Como Deve Ser
Não tenho vergonha alguma de admitir que sou nerd. Dos fortes. Não vejo isso como um insulto nem nada do tipo. Quando me zoam dizendo que vou passar a sexta-feira trancado em casa assistindo Netflix, eu até rezo pra que isso aconteça – não que eu também seja religioso, mas é por força do hábito, acho. E não que eu queira fazer outra coisa numa sexta-feira depois de acabar a escola: Netflix, pipoca, edredom e um chocolate quente. Não preciso de coisa melhor.
Daí, quando o dia amanhece, eu largo um pouco os seriados e vou pro lado que eu mais gosto das nerdices: a leitura. Começo um livro novo todo sábado, sem exceção. Sempre tento me policiar para demorar no máximo uma semana entre uma leitura e outra; às vezes termino antes, mas vou preenchendo a semana com os seriados (que nunca acabam, vamos combinar) e espero o sábado chegar pra procurar um título novo na minha estante.
Eu reservo toda a minha mesada pra alimentar "meus vícios", como meu pai chama. Normalmente sempre sobra alguns trocados no fim do mês porque guardo para eventuais lançamentos inesperados e tal... Porque, apesar de ser nerd, eu sou o cara mais desligado das coisas que existe! Fico sabendo dos lançamentos ou de algum evento sempre em cima da hora, sempre, mesmo que tal evento seja de extremo interesse.
Como, por exemplo, uma palestra que meu escritor favorito daria numa escola da minha cidade.
A palestra seria na quinta-feira e eu só fiquei sabendo na segunda de tarde: meu nível de lerdeza. E só descobri porque estava fuçando no Facebook do meu pai (já que ele não me deixa deslogar do dele para logar no meu no seu laptop). Na timeline dele, vi uma postagem de uma das suas alunas falando do evento. E eu surtei.
Meu pai é desses professores descoladões que segue todos os alunos, que aceita todos os pedidos de amizade e até clica num "curtir" de vez em quando. Meio que ignorava tudo isso até aquela segunda-feira, porque se não fosse a tal menina, eu jamais saberia da palestra.
– Por que você não me contou que o Victor vai dar uma palestra na sua escola?!! – berrei.
Ele estava preparando nosso jantar e eu deveria estar escolhendo um filme pra ele indicar para a namorada nova ("porque ela gosta dessas coisinhas populares que nem você, filho"), mas a aba aberta do Facebook obviamente me chamava mais atenção.
– Quem? – ele ajeitou os óculos sobre o nariz e apertou as sobrancelhas pra mim, confuso e um pouco irritado pelo meu tom de voz.
– O autor, pai! – ele continuou confuso, então fiz questão de ir até meu quarto, arrancar um exemplar do livro dele da estante e trazer pra mostrar: – Esse aqui!! Você sabe qual é, eu sempre falo dele pra você.
Ele levantou uma das sobrancelhas e, na defensiva, mandou:
– Ah, não sabia que você gostava tanto assim ...
– Pai, como assim? Todo mundo gosta!
Victor Costa era o autor mais badalado da atualidade. Estava sempre no topo da lista dos best-sellers desde, sei lá, o meu nascimento! Ele escreve pra gente da minha idade faz uns anos e é simplesmente o melhor em tudo o que faz (sério).
É claro que meu pai sabia que eu gostava dele porque eu tinha todos os seus livros e sempre ia nos lançamentos, mas chegar perto dele era quase impossível. Nunca consegui uma senha pra essas sessões porque acabavam num piscar de olhos – e nunca conheci ninguém pra furar fila, então...
– Bem, ele vai na quinta fazer uma palestra... – meu pai disse e eu revirei os olhos, como se já não soubesse dessa informações inicial. Mas então acrescentou: – Se você quiser, pode ir também.
Espera.
Ele tava falando sério?
– É sério?
– Ué, você sabe que pode entrar e sair da escola a hora que quiser. Não é como se fossem te barrar. Você é meu filho, todo mundo sabe disso...
Pisquei, incrédulo.
– Pai, não brinca comigo. Eu vou poder entrar no auditório e assistir a palestra do Victor?! – ele resmungou um sim, já virando-se de costas pra mim na cozinha. – Vou poder chegar perto dele?! Pedir um autógrafo? Conversar? Apertar a mão...?
– Yago, não abuse. – ele me cortou, suspirando. – Te dou a mão e você quer o corpo inteiro?
– Não custa tentar, né...
Ele riu e reiterou que eu poderia ir à escola na quinta sim. Fiquei mais meia hora confirmando se era verdade, comi rindo de orelha a orelha e depois fui dormir gritando por dentro.
Acho que nunca tive tanta sorte na vida!
***
A palestra estava marcada para as dez da manhã e é claro que eu faltei à minha aula para ir. Arrumei uma mochila cheia dos exemplares dos livros do Victor, algumas barrinhas de cereal e cheguei na escola às oito... e o auditório já estava lotado. Acredito que os professores não tenham conseguido dar aula porque a euforia dos adolescentes era insuportável até pra mim que sou um adolescente.
O auditório era enorme, devia caber umas mil pessoas ali dentro! Fiquei espiando da porta lá no fundo, mas de jeito nenhum eu ia conseguir enxergar qualquer coisa no palco daquela distância. Tive duas horas para tentar achar um lugar menos desconfortável, mas os professores estavam impedindo que o pessoal ficasse de pé ou se sentasse no chão. E um desses professores era meu pai.
– Não fique aqui, não vão deixar ninguém chegar perto do palco. – foi o que ele me disse quando esperneei pra que me deixasse sentar no chão, na escada, em qualquer lugar mais próximo.
– Mas eu não consigo ver nada lá de trás! Se soubesse que não teria aula hoje, teria vindo com você mais cedo ou acampado aqui desde ontem à noite!!
Ele riu cinicamente e me mandou sair do caminho antes que o próprio diretor viesse me expulsar – afinal, mesmo que todos do corpo docente soubessem quem eu era, eu não estudava ali efetivamente. E não deveria nem estar ali, já que também estava "matando aula" (com o consentimento do meu pai, então nem contava como matar aula, né?).
O palco do auditório estava encoberto por uma cortina de veludo, mas, numa rápida olhada por debaixo, vi que estavam arrumando o local e que tinha uma portinha de onde entrava e saía gente toda hora. É claro que ela dava para o corredor. É claro que eu saí correndo pra tentar descobrir exatamente onde.
É claro que fiquei mais uns vinte minutos ocupado em me esconder dos outros professores e em achar a porta e, quando estava quase desistindo, escutei uma gritaria imensa e aplausos e baderna... E quase comecei a chorar porque ia perder a única oportunidade de ver meu escritor favorito ao vivo.
Eu ia voltar correndo para os fundos mesmo, já me dando por vencido, quando uma portinha se abriu do meu lado direito e uma moça de óculos saiu falando ao celular. Ela parecia tão ocupada que nem percebeu ter deixado a porta aberta. Me esgueirei lá pra dentro e, de boca aberta, fui dando passo ante passo, me agachando na penumbra como se fosse um ladrãozinho ou coisa assim: eu estava exatamente na lateral do palco do auditório.
Quando consegui enxerga-lo direito, Victor Costa estava sentado no centro do tablado de madeira, com um microfone na mão, saudando a plateia. Havia uma mesinha simples que servia de apoio para a pilha de livros que ele havia escrito, o mais novo deles de pé e aberto sobre os outros. O primeiro tinha saído há quase dez anos e fazia parte de uma trilogia. O último saíra há menos de dois meses e era a melhor história que eu já tinha lido na minha vida! Ele se superara e tinha se tornado meu livro de cabeceira facilmente.
Eu costumava lê-lo todos os dias antes de dormir, pelo menos um parágrafo, compartilhando em alguma rede social uma citação ou coisa assim: esse era o meu nível de adoração. Então quase não acreditei que estava a alguns passos de distância do cara que me inspirava todos os dias a continuar vivo!
Fui me aproximando sem fazer barulho e percebi, com uma certa dificuldade em tirar os olhos do Victor, que havia alguém fazendo a mesma coisa que eu. Se esgueirando clandestinamente, eu quero dizer. Um garoto baixinho, de tênis desamarrado e ar suspeito se abaixava na lateral do auditório à minha frente.
Eu ia deixa-lo apreciar o momento, claro, não fosse o grito que dei quando senti uma mão pesada no meu ombro.
Sério.
Eu gritei tão alto que o Victor até se virou de lado pra ver o que estava acontecendo. Quis morrer de vergonha, mas engoli seco e encarei a pessoa que tinha me emboscado.
– Yago? – o professor de Literatura chamado Eugênio (é claro que eu sabia o nome do professor de literatura do colégio do meu pai) enrugou a testa e eu soltei um riso amarelo. – O que está fazendo aqui?
Eu não sabia exatamente que resposta formular, porque não sabia se ele estava perguntando o que eu estava fazendo ali ao lado do palco, ou ali na escola como um todo, numa manhã de quinta-feira, quando eu deveria claramente não estar em nenhum desses lugares.
Mas daí Eugênio focalizou o garoto baixinho atrás de mim e a atenção foi totalmente desviada para ele.
Coitado.
– Jonathan? É você?! – vi o menino se encolher à menção do seu nome e senti ainda mais dó. – O que está fazendo aí?! Sabe que isso não é permitido...
Eugênio fez um pequeno discurso que, obviamente, nenhum de nós dois deu a mínima porque o Victor no palco se levantou, pegou seu livro novo, e começou a falar sobre a história de um modo engraçadinho, arrancando risadas e gritos da plateia. Eu precisava focar todo o meu ser naquelas palavras pra poder gravá-las na memória!
O tal do Jonathan também ignorou o professor e se virou deliberadamente para onde o escritor estava. Eu fiz o mesmo, me pendurando na lateral do palco sem, de fato, subir nele. Nós dois nos acotovelamos e ficamos assim, meio abobados, olhando o cara falar e falar e fazer piada que, tenho certeza, nem eram tão engraçadas assim. Mas era ele falando, qualquer coisa me arrancava um riso idiota.
Demorei a perceber que o Eugênio tinha nos deixado ficar, porém, e só notei quando meu próprio pai veio me dar a bronca pessoalmente.
– Eu disse pra você não ficar aqui! Quer arranjar mais confusão, Yago?! – ele suspirou, a voz abaixando o tom. Meu pai não consegue dar bronca porque não gosta de falar alto. Até hoje fico imaginando como são as aulas dele, como ele chama a atenção de alguém, se é que sequer chama, né... – Se o diretor descobre que você está aqui, que eu te trouxe pra cá...
Revirei os olhos.
– Ele não vai descobrir. Eu juro que fico quietinho. Não vou abrir a boca.
– Você acha que ninguém escutou o grito que você deu antes, né? – ele disse, cético, cruzando os braços.
Ops.
– Não vou abrir a boca de novo, prometo. – cruzei os dedos na frente do rosto feito uma criança e meu pai passou as mãos sobre os cabelos, parecendo só então notar o outro garoto junto a mim.
– Você também, Jonathan?!
O menino só levantou os ombros e meu pai suspirou ainda mais alto, mas deixou que nós ficássemos na lateral do palco, saindo com um aviso de que se ouvisse minha voz ia me mandar pra casa no mesmo instante. E que o tal do Jonathan era pra ficar igualmente invisível ou as consequências pra ele seriam piores.
Voltei à posição com os cotovelos no palco sem dar muita bola.
– O professor Antônio é seu pai?
Ouvi o menino do meu lado perguntar, meio receoso, mas sem tirar os olhos do palco.
– É. Por quê? – devolvi, analisando-o de soslaio. Ele usava o cabelo todo pra frente, como que para esconder o rosto, mas o tamanho dos fios não estava tão grande a ponto de passar sequer da metade da testa. E ele tinha as bochechas grandes, coradas, sabe? Meio... rechonchudas, eu posso dizer. Aliás, ele todo era meio... fofinho (foi a primeira palavra que veio na minha cabeça, sem brincadeira). – Mas relaxa que não acho que ele vá te causar problema ou coisa assim...
O menino se virou pra mim, sorrindo meio de lado, as bochechas inflando.
– Não é isso. Eu sei que não vai, ele é legal. Por isso perguntei. – ele se remexeu nos pés pra ficar mais esticado. Era relativamente incômodo pra mim ficar com os cotovelos na altura do palco, devia ser pior pra ele que era uns quase dez centímetros mais baixo. – Deve ser legal ter um pai como ele.
– Ou como o Eugênio. – soltei sem querer.
Meu pai e o Eugênio, o professor de Literatura, eram amigos de longa data. Foi por causa dele que conseguiu o emprego naquela escola e também conheceu a atual namorada, que era amiga da irmã mais nova do Eugênio. Ou seja, todo mundo estava meio que interligado e eu o conhecia há bastante tempo por frequentar a nossa casa mesmo.
Meu pai tem poucos amigos. Os únicos que tem ele leva a sério e, sei lá, eu acho isso muito legal.
Jonathan levantou as sobrancelhas.
– Você estuda aqui, por acaso? – ele pigarreou pra não parecer rude, eu acho. – Porque, hm, nunca te vi. Mas você conhece os professores...
– Ah, não. Estudo em outra escola, do outro lado da cidade, mas conheço porque meu pai trabalha aqui há tempos. E eu costumava vir muito com ele ao trabalho quando mais novo...
Sem querer, contei um bocado de coisas aleatórias sobre mim enquanto escutávamos o Victor palestrar sobre como ele escrevera seus livros baseados em eventos cotidianos de quando ele próprio era adolescente, e que por isso eles eram tão vívidos pra nós. Victor devia ter lá seus trinta, quase quarenta anos já, mas tinha um espírito muito jovem, se é que isso faz sentido (pra mim faz).
O menino Jonathan também falou sobre si, sempre meio encolhido e encabulado, mas me contou que era aluno do segundo ano (assim como eu) e que adorava ler (é claro). Disse que Eugênio era seu professor favorito (obviamente) e que meu pai figurava a lista do top 5 também porque ele lecionava História, sua terceira matéria favorita.
– Depois de português. – ele contou. E depois ficou um tempo calado... – Nossa, parece que só sei falar de escola. Que papo de nerd...
Ele riu, sem graça. Eu encolhi os ombros.
– Ué, tem algum problema ser nerd? Quero dizer, falar de colégio não te faz nerd, nem gostar de literatura ou português... – eu rebati, já pronto pra jogar um monte de argumento pra cima do menino sem nem perceber que ele estava se desculpando já.
– Não, não foi isso que quis dizer.... – Jonathan suspirou e se encolheu mais na sombra do palco. – É porque eu sou sempre o nerd esquisito, já estou acostumado com isso... Só não queria, sei lá, te assustar.
– Me assustar por ser nerd?! – eu ri. – É mais fácil a gente competir pra ver quem é mais nerd, isso sim.
E eu achei aquilo ridículo de se dizer, porque, afinal de contas, não era uma competição e eu não acho que existam níveis ou coisa assim. Eu só não gostava que me depreciassem – e automaticamente achava que estavam fazendo isso sempre que tocavam na ideia de que ser nerd era ser inferior ou esquisito.
Jonathan riu do meu comentário e se empertigou na ponta dos pés pra observar o Victor falar mais sobre os livros dele e responder algumas perguntas da plateia. Trocamos mais algumas palavras sobre nós, mas voltamos a prestar atenção na verdadeira estrela do dia ali, no meio do palco.
Os livros do Victor em sua maioria falam de "crises" que a gente acaba se identificando porque é quase sempre algo muito próximo da nossa realidade. O primeiro livro dele contava a história de um garoto numa escola nova, tentando sobreviver ao mundo de panelinhas que a gente cria sem querer, sabe? Foi o primeiro que eu li e me identifiquei porque, na época, esse garoto era eu: com a morte da minha mãe, meu pai resolveu mudar de cidade pra começar do zero e me carregou junto, arranjando o emprego ali por causa do Eugênio, que foi um baita incentivo pra ele se recuperar...
Mas eu superei e a história do garoto me pareceu ter ficado pra trás. Não era o momento mais. Então veio o novo lançamento e boom. Era eu totalmente e de novo.
O último livro do Victor falava de um menino que era apaixonado por coisas relacionadas a vampiros e RPG, que ficava em casa nas sextas-feiras à noite assistindo seriados porque ninguém o chamava para sair. Que não ligava muito pra essa parte, porque ele gostava de ficar em casa.
Não sei como, mas o Victor havia se inspirado em mim, sem sombra de dúvida. Já disse que era o meu favorito?
***
A palestra não deve ter durado mais que uma hora, passando num piscar de olhos. Quando o Victor começou a se despedir, a plateia inteira choramingou. Eu quase gritei pedindo pra ele ficar, mas Jonathan me alertou que meu pai estava de olho em mim da parte dianteira do palco.
Victor se despediu, ajuntou suas coisas e as cortinas se fecharam com os aplausos do público.
Mas pra gente ainda não tinha acabado porque ele desceu as escadinhas do nosso lado! Fiquei meio paralisado com essa informação e quase nem consegui dizer nada, mas o Jonathan se recuperou mais rápido e me cutucou, já meio que gritando afobado, pedindo um autógrafo. Nem sei de onde ele surgiu com um livro na mão, mas lá estava ele, impedindo que o escritor deixasse o lugar sem antes nos atender.
Catei minha mochila, tirei um dos livros na velocidade da luz e entreguei pro Victor, que cambaleou na escada depois do nosso ataque. Ele foi super cortês, porém, assinou e fez dedicatória com nossos nomes. Fiquei olhando pra ele meio sem ar, abobalhado, nem agradeci direito e ele já estava saindo e os professores estavam chegando perto e nos pedindo para afastar e... foi isso. A mulher que eu vi no celular anteriormente rebocou o Victor de perto da gente e fomos impedidos de segui-lo, porque o Jonathan bem que estava disposto.
Eu só voltei à consciência depois que todas as luzes do auditório se acenderam e a algazarra recomeçou, agora pro pessoal sair e voltar para suas respectivas aulas. Meu pai apareceu onde eu estava e disse que tinha que dar aula e que eu deveria ir embora.
– Não quero que mais ninguém te veja perambulando por aqui hoje, entendeu? – ele me lançou um olhar incisivo e depois saiu com o resto dos professores.
Olhei ao meu redor e o Jonathan também tinha desaparecido, nem tive tempo de me despedir ou coisa assim. Respirei fundo e me acalmei, era hora de pegar o ônibus de volta pra casa com meu livro favorito autografado.... Só que quando olhei pro exemplar que eu estava segurando, o que o Victor tinha assinado, percebi que não era aquele do garoto-vampiro-RPG, sabe? Era o primeiro livro dele, o mais antigo e cuja cópia era a mais desgastada que eu tinha. As folhas estavam despencando e eu tinha até pensado em doá-lo e comprar um novo...
Fiquei encarando o exemplar, com raiva de mim mesmo e chateado por não ter prestado atenção nesse detalhe.
***
Na quinta-feira à noite, quando meu pai voltou do trabalho levando a namorada à tiracolo, eu permaneci trancafiado no meu quarto, melodramático. Contei o que havia acontecido e ele me pediu encarecidamente que olhasse todo o lado bom da situação: eu tinha visto o Victor de perto e ainda tinha conseguido o maldito autógrafo que tanto queria. Meu pai também me lembrou que ambas as coisas não deveriam nem ter acontecido, já que eu burlei todas as regras.
– Você teve sorte que o diretor não te notou, nem você nem ao Jonathan, senão eu estaria muito bravo agora. – ele disse, mas na parte do bravo eu tive que me segurar pra não soltar um risinho.
Mesmo assim eu não consegui ficar satisfeito. Poxa, tudo bem, meu escritor favorito tinha autografado meu livro, mas é que o último era especial, sabe? Aqueles livros que a gente lê e sabe que vai guardar a história no coração pro resto da vida? Não era aquele com o autógrafo, todo despedaçado, era o outro. E só de saber que foi culpa minha esse erro todo me deixava extremamente chateado.
A namorada do meu pai entendia um pouco, mas fez nas palavras dele só um complemento.
– Você vai ter outras oportunidades de encontra-lo, tenho certeza. – seu nome era Carolina, mas todo mundo, obviamente, a chamava de Carol.
Carol era legal. Eu não tinha nada contra o relacionamento dos dois, é claro, mas todo mundo parecia olhar meio torto pra gente quando saíamos no shopping ou algo assim, e perguntavam pro meu pai se nós dois éramos irmãos e ele, obviamente, respondia que não. Só porque Carol era bem mais nova que meu pai, uns dez anos, eu acho. E aparentava ainda mais nova: franjinha no cabelo, ela até usava tênis all-star de cano longo!
Enfim. Mesmo com suas palavras, continuei no meu drama particular, porém, e até fui para a escola na sexta-feira envolto no manto de um velório imaginário. Meus colegas mais próximos perceberam, mas, como sempre, se mantiveram afastados. Era isso que acontecia, sabe, porque não queriam participar muito do que eles chamavam de "tempestade no copo d'água do Yago". Tudo pra eles era "vibe ruim", "pra baixo demais" e nunca levavam muita coisa a sério.
Talvez seja por isso que eu não tenho muitos amigos – e a maioria eu nem considero assim, só colegas mesmo. Não tenho ninguém pra chamar de "melhor amigo" ou algo do tipo porque ninguém jamais quis ficar perto de mim quando entro nessa "vibe ruim". Eles só querem saber da gente quando tá todo mundo rindo e feliz e saltitante.
Isso me irrita, mas nunca me incomodei de verdade com o fato de não ter um "melhor amigo" ou "amiga" porque sempre tive a companhia dos personagens fictícios, que pareciam mil vezes mais legais que as pessoas de verdade...
Só que pensar nos personagens fictícios estava me deixando bem pior, então nada ajudava muito.
Ao sair da escola, porém, meu pai me pediu para ir à escola dele ajuda-lo a levar algumas maletas de trabalhos para corrigir. Já que não tínhamos carro, andar de ônibus com aquele tanto de papel só poderia ser tarefa para duas pessoas, eu bem sabia. Normalmente era nessas épocas do ano que eu ia sempre ao colégio dele, sabe, pegar papel, carregar prova, livros, trabalhos... Eu só não tinha me dado conta de que já estávamos nessas épocas do ano.
Voltar lá depois da palestra do Victor me deixou primeiro chateado, em seguida com raiva. Estava fora de cogitação dizer não ao professor Antônio, então fechei a cara e fui encarar a realidade.
Como ele ainda daria aula na parte da tarde e eu chegara logo depois do almoço, tive que ficar esperando até que meu pai terminasse todas as obrigações. Fui para a biblioteca para não ter que fingir sorrisos pros colegas dele de profissão... e dei de cara com o Jonathan lá.
Mas é claro que era justamente na biblioteca que a gente ia se esbarrar de novo, né?
Ele me olhou um pouco desconfiado, acho que não percebeu que eu o reconheci porque continuou foleando uns livros jurássicos na ala de história. Fiquei meio sem graça; é óbvio que eu lembrava dele, por ter tido toda a experiência de ver o Victor Costa ao vivo do meu lado, sabe? Uma coisa tão importante assim acho que merecia ser memorável... Mas fiquei sem saber se deveria ir cumprimenta-lo ou não. Vai que ele não queria mostrar intimidade com um cara que praticamente acabou de conhecer, né?
Acabei agindo por instinto e fui me aproximando da estante em que ele estava, sem muito alarde, agindo naturalmente.
– Oi. – cumprimentei.
– Oi. – ele respondeu.
E ficamos em silêncio.
– Você estuda no Independência então. – ele apontou pro símbolo na camiseta do meu uniforme. Era o nome do meu colégio, obviamente, que estava bordado abaixo da estampa com o brasão.
– É. – sorriso amarelo. Silêncio. – Vim ajudar meu pai a carregar uns trabalhos pra casa...
– Ah. – ele assentiu e guardou o livro na estante à sua frente. – Tenho que entregar um desses semana que vem...
– Pro meu pai?
– Sim. Também.
Ele catou outro livro da estante, um de capa azul e escritas douradas e que eu reconheci imediatamente.
– Esse aí. – eu indiquei e ele se virou pra mim com as sobrancelhas franzidas. – Meu pai gosta bastante desse livro. Talvez seja uma boa usá-lo no seu trabalho da matéria dele, sei lá...
Ele ponderou por um instante e sorriu em seguida, colocando o livro debaixo do braço gordinho. Sem estar na ponta dos pés, Jonathan era realmente uns bons dez centímetros mais baixo que eu. Na claridade da biblioteca, também reparei que seu uniforme ficava bem apertado, o que o deixava com uma aparência de bichinho de pelúcia.
Sim, foi essa comparação que fiz.
– Pode me dar outras dicas se não estiver muito ocupado. – ele murmurou, se balançando sobre os pés de um lado pro outro.
Concordei. Não estava ocupado.
***
Passamos a tarde toda na biblioteca e eu o ajudei a fazer o trabalho de História – era uma matéria que eu já tinha visto na minha própria escola e, claro, meu pai era o professor dele, eu sabia o que ele esperava ou não pelos comentários que sempre fazia enquanto corrigia no balcão da cozinha em casa. Prometi, porém, que não contaria pro professor Antônio, meu digníssimo progenitor, que ajudara o Jonathan nisso, claro.
Antes de ir embora, uma ideia maluca surgiu na minha cabeça e decidi tentar a sorte. Estávamos devolvendo os livros nas prateleiras – sim, usamos livros e não a internet, como bons nerds que somos – quando começamos a falar do Victor Costa e do dia em que nos conhecemos sem querer.
– Eu plastifiquei a página do autógrafo. – Jonathan riu sozinho. – Minha mãe acha que fiquei louco.
– Falando nisso, – comecei, como quem não quer nada. – qual foi o título que ele autografou pra você?
Terminamos de colocar os livros nos seus devidos lugares e ele disse o nome do que o Victor tinha autografado.
Quase enfartei.
– É aquele do garoto-vampiro-RPG?!
Jonathan me olhou meio perplexo pelo meu tom de voz, eu acho. Ou pela nomenclatura, não sei, fiquei tentado a esclarecer mas percebi que não seria preciso. Ele entendeu e me respondeu de prontidão:
– Sim, por quê?
Engoli a raiva e o choro porque uma luzinha se acendeu e eu mandei:
– Quer trocar comigo?!
Ele me olhou como se eu fosse louco e não demorou um minuto pra responder:
– Não. Você também não ganhou um autógrafo!?
Então expliquei a situação da maneira menos sofrida que consegui, mas adicionei uma pitada de drama ao final. Não sei se funcionou, porque Jonathan se virou pra mim e suspirou:
– Foi mal, mas também é meu favorito... – ele parecia sentir muito mesmo, e ainda me deu uma ideia: – Por que não vende esse? Com o dinheiro dá pra você juntar e comprar outra cópia daquelas que vem com autógrafo, sabe? Tem umas livrarias que vendem, e na internet também...
Eu sabia, mas aquele tinha meu nome. Se eu comprasse outro, não teria meu nome, só uma assinatura genérica. Também não queria me desfazer daquele exemplar que eu tinha arriscado quase que a vida pra obter, vou ser sincero, né.
E então seus olhos dobraram de tamanho e Jonathan se aproximou rapidamente de mim, me assustando um pouco. Digo, não estou acostumado a gente me pegando ou invadindo meu espaço pessoal, sabe? Ninguém no colégio faz isso comigo, já que estou quase sempre na "vibe ruim", mas o Jonathan não se importou. Ficou a dois centímetros de mim e segurou meu braço. Do nada.
– Você pode ir na casa dele e pedir pra autografar o outro livro! – ele exaltou.
– Na... Na c-casa dele? – tive dificuldades em raciocinar primeiro pela proximidade, segundo pela ideia maluca.
Então Jonathan se afastou um pouquinho, notando que estava me deixando um pouco desconfortável, e também percebendo que se empolgava demais. Ele pigarreou e mandou, todo sério:
– Eu sei onde ele mora.
Pisquei, completamente perplexo.
Não sei nem o que teria falado, porque meu celular vibrando me acordou do transe e nós dois meio que pulamos de susto. O nome do meu pai apareceu na tela e eu revirei os olhos, sabendo que ele estava me esperando para pegar as pastas e papéis.
Fiquei um momento sem saber o que falar, naquela de me despedir, até o Jonathan me cutucar e perguntar se queria o seu número de telefone. Pra gente combinar de ir na casa do Victor.
Ele usou essas palavras. Eu entreguei meu celular e, enquanto Jonathan digitava os números e salvava o contato, ele comentou:
– Se você quiser, nós vamos.
***
Carol passou a sexta e o sábado na nossa casa, o que deixou meu pai mais ocupado com ela que comigo. Pude martelar na minha cabeça o quanto aquilo de ir na casa do Victor era errado, doentio até, mas ao mesmo tempo uma ideia tão fantástica, genial, como eu não pensei nisso antes? Sabe, essa adrenalina constante que fã mesmo tem.
Eu já tinha lido na internet um bocado de gente que se esgueira na propriedade de artistas, paparazzi que segue os outros pra tirar foto, essas coisas birutas. Era realmente uma maluquice, mas no fundo, sempre que lia esses relatos, eu meio que entendia. Eu sabia o desespero que a pessoa estava ao ponto de chegar a fazer isso porque me vi nesse desespero naquele fim de semana.
Pra piorar, o Jonathan tinha me adicionado em todas as redes sociais e ficava me mandando mensagens sobre como ele estava elaborando o nosso plano e tal. Elaborando de forma minuciosa e audaciosa, nas suas palavras.
Até que, em certo momento, eu o questionei:
– Como você sabe onde o Victor mora?
– Ué, não é segredo.
– Não é?!
– Todo mundo sabe.
Como meu pai costumava dizer, eu não era todo mundo mesmo, porque não fazia ideia. Nunca nem tinha parado pra pensar onde ele poderia morar... Mas então bastou uma simples pesquisa rápida no Google pra achar o endereço quase que completo. Era um apartamento e ficava num condomínio na zona sul da cidade.
Se o Google tinha aquela informação, aparentemente todo mundo sabia mesmo.
Só não tinha o número de fato do apartamento porque, por exemplo, para enviar cartas pra ele havia uma caixa postal e tal. É lógico que ele não recebia fãs enlouquecidos em casa pra tomar um chazinho com biscoitos o tempo todo.
– Podemos ir amanhã. É domingo, a segurança do condomínio deve ser mais branda.
Pisquei pra tela do meu celular enquanto a gente conversava. O jeito como ele vinha pensando em todos os detalhes me assustou um pouco, mas também me deixou com aquele friozinho gostoso na barriga de excitação! Fazia muito, mas muito tempo mesmo que eu não sentia nada parecido... Até notar que, ei, eu acho que nunca senti nada parecido!
Não o respondi de imediato, porém, porque meu pai me chamou para jantar a pizza que ele e a Carol haviam pedido para o sábado à noite. Fiquei momentaneamente desligado do assunto "invasão à casa do Victor" porque pizza era uma das minhas comidas favoritas (e se eu queria dar uma de ninja, tinha que ingerir umas calorias pra me sustentar na empreitada, né).
Comemos assistindo a um telejornal e, durante a exibição de uma matéria sobre um museu de artes ou algo assim, meu pai comentou que estava querendo visitar a exposição.
– E é uma coisa inédita aqui, porque trouxeram as peças do museu lá de Portugal, sabia? – ele não falava com ninguém em particular, mas a Carol mordeu a isca rapidinho, como sempre.
– Por que não vamos amanhã? Domingo é sempre um dia que a gente não faz nada em casa... – ela beliscou mais um pedaço de pizza e acrescentou, numa voz um pouco mais baixa porém ainda audível. – E a gente já está trancafiado em casa desde ontem...
Apesar de descolado (na visão dos alunos dele, claro), meu pai é meio paradão. Ele gosta de recitais, de teatro, de exposições de arte, mas gosta ainda mais de ficar em casa, deitado e de meias, assistindo qualquer coisa na TV. Não que a Carol não goste, mas eu consigo entende-la: até eu me sinto meio letárgico quando dezenas de finais de semana se passam nesse mesmo ritmo, sem que a gente saia nem para ir ao supermercado. Sério, às vezes ela tem que nos arrastar pra fazer compras e, se não fosse a Carol, de vez em quando penso que passaríamos fome.
Então meu pai concordou, sem muita contradição. Era algo que ele gostaria de ver, e foi ele mesmo quem sugeriu, mesmo que nas entrelinhas, pra começo de conversa. Eles marcaram de ir antes mesmo do almoço, pra não pegar o museu lotado, e de quebra almoçar no shopping das redondezas em seguida.
– Não tô a fim de ir não... – murmurei quando eles esquematizaram a saída.
Os dois me olharam e meu pai ia dizer algo que me forçaria a mudar de opinião, tenho certeza, mas a Carol se intrometeu e mandou:
– Não tem problema. Tem pizza pra você esquentar pro almoço, certo? – ela olhou de mim pro meu pai, esperando uma reação.
– Tem certeza? – Antônio encorpou um pouco do seu ar de professor ao me perguntar. – Você vai se sustentar só com essas fatias de pizza?
– Não existe almoço melhor, existe? Pizza do dia seguinte?
Carol riu comigo e meu pai deixou a questão passar assim mesmo. Tive a nítida impressão de que ela ficou bastante contente com minha resposta porque, afinal, passar um tempo a sós com seu namorado, sem o filho adolescente à tiracolo, devia se equiparar à ganhar na loteria, considerando as circunstâncias.
Daí que, de volta ao meu quarto, me aprontando para dormir, notei que ainda não tinha respondido a mensagem do Jonathan. E que agora eu teria o domingo inteiro livre para sair de casa sem ter que das explicações pra ninguém, já que estaria sozinho...
A tentação bateu à porta e, quase sem perceber, digitei a resposta para o Jonathan e apertei o "enviar":
– Onde e que horas nos encontramos amanhã?
***
Estava um dia ensolarado aquele fatídico domingo, mas mesmo assim vesti um moletom com capuz e fiquei suspeitosamente estorricando no sol até o Jonathan chegar. Marcamos às dez e meia em frente a um shopping da zona sul. Ele apareceu exatamente no horário combinado.
– Faz muito tempo que você está aqui? – ele perguntou. As pessoas me olhavam torto.
– Uns vinte minutos, eu acho.
Jonathan deu de ombros e disse pra nos apressarmos, sem ligar muito para a minha vestimenta. Ele estava de mochila, calças jeans e uma blusa (de mangas normais, não compridas) que devia ser três números maiores que as do seu uniforme do colégio, porque o deixava enorme, mas não de um jeito ruim. Parecia confortável porque ele aparentava mil vezes mais tranquilo e, sei lá, bem consigo mesmo. Muito mais do que quando o vira de uniforme apertado, por exemplo.
Ao contrário de mim, que só parecia um meliante de shorts e capuz mesmo.
Dali, pegamos um ônibus que, de acordo com os cálculos do Jonathan, nos deixariam na entrada do condomínio em mais ou menos meia hora. Deixei tudo nas mãos dele, confiando que não me levaria para uma gangue que tiraria meus órgãos e venderia no mercado negro.
No percurso, dava para ver sua empolgação, mas se continha um pouco porque eu não estava lá ainda muito certo do que íamos fazer.
– Relaxa. Só vamos bater à porta. Se ele não quiser ou não puder nos atender, vamos embora. Só isso. – ele me acalmou, de certo modo.
– Se meu pai souber o que estamos fazendo, ele me mata. – suspirei.
Jonathan se virou pra mim.
– Ele não parece do tipo que que briga muito...
Eu tive que rir.
– E não é mesmo. Mas se tem uma coisa que ele odeia é que traiam sua confiança...
E era exatamente isso o que eu estava fazendo, no fim das contas. Ele e a Carol estavam sossegados no passeio de domingo, confiando que o filho ficaria em casa colocando os seriados em dia. Se alguma coisa desse errada e ele ficasse sabendo que eu meio que fugira pra invadir a casa de uma celebridade... A ideia era tão estapafúrdia que eu não conseguia nem imaginar uma punição à altura.
– Sem mesada, provavelmente. – Jonathan riu comigo, mas eu encolhi os ombros.
– Sei lá. Não acho que vá ser só isso... Sério, não dá pra imaginar o que ele faria.
– Não precisa, porque nada vai dar errado, tá bom?
O cotovelo dele se esbarrou no meu e eu fiquei olhando para aquele ponto de encontro por um tempão, me dando conta de que estávamos, de novo, tão próximos que sua perna se encostava à minha em cada curvinha que o veículo dava. Afinal, os bancos dos ônibus não foram feitos para pessoas acima do peso, então, mesmo que Jonathan fosse, hm, compacto, baixinho e tal, ele não se encaixava bem no assento. Eu era magro, esticadão pra cima; sobrava partes do meu banco que ele ocupava com as partes que escapuliam do dele.
Nada disso era ruim, aliás. Só era... meio novo.
– Então, hm, por que esse livro é tão importante pra você? – eu o ouvi perguntar, me tirando do devaneio. – Quero dizer, não é o mais famoso dele... Li também que foi o que menos vendeu até agora...
– Ele é seu favorito também? – devolvi de supetão. Jonathan arregalou os olhos e depois desviou, observando a paisagem de pedra pela janela do ônibus. – Por quê?
Ele respirou fundo e ficou olhando ao redor, menos diretamente pra mim.
– Tem, hm, os personagens mais legais.... tem a história mais legal.
– Você leu todos os outros?
– É claro que sim. – aí então ele me encarou, como se eu o tivesse insultado com o questionamento. – Já li todos os que ele lançou, tenho todos, inclusive.
De repente, Jonathan abriu a mochila que carregava e me mostrou que estava com todos os exemplares. Minhas sobrancelhas se arquearam e eu perdi um pouquinho do fôlego com a surpresa. Devia pesar uma tonelada porque tinha no mínimo uns quinze livros ali dentro!
Jonathan encolheu os ombros.
– Nunca se sabe quando teremos outra oportunidade, né. – eu o encarei, mas ele revirou os olhos. – Eu sei, a prioridade é o seu, não se preocupe.... Mas, assim, se sobrar um tempinho pra ele autografar alguns dos meus outros... por que não?
Antes que ele fechasse a mochila de novo, notei que um dos livros estava cheio de post-its e marcadores saltando das páginas, provavelmente repleto de citações que ele próprio considerava dignas de favoritismo daquele jeito. Soltei um sorriso mais pra mim mesmo que pra ele, porém, consciente de que eu fazia a mesma coisa com os meus exemplares (mas, talvez, de maneira mais organizada, eu acho).
– É o meu favorito porque o protagonista praticamente foi inspirado em mim. – comentei.
Jonathan ficou um pouco calado, mas logo sorriu.
– Não pode ser, porque ele claramente foi inspirado em mim.
Vi suas bochechas ficarem ainda mais coradas.
– Tudo bem, pode ter sido inspirado em nós dois, vai. – eu sorri. – Afinal, tem umas partes que eu acho que não se parecem tanto comigo assim...
– Quais não se parecem? – ele perguntou, acrescentando na forma de um sussurro: – Porque eu acho que todas se parecem comigo...
Abri a boca para responder, mas o motorista deu uma freada brusca e nos obrigou a nos mexer para evitar dar de cara com o chão de metal. Foi horrível, mas foi bom porque o Jonathan se levantou no susto, dizendo que tínhamos que descer no próximo ponto. Ele agarrou a mochila dele, eu agarrei a minha e não tocamos mais no assunto anterior.
***
Não sei de onde aquele garoto tirou que a segurança do condomínio seria menos reforçada num domingo, mas aparentemente ele estava: certíssimo. Na guarita da entrada só tinha um cara ouvindo rádio e cantando uma música sertaneja qualquer. Ele nem nos parou, pediu identidade nem nada, só balançou a cabeça mais parecendo um cumprimento que qualquer coisa. Então nós nos entreolhamos e entramos, simples assim.
Jonathan tinha o nome da ruazinha e um mapa localizando a casa do Victor, é claro.
– É na terceira rua à direita. Um prédio cinza. Ele mora no sétimo andar... – ele comentou e nós olhamos na direção que ele apontava. Um prédio enorme despontava entre alguns mais baixos. – Acho que é um apartamento por andar, então não precisamos nos preocupar com o número.
Fomos caminhando normalmente, sem muita pressa e em silêncio. A constatação do que estávamos prestes a fazer fez minha cabeça começar a latejar, meu peito parecia apertado por causa da ansiedade. A gente ia simplesmente chegar, tocar a campainha e pronto?
"Oi, Victor, assina esse livro pra mim, por favor? Obrigado, tchau."
Quando viramos a terceira rua à direita, a entrada do prédio ficou completamente visível. Havia um jardim muito bonito na frente, com direito a um chafariz e portas de vidro que davam para o hall (eu acho) e a garagem (estava escrito "GARAGEM" na placa). Demos alguns passos meio vacilantes em sua direção e, quando íamos atravessar a rua, um carro surgiu deslizando no asfalto sem fazer muito barulho. Me assustei e Jonathan segurou meu braço para trás para que eu não fosse atropelado. Meu coração quase saiu boca afora.
– Você tá bem? – ele perguntou, mas meus olhos se focaram no carro, um sedã muito lustroso e caro, que agora estava estacionando na frente do prédio.
A porta do carona se abriu. De lá de dentro saiu um homem alto, de cabelos extremamente negros e olhos verdes – não que eu conseguisse enxergar a cor dos seus olhos dali, mas eu sabia como eles eram. Sua foto estava estampada na contracapa de todos os livros que estavam na mochila do Jonathan: Victor Costa.
Do lado do motorista saiu outro cara, cabelos castanhos cuidadosamente ajeitados num leve topete. Os dois usavam calça jeans, mas havia um ar profissional que pairava a atmosfera de ambos mesmo assim. Eles eram muito elegantes, esbeltos, sabe? Com cara de gente grande de verdade. Me senti pequenininho perto da visão dos dois.
Victor contornou o carro e perguntou, em alto e bom som:
– Vai deixa-lo na rua mesmo?
– Ah, vamos sair daqui a pouco... Colocar e depois tirar da garagem dá muito trabalho. – o homem respondeu, acionando o alarme do veículo através do controle em sua mão.
Victor riu e se aproximou dele.
– Você sempre foi teimoso assim?
– Sempre.
Daí eles se aproximaram mais, e foram se aproximando, e se aproximando e... minhas pernas começaram a ficar meio bambas porque não tinha mais espaço entre eles! Vi, de boca aberta, quando eles se beijaram. Na boca. E o motorista passou o braço pelos ombros do Victor, que devolveu o abraçou pelas costas e o encaminhou para a porta de vidro, para dentro do prédio, para longe das nossas vistas.
***
– Yago! Não acredito nisso! – Jonathan estava esperneando do meu lado. Eu estava tendo problemas de concentração. – Perdemos a chance perfeita! Podíamos ter falado com eles antes que entrassem no prédio!
Eu não sabia como responder, então deixei ele reclamando sozinho. Minhas mãos suavam e a mochila nas minhas costas, mesmo que tivesse carregando só um livro, alguns chocolates e minha carteira, parecia conter o peso do mundo inteiro.
– Você está me escutando? – Jonathan me encarou, os braços abertos. Por sobre a cabeça dele eu ainda vislumbrava a porta de vidro por onde Victor e o... o outro cara elegante entraram.
– Você viu o que eu vi? – murmurei, a garganta meio seca.
Jonathan piscou.
– O Victor entrando no prédio? É claro que eu vi! É justamente sobre isso que-
– Não, antes disso. – eu o interrompi, ele pareceu confuso. Limpei a garganta e desviei o olhar. – Ele e o... e o outro cara. Que estava dirigindo. Antes de entrar, eles...
Travei, Jonathan percebeu. Suas bochechas ficaram mais rosadas que o normal e ele abaixou os braços, puxando a mochila sobre os ombros, apertando-a contra o corpo gorducho. Ela sim devia mesmo estar bastante pesada.
– O que é que tem?
– Você... percebeu? Os.. dois.... eles estavam...
– O que tem isso? – Jonathan ficou impaciente de uma hora pra outra. – Nós perdemos a chance perfeita.
Ao me interromper novamente, Jonathan acabou me deixando nervoso. O choque de antes foi completamente substituído por irritação. Bufei.
– Ah, para com isso! Estamos na frente do prédio! