08 | O Resgate do Vilão
Quando o céu começou a clarear, Lissandre considerou que já devia ter um vilão capenga na beira do lago e sem conseguir aguentar a ansiedade, saltou pra fora da cama, se arrumou o melhor que pôde e, pegando sua cesta, saiu da cabana, rumando pela trilha.
Não tinha a melhor resistência, ao chegar na clareira já estava exausto, mas não se deu ao luxo de descansar ao avistar uma figura entre as pedras do lago.
Coberta com um tecido puído e rasgado, a criatura estava imóvel, meio submerso na água. Lissandre sentiu as pernas perdendo as forças ao reconhecer aquela figura horrível: Ainzart, o antagonista principal, finalmente havia surgido!
Se aproximou, temeroso de que ele estivesse acordado e pudesse atacá-lo. Podia ver vagamente sua figura repleta de feridas e cortes profundos que sangravam um líquido negro asqueroso. De bruços, um par de enormes asas negras despontavam de suas omoplatas, pareciam torcidas e quebradas e de sua cabeça, dois enormes chifres negros despontavam de uma cabeleira negra longa, imunda e embolada.
Lissandre nem mesmo considerou tocá-lo, tirando um pergaminho de levitação de seu anel, o apoiou na testa daquele tipo grande e imbuiu maana nele e após as runas no pergaminho brilharem suavemente, a luz se apagou e nada ocorreu.
Tentou outros dois pergaminhos, mas aparentemente, aquele demônio ultrapassava algum tipo de limite de peso e reclamando dos pergaminhos vagabundos que havia pago uma fortuna, ativou os itens de fortalecimento corporal em si mesmo, antes de, com muita repulsa, tentar virar a criatura. Seu cheiro era terrível, sangue e suor, eca, Lissandre podia sentir algo subir pelo estômago enquanto o virava.
Cada movimento exigia um grande esforço da parte dele e até começava a se arrepender de todo aquele plano. Era muito sacrifício para viver tranquilamente e enquanto arrastava o príncipe exilado rumo á cabana, se amaldiçoava por não ter construído uma cabana na clareira do lago, assim não teria de arrastar um tipo de tantos metros pesando como chumbo por uma trilha íngreme de lama.
Vermelho, suado e exausto pelo esforço, apenas conseguiu arrastar o antagonista até a entrada da cabana, o deixando estirado no piso da sala enquanto se jogava no chão, a respiração curta e acelerada.
Quase cochilou enquanto se recuperava e teve de se obrigar a levantar e verificar a real situação do antagonista, fazendo careta ao ver todos os ferimentos em sua pele pálida. Um corte profundo no peito ainda tinha chamas brancas o corroendo, talvez fosse a perfuração que o corroeu até o último momento na história?
Não se sabia como ele conseguiu aquele ferimento, o autor nem se deu ao trabalho de explicar, mas talvez aquela ferida tenha sido a razão de sua derrota no final? Parecia um pouco rasa considerando o quão terrível o autor descrevia aquele ferimento, algo que dava até para ver alguns de seus órgãos e o coração batendo por dentro, enquanto o ferimento queimava e ele mantinha os próprios órgãos dentro do corpo com magia.
Lissandre achava absurdo alguém com tantos poderes perder para uma garota que nunca empunhou uma espada antes, é claro que ele devia estar afetado pelo ferimento que, ao parecer, tinha alguma magia sagrada nas chamas e felizmente, não dava pra ver órgão nenhum pulsando dentro ou Lissandre definitivamente teria abandonado todo o plano, ou quem sabe, desmaiaria de pavor e continuaria desmaiando cada vez que o visse.
Tentou todos os tipos de pergaminhos e poções de cura que havia conseguido comprar, mas nem mesmo fizeram efeito nas chamas. Até mesmo tentou apagar as chamas na ferida com água e sem efeito, se sentou na varanda, encarando o vazio, tentando encontrar alguma solução.
Já havia gastado muitos pergaminhos mágicos caríssimos, além de ter usado a própria força física carregando aquela figura gigante até ali. Todo o seu plano havia se concentrado em capturar o vilão antes da protagonista fazer sua estreia e quem sabe, se passar pelo seu "salvador", conseguindo sua lealdade.
Não conseguia nem apagar um foguinho de um corte, como se supõe que o antagonista sobreviva se, em primeiro lugar, era resgatado pela protagonista?
Por um longo momento, contemplou as opções a seguir: poderia ir embora e partir para um plano B (que ainda estava sendo formulado); poderia ficar na cabana escondido por algum tempo antes de deixar o continente em segurança; poderia ir até o território do duque, onde com certeza estaria mais seguro e viver pelo resto da vida ao lado do avô, que ele detestava e com certeza o obrigaria a casar com algum outro nobre decadente, velho, gordo e feio (não, nem pensar. Descartou esse plano no instante em que o formulou).
