandre queria dar uma lição nele por ter colhido todas aquelas frutas apenas para se exibir em sua cara, mas vendo algumas manchas de sangue pela pelagem do filhote, não conseguiu sustentar sua raiva e sem pensar muito, Lissandre estendeu a mão, querendo tocá-lo um pouquinho.
Para sua surpresa, o filhote se aproximou e a cheirou antes de esfregar a cabeça contra seus dedos.
— Ah, não... não faz isso. Não posso te levar comigo. — Lissandre sussurrou, mas sua voz já não tinha tanta convicção. — Eu estou hospedado de favor na casa dos outros, sabia? E não tenho um centavo comigo, vou te alimentar com sobras! — o filhote soltou um ganido baixo, se deitando no chão. — E eu sou muito mesquinho e cruel. Quando me cansar de você, vou jogá-lo fora. Então não me siga. — ralhou, cutucando o focinho do bicho, que colocou a lingua roxa pra fora enquanto arfava.
Ele ficou ali por mais alguns minutos, o provocando um pouco, mas quando se levantou para voltar para a aldeia, o filhote também se ergueu, trotando desajeitadamente atrás dele.
— Eu disse que não. — Lissandre murmurou, tentando soar firme e seguiu em frente. Porém, cada vez que olhava para trás e via aqueles olhos brilhantes, sentia que sua determinação diminuía.
No fim, o filhote o acompanhou até a casa de Léia, e Lissandre sabia que não teria coragem de mandá-lo embora, então aproveitando que a casa de Léia estava vazia e o levou para o quarto de Anastácia, tentando limpá-lo com um lenço até ver que sua pata dianteira esquerda tinha uma ferida. Não sabia bem como lidar com aquilo, então além de limpar com água, enrolou o lenço e convenceu o filhote a ficar debaixo da cama até conseguir algo pra ele comer.
Anastácia voltou pra casa antes do meio-dia, preparando uma refeição rápida para eles e convidou Lissandre para acompanhá-la na entrega da comida para o pai e o irmão, mas Lissandre preferiu evitar de ver aqueles dois, além de conseguir uma brecha pra dividir alguma carne com o filhote. Com a desculpa de querer descansar, ficou na casa pelo restante da tarde, sem ideia do que fazer caso o filhote resolvesse segui-lo quando o demônio viesse.
Com o pôr do sol, os membros da família lentamente voltaram pra casa, todos cansados ou suados, mas de bom humor. Os gêmeos, ao verem Lissandre, se agarraram nele pedindo desculpas por rirem da perseguição do porco, enquanto Kalil e Benny evitaram de mencionar a situação enquanto jantavam. Léia não perguntou, mas pelo meio sorriso nos lábios, já devia saber do ocorrido, apenas Anastácia estava alheia á isso, falando alegremente da missa que iriam dali a pouco.
Após o jantar, todos da família banharam e vestiram suas melhores roupas. Lissandre não tinha interesse de ir, mas considerando que o tal livro que Ainzart queria poderia ser o que o reverendo tinha, ele também se arrumou e seguiu a família. Ao sair da casa, várias pessoas já seguiam rumo ao templo, como uma procissão silenciosa, ninguém dizia uma palavra pelo caminho.
O templo era uma construção simples, mas acolhedora, com paredes brancas e bancos de madeira escura. O cheiro de cera de vela impregnava o ar, misturado com o perfume das flores que decoravam o altar.
Lissandre sentou-se ao lado de Anastácia, tentando parecer discreto. Ela o observava de soslaio, um sorriso leve nos lábios, como se soubesse algo que ele não sabia.
— Faz tempo que não rezo. — Lissandre comentou, baixinho.
— Não se preocupe. Deus ouve até os mais silenciosos. — respondeu Anastácia, com uma tranquilidade que o deixou desconcertado.
O sermão começou, conduzido pelo reverendo, seu traje era o mesmo do dia anterior, com os olhos enfaixados e um capuz cobrindo sua cabeça. Lissandre tentou ignorar a sensação de que estava sendo observado, mas a cada vez que erguia o olhar, encontrava os olhos do reverendo fixos nele.
Havia algo naquele reverendo que o deixava asqueado. Lissandre desviava o olhar, cruzando os braços e focando em qualquer outra coisa, mas o desconforto apenas aumentou com o passar do tempo. Mesmo quando o reverendo tirou um enorme livro vermelho para ler algo nele, Lissandre não conseguiu focar no que era dito, querendo ir embora o quanto antes.
Quando a missa terminou, ele respirou aliviado, ansioso para sair do templo e seguiu Anastácia, porém, antes de alcançarem a porta, um outro membro do templo os abordou, usando um manto similar ao do reverendo, mas num tom marrom escuro.
— Você é novo na aldeia, meu jovem? — perguntou, com um sorriso que não chegou aos olhos e Lissandre quis recuar, Anastácia ao seu lado acenou.
— Ele é um viajante, senhor. — ela sorria e o homem assentiu lentamente, ainda com aquele olhar fixo em Lissandre, antes de colocar uma mão em seu ombro. — O trouxe para conhecer o templo e o reverendo. Foi uma missa encantadora.
— É sempre bom ouvir a palavra d'O Senhor, meu jovem. — o homem seguiu falando, como se Anastácia nem estivesse ali e Lissandre só não a arrastou com ele pois a saída do templo estava congestionada com as pessoas que saíam lentamente. — Possui uma beleza incomum, ainda é puro? — Lissandre piscou atordoado, sem ideia do que ele queria dizer, mas como se o homem se arrependesse do que disse, forçou um sorriso. — Não desvie do caminho, adore à Eko e terá uma vida próspera que o aguarda.
— Vou lembrar disso. — disse impaciente, sentindo um olhar queimar em suas costas. Ao se virar, não viu ninguém, sentindo calafrios só de continuar naquele templo.
Apressou Anastácia para saírem logo, olhando ao redor em busca de Léia ou até mesmo Benny, se sentiria mais seguro na presença de qualquer um dos dois quando avistou o reverendo ainda sob o púlpito. Ele parecia encará-lo fixamente e por um momento, Lissandre até pensou vê-lo sorrir, mas Anastácia o puxou para que saíssem apressados ao encontrar a mãe no meio da multidão.
Lissandre engoliu seco, tentando ignorar a sensação desagradável que o consumia só de pensar naquele reverendo.
Continua...
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