32 | Para Salvar a Cara
Lissandre tinha pouquíssimo interesse nesse reverendo, mas e se aquele tal livro que Anastácia mencionou fosse o que Ainzart queria? Talvez por ser um livro sagrado, aquele demônio não podia tocá-lo ou roubá-lo como queria.
De qualquer forma, não queria pensar muito nos por quê's do demônio pedir pra ele pegar o livro. Bastaria roubar aquela porcaria e pronto.
Afastando as pessoas, se aproximou cada vez mais do centro da comoção, levando um pisão no pé ou um esbarrão, até que perdeu a paciência e saiu empurrando as pessoas. Os poucos que queriam reclamar, não o fizeram ao ver a aparência dele, atordoados o suficiente pra que, quando voltassem á si, Lissandre já havia sumido no meio das pessoas outra vez.
Quando por fim saiu do cerco, quase tropeçou ao ser empurrado por alguém, vendo primeiro um manto branco que tocava o chão. Erguendo o olhar, viu um homem muito alto que usava um traje completamente branco, sem adornos ou enfeites. Os braços estavam enfaixados, assim como seus olhos.
O homem parecia fazer uma reza baixa, tocando na cabeça de uma criança, uma mulher atrás parecia emocionada (talvez fosse a mãe do pirralho?) e Lissandre tentou recuar, batendo em alguém.
— Vá lá, garoto! Não sinta medo, o reverendo irá abençoá-lo. uma mão tocou em suas costas, o empurrando e isso foi o suficiente pro reverendo olhar em sua direção, um sorriso compassivo surgindo em seus lábios.
— Minha criança, venha. — estendeu a mão e Lissandre quis se negar.
Não era uma criança, tinha quase um e oitenta de altura e era quase um adulto. Mas ainda assim, foi empurrado na direção do homem, que tentou tocar em sua cabeça. Lissandre estapeou sua mão com desgosto e até as conversas e reverências pararam, um silêncio surgindo enquanto todos encaravam aquele forasteiro ignorante.
Quantos ali não queriam ter a sorte de receber a bênção do reverendo? Era um homem tão recluso que raramente deixava o templo!
Mas diferente dos moradores que queriam arrastar Lissandre para ensinar alguns modos á ele, o reverendo parou surpreso por um momento, antes de seu sorriso se alargar, mantendo a mão acima da cabeça de Lissandre.
— Que a luz e a sabedoria o iluminem, minha criança. Que Eko esteja sempre com você, que seus caminhos sejam sempre regados de bênçãos, saúde e felicidade. Nenhuma criança nasceu nesse mundo para sofrer. — sua voz era suave e auterea e Lissandre, que antes só queria fugir dali, parou e analisou bem aquele "reverendo cego". Como ele sabia onde colocar a mão pra "abençoar" ele? — Sei que o Deus da Prosperidade ainda não está em seu coração, mas ele ainda olha por você. — seu tom era mais baixo e Lissandre teve certeza de que os olhos daquele homem o encarava.
Cerrando os punhos, observou o homem recuar um passo, unindo as mãos diante do corpo e, com um tom tranquilo, perguntar sobre os campos enquanto seguia seu caminho, seguido por seus fiéis.
Tentando disfarçar o desconforto que sentia, Lissandre viu todas aquelas pessoas saindo da praça seguindo o reverendo, quando alguém segurou em seu pulso de repente.
— Por Eko, como pôde desaparecer num piscar de olhos?! — era Anastácia, que estava suada, vermelha e o olhando exasperada. — Se queria tanto ver o reverendo, bastava esperar, amanhã á noite tem um culto.
— Tem? — Lissandre voltou a encarar a garota, que acenou, começando a explicar que seria divertido já que o coral do templo era o melhor que ela já havia ouvido.
Lissandre olhou na direção em que aquele reverendo havia partido, certo de que ele não era cego. De onde vinha aquela certeza, nem ele mesmo saberia dizer.
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A sala de chá do palácio imperial estava finamente decorada para a festa que a Imperatriz Serafina havia preparado. Ela estava impecável em um vestido de seda dourado, ocupando o centro do ambiente como uma estrela régia, tão bonita e elegante quanto uma fada. Seus cabelos prateados em um penteado elaborado, adornado com jóias e sua coroa apenas a deixavam ainda mais chamativa.
Ela havia convocado todas as damas nobres da corte para uma tarde de chá "informal", embora, evidentemente, nada no evento fosse casual. Os delicados jogos de porcelana estavam dispostos em mesas decoradas com toalhas rendadas, e doces elaborados formavam um mosaico de cores vibrantes sobre bandejas de prata.
Serafina não era tola. Sabia que sua reputação – e a do Império – estava intimamente ligada à conduta de sua família, especialmente de seu sobrinho. Antes de seu desaparecimento, ele havia sido acusado e completamente humilhado em público pela querida noiva que seu estúpido filho escolheu, ultimamente muitos nobres especulavam sobre a conduta dos Rosenvelth e mesmo ela havia sido manchada pelos rumores. Mason parecia ter tido seu cérebro derretido por aquela nobre inferior, esquecendo-se que sua conduta nada honrosa de encurralar e ainda humilhar um ômega apenas o faria ver como um valentão, mesmo que estivesse certo, não havia seguido os procedimentos corretos para o término de um contrato matrimonial e ainda escolhido outra noiva, ignorando tantos passos importantes e ainda agindo com tanta pompa diante de tantos nobres, sua própria reputação havia sofrido.
Serafina, que sempre se orgulhou do alto intelecto do filho, ás vezes queria esbofeteá-lo por ter agido como um estúpido adolescente emocionado. Agora, teve de prestar contas com o próprio irmão sobre a quebra do contrato de casamento, aturar os tios daquela ratinha agindo como se fossem parentes dela e até os rumores sobre a conduta inapropriada de Mason, ele era o único herdeiro do Imperador, mas não o único filho e aquele garoto parecia estar se esquecendo disso! Duas noites atrás, havia se reunido com o imperador e ele não estava nada contente com tudo aquilo mesmo que tivesse ocorrido há semanas!
Quanto á Lissandre, ela queria ter agido antes e feito algo á respeito, mas Cirrus insistiu para que ela deixasse ele lidar com a situação e até o momento, os rumores apenas pioraram, os nobres até diziam que seu sobrinho havia fugido com um homem! Como se Lissandre fosse capaz disso!
As festas promovidas pela Imperatriz não eram uma raridade, ela era tão ativa socialmente que estava sempre a par de tudo o que acontecia, mas por algum motivo, aquele evento em si parecia sufocante, quase como se esperassem algum anúncio importante. Sabiam que Serafina queria informações de seu sobrinho e por mais que todo o escândalo que Lissandre estava envolvido ainda fizesse as damas escandalizarem em horror, ninguém sequer mencionava o assunto diante da Imperatriz, elas tinham amor à própria vida.
Em uma mesa discreta, Mariah apertava os dedos unidos sob o colo, incapaz de tomar uma única gota do chá servido, alheio às conversas baixas das outras garotas sentadas ao seu redor. Ela estava claramente deslocada entre os vestidos volumosos e as conversas ensaiadas das nobres, vestindo um simples traje azul, sem adornos extravagantes. Todas eram da mesma idade, mas apenas ela havia frequentado a academia de magia, sendo uma usuária de magia elemental de ar, mas ainda uma nobre de baixo status, nunca pensou que seria pessoalmente convidada para um evento assim junto da Imperatriz.
Para muitos, a presença de Mariah entre a elite era vista como um golpe de sorte; para Serafina, era um problema que precisava ser tratado com cuidado. O olhar da imperatriz, no entanto, não a perdeu de vista. Ela era uma das supostas "vítimas de bullyng" de Lissandre, mas em suas investigações, aqueles dois nunca haviam interagido uma vez sequer.
— Minhas queridas, estou tão contente que todas puderam vir. — Serafina ergueu-se com graciosidade ao ver que todas já estavam presentes. Seu tom era cálido, mas suas palavras tinham um peso que ninguém ousaria ignorar, as conversas e sussurros cessaram e todos os olhares se voltaram para sua figura. — Acredito que seja nosso dever, como mulheres de influência, guiar os jovens desta nação para a grandeza, não?
Um murmúrio de aprovação percorreu a sala, e Serafina deu um sorriso satisfeito antes de continuar: — Falando nisso, quero expressar minha gratidão à senhorita Mariah por ter aceitado meu convite. Sei que sua dedicação aos estudos e seu talento na magia têm sido um exemplo para muitos jovens.
Mariah corou, claramente surpresa por ter sido chamada, seus olhos se arregalando ao receber o olhar da imperatriz. As nobres ao redor a encararam com olhares mistos de curiosidade e desdém.
— Ah, Majestade, eu... — começou Mariah, mas foi interrompida pela voz firme de Serafina.
— E, senhoras, devo confessar que me sinto triste ao saber que certos mal-entendidos têm surgido entre os alunos da Academia. Há tantos rumores por aí que nem sei ao certo como as coisas chegaram nesse ponto...
