10 | Na Mira do Diabo
— Onde esteve a tarde toda? — Devon foi o primeiro a falar quando Mirabel surgiu detrás de algumas árvores. — Isso é sangue?
— Está ferida? — Mason, que vinha logo atrás, exclamou preocupado ao ver a situação de sua noiva. — Mira...
— Eu estou bem, não é meu sangue. — ela sorriu de forma reconfortante, todos os amigos já haviam se aproximado e claramente esperavam uma explicação mais detalhada. — Eu apenas... — hesitou. Se soubessem que havia um demônio no meio da floresta, aqueles quatro subiriam sem hesitar para matá-lo. — Eu cacei um pouco.
— Por que não disse que iria tão longe? Nós teríamos te acompanhado. — Mason cruzou os braços, olhando por um instante para a floresta com as sobrancelhas franzidas.
Não sentia que havia uma grande concentração de maana ali, então as feras que viviam naquele lugar deviam ser fáceis de lidar, mesmo assim, Mirabel havia passado por um atentado de vida há poucos dias, um acidente poderia ocorrer e então, seria tarde demais para ajudá-la em alguma emergência..
— Não era nada sério, apenas peguei algumas presas. Podemos comer faisão no jantar. — ela retirou uma ave do anel espacial que usava. — E Damian, já teve alguma notícia? — a mudança de assunto fez todos se entreolharem.
A expressão de Damian se fechou, enquanto relembrava o último contato com o pai. Não gostava de sequer lembrar disso, todos deviam estar em um alvoroço sem fim pelas últimas notícias.
Seu irmão caçula havia desaparecido, havia boatos de que ele havia sido sequestrado, mas ele não acreditava nisso. Conhecia aquele ômega, era bem mais provável que ele tenha fugido para causar alguma confusão por aí.
Acreditava que quando ele percebesse que a vida não era nada fácil, ainda mais para um ômega incompetente como ele, voltaria rastejando para a família, então não pensava muito no assunto. Mesmo seu pai parecia indiferente quanto às notícias e, mesmo que o arquiduque não odiasse completamente aquele ômega, ele não o amava o suficiente para causar uma grande comoção o procurando por aí..
Era até melhor, quem sabe após algum sofrimento, Lissandre criasse alguma consciência e parasse de causar problemas por aí? Não se importava o suficiente para verificar alguns relatórios das buscas e preferia nem ser lembrado daquilo.
Odiava Lissandre e todos os outros compartilhavam do sentimento. Apenas Mirabel, doce como sempre, se via aflita lendo as notícias que surgiam vez ou outra a respeito.
— Ainda não tive notícias. — disse por fim, apenas para ver a garota suspirar com pesar. — Como eu disse, ele é caprichoso, mimado ao extremo. Está apenas fazendo birra, quando se cansar, irá voltar para casa.
— E se não for? — Mirabel achava absurdo.
Independente dos erros daquele garoto, ele ainda era mais novo, talvez imaturo e agora mesmo poderia estar em algum perigo. Era apenas um ômega, ela se sentia doente apenas de imaginar o que poderiam fazer com ele.
— Bom, se não for, é menos uma dor de cabeça pra lidar. — Helena brincou, o que causou risos em Devon e Damian.
Certo, alfas são assim.
Mirabel olhou outra vez para as montanhas, não queria discutir outra vez. Achava um desperdício tantas pessoas poderosas a escoltando para uma missão enquanto um dos sobrinhos da imperatriz estava desaparecido por aí.
A frieza de Damian quanto ao próprio irmão caçula também a convenciam de que ele não era totalmente bom ou minimamente decente, mas no final das contas, ainda não era alguém que pudesse opinar na vida familiar dos outros.
Decidiu se concentrar em sua pesquisa a respeito da praga que assolava Anaê, essa era sua missão. Qualquer coisa relacionada ao caçula dos Rosenvelth deveria estar sendo bem administrada pelo arquiduque e só lhe restava orar ao Deus da Luz para proteger e guiar aquele garoto ao bom caminho e mantê-lo seguro.
»» ««
Depois de revirar toda a cabana e correr pelos jardins, Lissandre deixou o corpo cair no gramado sentindo a fúria se retorcer em seu interior.
Aquele demônio havia fugido!
Queria gritar e espernear, mas apenas permaneceu estirado no gramado, olhando para o céu que já havia escurecido, pontilhado por estrelas. O frio da noite não o atingia, sentia mais calor, talvez alimentado pela fúria que ardia no sangue.
Por dias, planejou tudo nos mínimos detalhes, como poderia fingir e se passar de bom samaritano que curou aquela besta, como poderia conquistar sua fé e lealdade para assim, viver de forma segura e confortável pelo resto da vida.
