24 | O Líder dos Malucos
Apesar de ter visto aqueles olhos apenas uma vez, Lissandre nunca esqueceria do terror que viveu naquela clareira.
Pensou que morreria, ainda sentia pavor ao lembrar daquela noite, aquelas orbes carmesim o encarando fixamente com uma sede de sangue sufocante.
O demônio estava ali. Provavelmente foi quem o enfiou naquele buraco. Mas Lissandre ainda não se lembrava por que suas roupas estavam rasgadas ou de onde havia surgido tantos machucados e hematomas em seu corpo.
Sob o olhar sanguinário do demônio, ele quis recuar e se enfiar de volta na caverna, certo de que ele não entraria ali e cerrando a mandíbula, se forçou a recuar. Apenas ouviu o farfalhar das folhas antes de uma enorme sombra surgir acima de si, uma ventania ainda mais feroz o empurrando e o fazendo cambalear, erguendo os olhos arregalados na direção da criatura que agora planava poucos metros acima dele.
Sua respiração se tornou superficial, as pernas tremeram e cambaleou para trás, apenas não caindo por achar vergonhoso demais ficar estatelado no chão.
Já se sentia humilhado demais por todas as ocorrências passadas, chorar e espernear por aí com certeza não é algo digno de um nobre como ele. Contendo os tremores de pavor pelo corpo, se forçou a erguer o olhar, quase se inclinando para conseguir ver o rosto daquele demônio horrível, coberto de escamas assustadoras, espremeu os lábios para se impedir de gritar.
Oh, céus! Como é feio! - pensou com pavor, lutando para parecer indiferente e quase fechou os olhos quando o demônio arqueou uma sobrancelha.
— Finalmente parou de chorar. — ele disse por fim, sua voz baixa, rouca e Lissandre piscou atordoado. Chorar? Ele? Que ridículo, ele não chorava! — Pensei que teria de arrancar seus olhos para acabar com isso. — um sorriso sádico se desenhou nos lábios do demônio, revelando presas afiadas que fizeram Lissandre recuar um passo.
O cheiro daquela criatura era indescritível. Uma mistura de sangue seco, grama, madeira, suor, Lissandre sentia o nariz arder e os olhos até lacrimejar. Só não reclamou pois tinha certeza de que não estava muito mais cheiroso do que aquela criatura.
— E-eu... o que... — começou, se odiando pela forma como a própria voz soava frágil e trêmula, apenas para ver o demônio erguer algo com a mão, a soltando diante de si com um baque surdo.
Ao encarar o que era aquilo, sentiu o estômago embrulhar ao ver que era uma cabeça. Sequer sabia de qual animal era e quando sentiu a saliva acumular na boca e a ânsia subir, cobriu os lábios, desviando o olhar.
— Coma. — a voz do demônio o fez se encolher e, antes que pudesse reagir, a criatura abriu suas enormes asas, alçando voo com um impulso, deixando para trás uma ventania que desequilibrou Lissandre e quase o fez cair em cima daquela cabeça ensanguentada.
Finalmente sozinho, ele demorou um longo instante processando o que havia ouvido daquele demônio, antes de encarar aquela cabeça no chão. Ele quer que eu coma essa porcaria? - pensou com uma careta de nojo.
— Nem se eu estivesse louco! — resmungou entredentes antes de, com muita má vontade, se arrastar de volta pra caverna.
Pelo menos ali achava que o demônio não o alcançaria. Era orgulhoso demais para se alimentar daquela coisa horrorosa no chão e já havia aprendido sua lição sobre correr pela floresta sem saber olhar as coordenadas exatas de um mapa, não se arriscaria de novo.
«« »»
Com a sensação de que havia feito seu dever, Ainzart não se importou mais com aquele humano chorão outra vez.
Nos últimos dias, cada vez que estava acordado, ele saía por aí sem rumo, chorando e caso Ainzart se aproximasse, aquela coisinha minúscula choraria tentando se agarrar a ele. Era desagradável para dizer o mínimo, não tinha ideia do que havia acontecido com o humano pra ele ficar tão fora de si, então o jogou naquela caverna junto de algumas frutas, de fome ele não morreria.
Os humanos eram irritantes, precisando de comida, de água, de abraços, era difícil criar um mascote tão insuportável e barulhento como aquele.
Ciente do próprio tamanho, ele parou de voar quando se aproximou da cidade ao pé da montanha antes de ser engolido pelas sombras.