Era isso, a melhor opção (e a mais segura) era se agarrar nas coxas do antagonista para se manter seguro e longe de todos que o incomodavam. Sabia o que aconteceria e como evitar a maioria das desgraças do vilão, como ele poderia perder para uma garota com muita determinação e uma espada sagrada?
Não podia curar o antagonista por conta própria, mas Mirabel sim.
Com um novo plano em mente, ele se levantou, carregando o cesto com verduras e outras plantas que achou pela floresta, fez o caminho até a trilha e se virou na direção da cabana, arremessando a cesta pro lado.
Também molhou e estendeu algumas roupas em um varal de bambu, lutou um pouco pra acender o fogão à lenha e colocou uma panela com alguns grãos esquisitos (achava que era feijão, que comprou de um mercador na cidade e disse que bastava colocar na água pra ferver e ficaria pronto). Deixaria aquilo queimar, estava até se divertindo enquanto preparava todo o cenário.
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— Devagar, Mira! Você não precisa erguer essas coisas... — Helena, uma jovem de cabelos longos e vermelhos disse ao tomar uma caixa das mãos da garota.
Mirabel não estava satisfeita. Não havia empregados junto do grupo, todos trabalhavam igualmente na organização do acampamento, exceto ela que foi forçada pelos amigos a ficar esperando.
Ela era uma jovem bastante saudável, só por um envenenamento dias atrás, todos agiam como se fosse feita de vidro.
Não pretendiam fazer paradas tão curtas na viagem até Anaê, onde havia relatos de uma possível epidemia surgindo, mas com a confusão sobre seu envenenamento que terminou com duas empregadas executadas, eles decidiram que podiam sim, parar a cada poucos quilômetros para não sobrecarregarem a garota, o que a deixava frustrada. Estava bem e a situação de Anaê era alarmante!
Pessoas estavam morrendo e eles queriam parar para acampar duas vezes ao dia! Queria muito enfiar alguma noção na mente daqueles alfas cabeças duras, mas ela não podia ir contra as ordens do príncipe herdeiro e contendo a frustração, podia apenas ranger os dentes e orar ao Deus da Luz para que protegesse o povo de Anaê até que chegassem.
Aborrecida, cruzou os braços e observou como sua equipe de proteção agia.
Helena, Devon e Damian eram sua equipe de escolta, que se voluntariaram sem pensar duas vezes para segui-los e protegê-la enquanto o príncipe Mason a acompanhava para auxiliar nas pesquisas.
Agora organizavam tudo para o almoço, à beira da estrada e como eram um bando de nobres, Helena era a única aventureira ali com o mínimo de noção de sobrevivência e trabalho braçal, ela guiava os outros três no que fazer. Aborrecida, Mirabel decidiu vagar pela floresta, talvez encontrasse alguma erva medicinal útil?
— Aonde vai, Mira? — Devon, um jovem com cabelos azuis claros e olhos azuis cobalto a seguiu de perto quando a viu se afastar do grupo.
— Vou verificar se há alguma planta aqui perto. Não é perigoso e...
— Irei com você.
— Não precisa, não irei muito longe.
— Pode ser perigoso.
Mirabel suspirou, exasperada. Não gostava de ser tratada como uma dama indefesa, era muito boa em magia e possuía uma força física acima da média. Precisou convencer Devon para conseguir escapulir pela floresta e inicialmente, não tinha planos de ir tão longe, mas estava aborrecida com tanta proteção e cuidado desnecessários, acabou avançando mais do que queria e não verificou uma única possível erva pelo caminho.
Estava considerando retornar ao perceber que poderia acabar se perdendo pela trilha quando ouviu passos apressados, acompanhados de uma respiração ofegante.
Em alerta, avançou mais alguns passos antes de ter o vislumbre de um garoto tropeçar e cair de cara pela trilha.
— Você está bem? Se machucou? — se aproximou, estendendo as mãos para ajudá-lo a se levantar, mas antes que o fizesse, ele já havia se erguido usando uma árvore como apoio.
— E-eu estou! Eu... — olhava ao redor, desnorteado, seus olhos pararam na garota por um momento, se arregalando um pouco antes de segurá-la pelos braços. — Um médico! Eu preciso de um, você...
— Espera, um minuto! O que houve? Está ferido? — seus olhos mediram o garoto de cima a baixo. Parecia muito jovem, talvez com quatorze ou quinze anos.
Os olhos redondos em um tom de amêndoa, a mesma cor dos cabelos curtos, um corte mal feito, mas que deixava seu rosto adorável, além das muitas sardas que cobriam sua pele. Usava um macacão largo e camisa bege clara, além de enormes botas que mal lhe cabiam, talvez por isso tenha rolado pela trilha.
Estava afobado e ofegante enquanto negava, como se percebendo que a garota poderia não ser de muita ajuda, ele tentou correr pela trilha outra vez.
— Espere, por favor! Eu sou uma aprendiz de sacerdote, posso ser de ajuda! — e isso fez o garoto parar, a olhando em dúvida. — Confie em mim. Isso deve servir. — ela tirou um emblema do bolso, uma peça fina de metal com um pequeno selo, uma ave segurando no bico uma folha.
Era um selo usado por aprendizes de magos de cura formados em academias, e isso foi o suficiente para o garoto acenar.
— E-eu não preciso de ajuda, quem precisa é... mas não sei se você seria de ajuda, uma aprendiz, quer dizer... — falava rápido, seus olhos se enchendo de lágrimas enquanto a voz embargava. Todo o seu corpo tremia, talvez pelo nervosismo e ao observá-lo mais de perto, Mirabel percebeu manchas de algo negro sujando suas mãos, rosto e roupas.
— Se acalme, por favor. — tentou passar confiança pelo tom e pelo olhar, segurando a mão do garoto para acalmá-lo. — Eu sou Mirabel, aprendiz de Leonhart Diagoni, do Sagrado Templo do Deus da Luz, Lumine. Estou em uma missão para testar a cura de uma praga, ao norte de...
— Anaê, eu sei. E-eu ouvi sobre de alguns mercadores antes... eu... me desculpe pela grosseria, vossa graça... — se inclinou, ansioso, sua voz se quebrando por um momento. — Eu...
— Antes de qualquer coisa, é melhor irmos até o ferido. Queria um médico por isso, não é? — ele acenou, o olhar aflito implorando por ajuda. — Então me mostre o caminho. Farei o que puder e se for muito grave, posso pedir ajuda de alguns companheiros para descermos até um consultório médico. — o garoto a encarou por um instante antes de, decidido, subir outra vez a trilha, por mais exausto e ofegante que estivesse, tentou explicar o que aconteceu.
— Meu esposo saiu pra caçar há alguns dias, não descemos a montanha com frequência por... P-por várias razões, apenas... ele é forte, então não me preocupo, mas hoje ele voltou muito ferido, eu... E-eu não-AH! — gritou ao escorregar em algumas pedras, apenas não caindo pois Mirabel vinha logo atrás e o segurou a tempo.
Estava surpresa com toda aquela história, ele parecia muito jovem para casar, mas depois de considerar que os plebeus costumavam ter mais casamentos infantis do que a nobreza, ela deixou de lado suas dúvidas e se concentrou em seguir o garoto, que estava em péssima forma, diga-se de passagem.
Ele parecia que ia desmaiar a qualquer momento, suando e arfando, estava completamente vermelho quando finalmente alcançaram o fim da trilha.
A primeira visão de Mirabel foi uma pequena e aconchegante cabana que surgia no meio de uma clareira, rodeada por árvores. A trilha seguia com cascalhos até a entrada, uma pequena horta ao lado da casa tinha diversas verduras plantadas, prontas para colher.
Um rastro de fumaça saía pela janela da cabana e com um grito estrangulado, o garoto disparou para dentro do lugar gritando algo sobre o almoço. Mirabel que o seguia de perto entrou a tempo de vê-lo derramar uma enorme panela fervente no meio da cozinha, grãos se espalhando pelo assoalho, bem próximos de uma figura estendida no chão.
Pelo rastro de sangue que ia desde a porta até o meio da sala, parecia que o garoto havia arrastado aquela criatura por vários metros, quem sabe isso explicava sua exaustão.
Mirabel não estava chocada com nada disso e sim, com o fato de ter um demônio vivendo tão próximo da capital.
— Isso... — apontou desnorteada pra criatura inconsciente e o garoto, que tentava limpar a bagunça que havia feito, gritou ao escorregar no caldo e quase cair. — É... seu esposo é um demônio...? — perguntou meio incerta e o garoto, que lutava com uma vassoura na mão, a encarou como se só "lembrasse desse detalhe" quando ela o mencionou.
Ora, um curandeiro do império tinha um poder sagrado concedido pelo próprio Deus da Luz. Por que o desperdiçaria curando uma criatura das trevas?
E como se só pensasse nisso, ele caiu sem forças no chão, a face cada vez mais pálida e, sem controle, começou a chorar.
Continua...
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