As palavras da Imperatriz foram calculadas. Ela não negou explicitamente as acusações, mas também não confirmou. A falta de presença de Lissandre, Mason e até mesmo Mirabel deixavam Serafina livre para moldar a narrativa.
Mariah mordeu o lábio inferior. Apesar do desconforto evidente, ergueu a cabeça e falou:
— Vossa Majestade, se me permite dizer, acredito... que as ações tem consequências. Mal-entendidos são facilmente formados, mas... não há mal nesse mundo que fique pra sempre encoberto.
Um silêncio constrangedor tomou conta da sala. As nobres pareciam indecisas entre admirar a ousadia da garota ou considerá-la insolente. Serafina, por sua vez, inclinou levemente a cabeça, estudando Mariah com olhos avaliadores.
— Uma posição admirável — disse a Imperatriz, após um momento. — E você está absolutamente certa. Como alguém que estudou com meu sobrinho por tantos anos, deve saber exatamente o que diz, o conhecendo tão intimamente. — seus olhos se estreitaram um pouco e Mariah franziu levemente os lábios, o suor frio se acumulando nas palmas de suas mãos enquanto desviava o olhar, agradecendo internamente por estar usando luvas.
Ela havia estudado com Lissandre nos últimos quatro anos, mas não o conhecia realmente. De repente, entendeu o por quê de ter sido convidada, mas não teve coragem de abrir a boca outra vez. Mesmo que tenha estudado com Lissandre, sequer trocaram uma palavra. Sabia que ele era muito rígido quanto ás regras, principalmente á etiqueta e, como um nobre de status superior, dificilmente olharia para ela, filha de um barão.
Ela era invisível para a maioria dos nobres da academia, Lissandre então, parecia viver em outro mundo, mesmo que estivessem na mesma classe. Quando soube que ela havia sido listada como uma das vítimas de bullyng, não conseguiu negar ou afirmar, até então havia reclamado um pouco dele estar sempre em um pedestal ignorando os outros, não pensou que de repente fosse ser chamada durante o baile de formatura do príncipe para servir de testemunha.
— Acredito que alguns rumores tenham exagerado com o tempo, afinal, eu mesma criei meu sobrinho, sei do que ele é capaz. — Serafina disse num tom controlado, unindo as mãos diante do corpo, ainda olhando para Mariah. — Ou estão dizendo que eu o criei para ser assim?
— Não! — Mariah exclamou, arregalando os olhos quando todos olharam em sua direção outra vez. — D-digo, Sua Majestade, eu acredito... que possa sim ter alguns mal-entendidos... Vossa Alteza, Lissandre era muito bem quisto e elogiado, os acontecimentos daquele baile foram chocantes para todas nós. — muitas nobres acenaram em concordância.
Lissandre era visto como a epítome da perfeição, inteligência, beleza, poder, ainda era querido pela Imperatriz e em breve, seria coroado, ele tinha tudo. E de repente, caiu de seu pedestal e foi chutado pelo próprio noivo, foi um assunto quente por semanas e ainda queimava aqui ou ali. Aqueles que o invejavam não eram poucos, adoraram sua desgraça.
Serafina quase bufou ao ouvir isso. Claro que foi chocante, até mesmo ela foi pega de surpresa e se não fosse por Cirrus a atrapalhando, já teria eliminado todos aqueles rumores há muito tempo.
— Sim, hoje em dia acham que é abuso de poder dizer aos nobres sobre a diferença de status e regras básicas da etiqueta. — uma outra nobre comentou, o que trouxe à tona comentários semelhantes.
Não que fosse certo, mas bastava uma dar a deixa que logo seguiam a tendência. Serafina contava com isso, afinal, quem diria algo ruim sobre seu sobrinho diante dela?
A tensão diminuiu com a risada melodiosa de Serafina, mas Mariah sabia que havia sido usada. A Imperatriz a havia chamado apenas para falar por Lissandre, independente do que ela dissesse, ainda seria para o benefício da Imperatriz.
Enquanto o chá prosseguia, Serafina sutilmente guiou as conversas para longe de acusações e em direção às realizações de Lissandre, pintando-o como um jovem incompreendido, mas promissor. Ela ainda prometeu alguns benefícios por qualquer informação sobre o paradeiro de Lissandre, o que fez as nobres se animarem em buscar seus contatos por qualquer noticia.
No final do evento, Mariah saiu com a sensação de que havia travado uma batalha silenciosa. A imperatriz, por outro lado, observou a sala esvaziar-se com um sorriso satisfeito. Serafina sabia que a reputação de sua família não estava completamente restaurada, mas aquele era apenas o primeiro movimento de muitos.
Ela iria proteger seu sobrinho, custe o que custar.
Continua...
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