No alto de uma colina isolada da cidade, havia uma pequena igreja onde os fiéis devotos iam para adorar alguma divindade local. Lá dentro, um fervor quase palpável tomava conta do salão principal, iluminado por diversas pedras luminosas nas paredes e nas pilastras.
Como uma sombra, o demônio havia surgido no alto de uma viga, os observando do teto. Sua presença era fria, o ar dentro da igreja se tornou denso, mas as pessoas que se ajoelhavam em um semicírculo perfeito no extenso salão não pareciam tê-lo notado.
Suas cabeças estavam baixas e seus mantos negros cobriam todo o seu corpo. No centro do altar elevado, cercado por runas intrincadas e símbolos gravados no chão de pedra, estava o líder. Vestido em um traje cerimonial de tons dourados e azuis. Uma máscara dourada ocultava parcialmente seu rosto, seus braços estendidos como se bancasse alguma figura divina e misericordiosa fez Ainzart sorrir, achando um pouco de graça em toda aquela encenação. O líder cantava algo em alguma língua estranha, talvez inventada e os membros ofereciam presentes aos seus pés: joias, ervas raras, e até pequenas taças de sangue, coletadas em rituais prévios, como símbolo de sua devoção.
Suas expressões alternavam entre êxtase e lágrimas, como se estivessem na presença de algo verdadeiramente divino e Ainzart arqueou uma sobrancelha, agora entediado com toda aquela farsa.
Havia sido invocado por eles. Não sabia como eles descobriram seu nome, mas aqueles humanos acharam que poderiam controlá-lo.
Além de se fortalecer nos últimos dias, esteve esperando que aqueles humanos agissem e fizessem logo o ritual de invocação. O selo que usariam poderia abrir uma lacuna entre esse mundo e o submundo e como uma criatura das trevas, se ficasse no selo, seria enviado "de volta" ao submundo caso o ritual de pacto falhasse. Era trabalhoso reunir toda a energia de caos necessária para o ritual, aqueles idiotas fariam esse trabalho por ele.
No centro do grande salão do templo, o líder da seita finalmente parou com aquela cantoria estranha.
— Irmãos e irmãs, a hora tão esperada está sobre nós! — proclamou, seus braços abertos em um gesto de grandiosidade. — A lua de sangue se ergue nos céus como o sinal que nos foi prometido. É o momento que marca a convergência dos mundos, o limiar entre o humano e o divino, o tempo em que nosso chamado será ouvido!
Ainzart arqueou ambas as sobrancelhas, suas orelhas se movendo com curiosidade. Então a fase das luas era importante pro ritual?
Ainda faltavam alguns dias até a tal lua, se lembrava de que nesse período, sua força sempre crescia.
Os murmúrios de assentimento ecoaram pelas fileiras dos membros malucos daquela seita, atraindo a atenção de Ainzart outra vez, mas logo os murmúrios cessaram quando o líder ergueu uma mão, exigindo atenção total.
— Agora, mais do que nunca, devemos nos preparar. Cada um de vocês tem um papel vital neste ritual. O círculo deve ser traçado com precisão; os símbolos devem ser desenhados com sangue e verdade. Os cânticos precisam ressoar como um só, um eco eterno que atravessará os véus que nos separam do poder que buscamos! — seus gestos eram exagerados, sua voz cheia de um fervor fazendo os membros daquela seita acenarem, maravilhados.
Que bando de malucos... - Ainzart pensou com uma careta de desgosto.
Sua voz baixou, tornando-se grave, carregada de peso e urgência.
— Este é o momento pelo qual sacrificamos tudo. Não há espaço para falhas. A lua de sangue não esperará, e nem as forças que ela convoca. Mostremos nossa devoção, nossa força, e eles nos recompensarão com um poder além da compreensão humana. Traremos ao nosso mundo, o nosso divino, que nos dará tudo o que sonhamos!
O líder fez uma pausa, olhando para cada fiel com um olhar penetrante, como se inspecionase suas almas.
— Vão. Comecem os preparativos. Tudo tem de estar perfeito em três dias, meus devotos. Que a lua de sangue ilumine o caminho e que os deuses atendam ao nosso chamado.
Os fiéis se levantaram, murmurando palavras de obediência e reverência, dispersando-se para cumprir suas tarefas. O líder ficou ali, imóvel por um momento, observando-os com uma satisfação silenciosa, um sorriso lentamente surgindo em seus lábios.
Aqueles membros estúpidos achavam que invocariam uma divindade, mas mal sabiam que eles seriam o sacrifício.
Continua...
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