09 | Eu Perdi Meu Repolho
Mirabel não pensou que o garoto fosse desmoronar num instante e, em pânico, tentou acalmá-lo, mesmo estando atenta à situação do demônio.
Não era uma mulher de preconceitos, contanto que não lhe fizessem mal, não tentaria dificultar a vida alheia. E ao que parecia, aquele garoto já tinha uma vida bem difícil.
Considerando o que havia dito enquanto subiam a trilha, fazia sentido não irem muito para a cidade, provavelmente seriam caçados e mortos pelos soldados.
Quanto mais pensava nisso, mais compaixão ela sentia: um pobre casal de espécies diferentes que tinham de viver escondidos na montanha, o garoto deveria estar desesperado achando que perderia seu amado ao ponto de correr pra cidade em busca de ajuda.
Em pânico, o garoto tentou se explicar, mas acabou suplicando por ajuda, o que fez Mirabel sentir um conflito ainda maior. Como maga e curandeira sagrada, seu dever era curar e proteger qualquer um que precisasse de ajuda, mas até mesmo um demônio?
Não tinha certeza do que fazer, até ouvir um som rouco e profundo ecoando da criatura inconsciente, quase um gemido de dor, o que a fez levar a mão ao peito, o conflito aos poucos se desfazendo diante das súplicas daquele pobre garoto.
Seu dever era curar e proteger, sem discriminações, mesmo se tratando de um demônio que aparentemente, vivia em harmonia com um humano. Após um suspiro suave, se aproximou do demônio, o analisando com calma.
Muitos dos ferimentos estavam cobertos por algumas ervas medicinais. Era um trabalho apressado e mal feito, mas ela achou bom que houvesse ao menos algum estancamento em todo aquele sangue.
O problema era a ferida enorme no peito da criatura, que cortava desde o ombro até a cintura, onde a carne era corroída por chamas brancas que parecia difícil de apagar.
— Eu tentarei curar esses ferimentos. — disse por fim, os soluços do garoto se detendo por um momento. — Mas preciso que me prometa, irão deixar essa floresta quando ele estiver melhor. Meu dever é com o Império e o Deus da Luz. Uma vez que eu chegue a um posto de comando, terei de reportar a presença de uma criatura demoníaca aqui e uma caça a larga escala será promovida nesta região.
— V-você pode curá-lo? — o garoto não pareceu ouvir todo o resto e com um suspiro resignado, Mirabel acenou, vendo os olhos do garoto se encherem de esperança, toda a sua figura que se submergiu em desespero e dor se revigorou. — Eu posso... como posso ajudar? Eu...
— Traga um pouco de água quente e toalhas limpas. O resto deixa comigo. — e sem olhar outra vez para o garoto, Mirabel apoiou ambas as mãos acima do peito da criatura, a respiração fraca daquela coisa dava indícios de que estava muito perto da morte.
Sussurrando alguns dos feitiços, uma luz suave surgiu das palmas das mãos de Mirabel, alguns círculos com runas mágicas começaram a se formar no ar ao redor, todo o ambiente ficou carregado com maana, canalizado nas runas para aquele feitiço.
O garoto não perdeu tempo, enchendo uma panela com água e alimentando o fogo enquanto buscava uma bacia e toalhas limpas. Ansioso, não parou de se mover de um lado pro outro, parecia pronto para chorar a qualquer momento.
Os minutos se passaram, Mirabel não era uma curandeira experiente e os feitiços que ousou fazer exigiram muito dela, que logo perdeu toda a cor da face e suor frio começou a escorrer pela face.
Sua concentração sendo posta à prova com o garoto vagando de um lado a outro quase a fez errar uma ou outra runa, mas estava decidida a curar aquele demônio (não por ele, mas pelo garoto). Observava apreensiva aquelas chamas que persistiam queimando a carne e piorando os ferimentos do demônio, até que por fim viu as chamas cederem.
Eu posso fazer isso, pensou, aliviada e com a determinação renovada, aumentou a concentração nas runas, imbuindo mais maana nos feitiços, observando as chamas se apagarem e, lentamente, a carne queimada se regenerar e curar aos poucos.
Não havia muito que pudesse fazer quanto ao ferimento da arma sagrada, a carne queimada ainda seguiria queimada e talvez, levasse algum tempo para se curar completamente. Quanto aos outros ferimentos, era fácil lidar com todos eles.
Quando as runas e feitiços deixaram de ser efetivos, ela pediu a água e as toalhas, limpando os ferimentos restantes com cuidado.
— Irei fazer alguns curativos, tenho algumas ervas para estancar qualquer sangramento. Também deixarei algumas poções para reposição de sangue. — explicava com a voz fraca, se sentindo esgotada após quase meia hora de tratamento. — Ele está fora de perigo por enquanto, apenas muito repouso e as poções são recomendadas.
O garoto tremia enquanto usava uma toalha para limpar a sujeira do corpo do demônio e quando ergueu o olhar, a encarou com aflição.
— E-ele vai viver? Fergusinaldo irá... ele não está mais em perigo? — Mirabel sorriu, confirmando e, com outro soluço, o garoto voltou a chorar, agradecendo com a voz embargada, ao ponto de Mirabel se sentir constrangida.
— Não se preocupe, é o meu dever... — dizia ao fazer o curativo no ferimento do peito do demônio. — Há algum lugar onde ele pode repousar? Posso carregá-lo...
— Ele... é muito pesado, apenas deixe aí, do chão ele não passa. — Mirabel franziu o cenho diante da indiferença do garoto, que arregalou um pouco os olhos e tentou remediar. — Q-quer dizer, eu sou apenas... um ômega... e você parece tão... não acho que vamos conseguir erguê-lo e... — gaguejava com a voz cada vez mais baixa.
— Não se preocupe, eu sou bem forte. — ela garantiu, olhando para a única porta daquela cabana. — Ali é o quarto? — o garoto acenou sem hesitar e Mirabel se pôs de pé. — Se me der licença... — se inclinou e sem esforço, ergueu a criatura e o jogou sobre os ombros.
O demônio era tão grande que facilmente chegaria aos dois metros e meio. As asas enormes ainda adornavam suas costas e apesar de magro, tinha uma camada de músculos pelo corpo que adicionam ainda mais peso.
Mas Mirabel, magra e delicada como uma nobre, o carregou como se não pesasse nada, o deixando na única cama do quarto.
O garoto que a seguia com uma expressão cômica de espanto conteve uma careta ao ver a cama afundar com o peso do demônio. Era a única cama, onde ele dormiria de noite?
Seus pensamentos mais mesquinhos foram contidos quando a garota se virou para encará-lo, sua expressão se tornando tensa e aflita outra vez.
— Eu... não sei como agradecer você...
— Não é necessário nenhum tipo de agradecimento. — Mirabel sorriu.
Apesar de ir contra seu juramento e salvar uma criatura das trevas, ela estava feliz. Havia sido útil, salvado uma vida e trago algum alívio para aquele ômega.
Como uma garota ômega, poder ajudar um dos seus era gratificante. Ômegas eram tão raros e únicos que ela sentia que deviam se unir sempre que possível. Suspirou ao lembrar de um certo ômega que parecia não compartilhar dessa ideia, mas afastou qualquer pensamento sobre isso.
— Dê essas poções quando ele despertar. — ela colocou alguns frascos em cima de uma mesa de cabeceira. — Um a cada seis horas. E uma refeição leve... não, algo como massa ou carne vermelha seria melhor para alguém como... ele. Essas... esses... quer dizer, os da espécie dele costumam se recuperar comendo carne crua... e sangue... — ela viu a face do garoto empalidecer, seus lábios se curvando para baixo como se tentasse conter uma careta de nojo ao se forçar a sorrir e acenar. — Talvez seja o melhor, caçar algum animal ou... — ela parou, analisando bem a figura do garoto.
Não sentia qualquer maana vindo dele, parecia tão magro, fraco e desnutrido que duvidou que ele fosse capaz de caçar alguma coisa. Relembrando como ele caia e tropeçava pela trilha, teve certeza de que ele não era capaz de caçar algo, sequer parecia habituado com o ambiente fechado da selva e provavelmente aquele demônio quem devia cuidar e proteger ele ali, ou então o garoto já teria morrido naquele lugar há muito tempo, considerando a quantidade de ervas e plantas venenosas, além dos animais perigosos que haviam por ali.
— Eu posso caçar algo na floresta. Disse que ele saiu pra caçar antes...
— S-sim, ele... deve ter ido muito longe, quando voltou desse jeito... — a voz do garoto embargou outra vez quando os olhos se encheram de lágrimas. — Eu... não sei o que faria sem você...
— Não é nada. — ela sorriu, decidindo que poderia caçar alguma coisa. Ainda tinha tempo pra voltar, uma ou duas horas na floresta não seria problema algum.
No instante em que deixou a cabana, Lissandre ajeitou a postura ao se sentar no sofá, soltando um suspiro completamente exausto.
Correndo e caindo por aí, chorando e implorando, sentia que havia perdido todo o orgulho em um único dia, ainda mais considerando que teve de implorar pela ajuda daquela songa monga detestável.
Usando roupas desconfortáveis e fazendo um teatro para enganar a sonsa da Mirabel, quis rir pela ironia de acabar numa situação lamentável como aquela. Precisando da ajuda justo de sua maior inimiga, ha!
Queria chorar, mas já havia derramado lágrimas demais em todo aquele teatro. Olhando pra sala, bagunçada e suja de sangue negro, quis praguejar outra vez todo aquele maldito plano.
Quem mais teria de limpar aquilo além dele? Não tinha pergaminhos de limpeza, ele havia procurado e não encontrou nenhum, então teria de descobrir como se usava uma vassoura.
A garota estúpida voltaria a qualquer momento, então precisava manter aquela farsa mais um pouco.
Com um suspiro, começou a limpar as manchas de sangue pelo piso.
— Deveria ter trago Amélia comigo... — lamentou em voz alta, com nojo de limpar o pano em um balde de água. Sentia todo o corpo dolorido, além do calor que fazia a pele queimar, queria apenas sentar em um lugar confortável e comer alguns doces.
Quando Mirabel retornou, carregava um enorme cervo com chifres vermelhos nas costas. Seu vestido coberto de sangue não a incomodava e ao encontrar o ômega em transe no meio da sala, segurando um pano sujo de sangue, sentiu ainda mais pena.
Ter de limpar o sangue depois de quase perder o amado deve ser demais para ele, pobrezinho, pensou a enganada.
— Eu limpo isso. Você pode ir se limpar, vi que tem um riacho aqui perto... — seu tom era gentil e Lissandre a encarou confuso. Como ela havia voltado tão rápido?
— Você...
— Não se preocupe, sou muito boa nisso! — garantiu, vendo o garoto pálido espremer os lábios por um momento, antes de acenar.
Sim, ele precisava se recuperar de todo o choque, lidar com sangue não era a melhor maneira. Então deixando a limpeza por conta da garota, Lissandre escapuliu da cabana sem pensar duas vezes, rindo feliz por ter se livrado do trabalho desagradável, mas seu sorriso se desfez ao ver um enorme cadáver estirado no meio do jardim.
O cheiro de sangue e carne fresca fez seu estômago embrulhar e quis voltar para dentro da casa, mas entre aturar um cadáver ou a Mirabel boa samaritana, ele preferia tirar as tripas do bicho com as mãos nuas.
Claro que ele não faria isso, então se apressou até o riacho para tentar se limpar. A pele estava quente, ainda se sentia ofegante, talvez por toda a correria e o estresse de manter aquele personagem, mas ao retornar pra cabana, ela estava limpa e o cadáver no meio do jardim estava sendo limpo pela garota, que sorria radiante com uma faca e umas tripas nas mãos.
Mirabel gostava de ser útil e se sentir assim era gratificante. Sentia que não era um desperdício de poder e fazia valer a pena a fé que os deuses tinham ao darem um poder único e especial para ela.
Lissandre queria achar um jeito de expulsar ela, não queria ver aquela estúpida sorrindo ao redor o dia todo e já começava a entardecer. Para manter o personagem, se acomodou em uma cadeira desconfortável ao lado da cama do demônio inconsciente e esperou.
Estava cansado, isso ajudou a parecer mais triste quando Mirabel se aproximou para informar que havia terminado de cortar a carne do cervo.
Lissandre se pôs de pé em um pulo, ofereceu dinheiro como agradecimento e quando a garota negou, ele não insistiu. Ha! Como se eu fosse dar um centavo para essa miserável! - pensava, mantendo o desdém bem oculto por trás de um sorriso doce.
— Preciso voltar com meus companheiros de viagem. O próximo posto dos soldados é em Layue, cinco dias de viagem daqui. É tempo suficiente dele se recuperar e vocês partirem daqui. — Lissandre apertou as mãos, aflito e temeroso ao acenar. — Espero que vocês vivam bem a partir daqui. — e era o que realmente desejava para aquele casal desafortunado.
Para Lissandre, isso soou com ironia e, contendo a repulsa, sorriu outra vez e agradeceu, se despedindo da garota a tratando como se fosse uma santa.
Havia curado o antagonista, seu teatro havia valido de alguma coisa.
Satisfeito, retornou para dentro da cabana, limpa e organizada, rindo ao perceber que havia feito a protagonista curar um demônio, caçar, limpar um cadáver e ainda limpar sua cabana. Ora, ela era tão boa e pura, merecia ser usada por ser tão estúpida.
Riu ainda mais feliz ao concluir que no final das contas, tinha o vilão sob sua tutela.
A criatura mais forte desse estúpido livro, que facilmente derrubaria um império e que teria total devoção á ele!
Sentia que havia feito muito trabalho naquele dia, correndo por aí, chorando e agindo lamentável, facilmente poderia considerar isso com aquela maldita horta que ficava revirando de vez em quando para afastar alguns bichinhos nojentos. O vilão era um repolho que ele custou muito a colher, afastando os bichinhos desagradáveis (Mirabel) e curando-o com a ajuda de um pesticida, agora o tinha novinho em folha e provavelmente, muito disposto a protegê-lo com devoção!
Radiante de felicidade, se aproximou da porta do quarto para verificar seu repolho recém colhido, apenas para seu sorriso desaparecer ao não ver qualquer sinal do demônio dentro do quarto.
Continua...
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