Não conseguia entender como o demônio havia conseguido fugir, ferido como estava. No livro mencionava que ele ficava inconsciente na cabana abandonada por dias, mas então o que mudou? Por que despertou de repente e tão rápido ainda por cima? Mirabel nem havia lavado as mãos da sujeira, pra onde mais aquele demônio fugiria?
Se levantou outra vez, coçando a nuca com desconforto.
Talvez pela raiva, sentia o sangue fervilhar, todo o corpo se aquecer e se viu desejando mais do que tudo um banho frio e assim o fez seguindo até o riacho, ignorando seu pavor noturno e até mesmo os sons crepitantes de pequenos animais ou quem sabe, uma besta à espreita.
Estava tão furioso que se jogou na água gelada sem sequer se despir, sentindo o choque térmico no mesmo instante, seu corpo quente estremecendo em contato com a água fria e mesmo assim, não se sentia minimamente aliviado.
Ainda furioso, gritou todos os palavrões que conhecia, não eram muitos pois havia sido criado de forma rigorosa e o pior que conhecia era "merda" e isso o frustrou ainda mais. Não havia forma de dispersar a irritação e continuou se irritando como um pequeno vulcão à beira de uma explosão.
Saiu do rio, a água fria não tinha efeito e respirou fundo diversas vezes, se obrigando a pensar com calma, arrancando o colar do disfarce e o guardando em um anel espacial, sua verdadeira aparência estava à mostra.
Os cabelos prateados molhados pela água grudavam na testa, um pouco bagunçados, a pele pálida e sem manchas ou qualquer marca tinham um enorme contraste com a boca, os lábios gordinhos e vermelhos, como duas frutinhas suculentas e que agora se espremiam enquanto ele rogava pragas e maldições á Mirabel, ao antagonista, ao arquiduque, aos quatro patetas que seguiam a pateta da protagonista e nem mesmo o imperador escapou de suas maldições, afinal, ele era o pai de seu desafeto.
Todo esse tempo, seu surto foi acompanhado silenciosamente por uma figura oculta nas sombras.
Lissandre ainda estava perdido em pensamentos, decidindo o que fazer. Não podia perder tempo naquela cabana, logo soldados e aventureiros surgiriam e não queria ser pego.
Decidiu partir imediatamente, não havia nada que quisesse buscar naquele casebre, mas antes mesmo de verificar no mapa para onde poderia ir, uma sombra surgiu de repente diante de sua visão, seus olhos se fechando com força por puro reflexo ao ser empurrado contra o chão.
Um gemido abafado escapou ao ser pressionado na grama, a dor o deixou atordoado, mas sequer teve tempo de assimilar o que acontecia quando uma mão fria segurou seu pescoço, os dedos pressionando com força o fazendo engasgar e tossir, suas mãos instintivamente arranhando aquele braço até sentir as unhas arranharem em uma superfície dura.
Ao abrir um pouco os olhos, primeiro teve um vislumbre de um braço, parte da pele era tão branca quanto uma folha de papel, mas havia partes cobertas por escamas negras. Seguindo a linha do braço, teve um vislumbre dos ombros nus, seu coração acelerando e a dor o desnorteando ao ver duas enormes asas negras se abrindo atrás da criatura.
As duas luas no céu acima tinham um tom azul claro, refletindo na criatura pálida que se posicionava acima de sua barriga, o impedindo completamente de se mover, os dois pares de chifres que despontavam de sua cabeça se curvavam para trás e Lissandre sentiu um arrepio de terror descer pela espinha ao finalmente encarar um par de olhos vermelhos carmesim brilhando na escuridão, como duas joias sangrentas.
A sede de sangue era palpável no ar, um terror nunca antes sentido por Lissandre se apossou de seu interior e o ar já escasso em seus pulmões se esvaiu, o pensamento de que iria morrer o fez estremecer e tentar se debater, mas a figura que o imobilizou era muito maior e mais forte que ele.
— Não... — tentou falar, mas aqueles dedos frios pressionaram sua garganta com mais força, o medo que se infiltrava em seu interior se intensificou, seus pulmões ardiam, a visão começava a turvar, suas forças se esvaíam enquanto as vistas escureciam e, num ato de desespero, tentou pensar no que pararia aquela besta. — A... Ainz... art... — balbuciou quando a face já beirava o roxo, os lábios antes vermelhos agora estavam azuis e, pro seu espanto, o aperto daquela besta diminuiu no mesmo instante.
Desesperado, tragou o ar com força, tentando recuar, ganhar alguma distância, mas o demônio puxou seu cabelo, pressionando sua cabeça no chão sem deixá-lo se mover e Lissandre sentiu o coração parar quando aquela coisa se inclinou em sua direção, a face tão próxima da sua que conseguia ver com clareza as escamas que cobriam a lateral do rosto.
Os lábios do demônio eram pretos e, ao separá-los um pouco, Lissandre pôde ver uma fileira de presas afiadas e mortais ali. O ômega se encolheu ao sentir um hálito quente de sangue bater contra a sua pele, tentando virar o rosto enquanto os olhos ardiam, se enchendo de lágrimas.
Oh, que plano estúpido, controlar um demônio? Era impossível!
Mas já era tarde pra se arrepender.
— Quem... é... você? — uma voz rouca, baixa e grave o fez se encolher ainda mais. Não havia flutuações no tom, seu olhar feroz ainda parecia o de uma besta prestes a devorar uma presa e Lissandre quase chorou pela mãe.
Ah, mas ela está morta, pensou, tentando acalmar a respiração caótica e aos poucos, se lembrou do conteúdo do livro. O demônio havia sido torturado por humanos por toda a vida, criando um caráter sádico, cruel e extremamente desconfiado.
Matava qualquer um pelo caminho e ele se sentiu estúpido por não considerar esse tipo de reação, sua mente trabalhando rápido tentando achar um jeito de contornar a situação enquanto o demônio ainda parecia ter algum interesse em saber quem diabos ele era.
Contrariando os pensamentos caóticos do ômega, o demônio sentia que havia algo errado e tentava ser o mais racional possível. Havia vivido vezes o suficiente pra saber exatamente quem encontraria dali pra frente, mas tudo parecia fora do lugar.
Não acordou em uma cabana abandonada levando chuva na cara através de um buraco no teto e ainda havia essa figura patética e fraca murmurando coisas sem sentido ao redor, era muito diferente do que se lembrava.
Não tinha ideia de quem ele era e ainda decidia se o matava de uma vez ou não, sequer sentia alguma flutuação de maana daquele corpo fraco, era um humano comum e talvez, a única coisa que o diferenciava de um civil qualquer era aqueles cabelos prateados, que causavam repulsa ao demônio. Se lembrava de uma figura com cabelos igualmente prateados e mal podia esperar para arrancar as vísceras daquele verme maldito com as próprias garras.
Tocando o peito com a mão livre, sentia a dor ainda pulsante do ferimento, mas não era nada como das outras vezes, uma dor que lhe rasgava a alma e o fazia arfar constantemente, tanto pela dor quanto pelo enorme cansaço que manter seus órgãos dentro do corpo já que os músculos não se regeneravam por ter sido um ferimento de uma arma divina. Gastava tanto maana para se manter vivo que cada movimento era agonizante.
Felizmente, havia evitado o golpe, as asas em suas costas estavam inteiras, não mais dolorosas e quebradas como antes, era até estranho não sentir qualquer dor vindo delas, sempre as quebravam para que ele não fugisse do palácio abandonado, sequer sabia como usá-las realmente.
Um engasgo doloroso o fez voltar a atenção pro humano minúsculo que se debatia debaixo de si, aquelas mãos pequenas tentavam arranhá-lo e fazê-lo soltar, a face vermelha enquanto os olhos, de um azul profundo, tinham um rastro de medo e nojo ali. As orelhas pontiagudas de Ainzart se sacudiram por um momento, a curiosidade transbordando em seu interior.
Seu esforço era inútil, patético, mas admirável, admitiu o demônio. Mesmo sem chances, ele ainda lutava para viver. Talvez não fosse tão patético assim.
Realmente, não se lembrava de ter visto aquela figura antes e, para sua consternação, tinha certeza de que ele havia pronunciado seu nome.
Não o nome dado por seu pai, o rei, Azazel, mas o nome dado por sua mãe, um nome que somente ele mesmo sabia, como um demônio, seu nome era sua vida e nunca havia sequer mencionado aquele nome para outra pessoa e pensar nisso fez sua sede de sangue aumentar, apenas pressionando um pouco mais os dedos e o pescoço daquele humano se quebraria.
Vendo que a hesitação do demônio havia desaparecido e seus dedos voltaram a apertar seu pescoço, Lissandre se desesperou outra vez.
— E-eu que salvei você! — gritou, a voz rouca e falha pela falta de ar e fechou os olhos com força, decidindo apostar tudo nesse plano maluco de salvador que havia forjado e, pro seu espanto ainda maior, o aperto em seu pescoço se desfez outra vez.
Ao abrir um pouco um olho, teve o vislumbre do demônio sobre si, inclinando um pouco a cabeça, como um animal confuso, recuando um pouco.
Havia conseguido parar o demônio?
Continua...
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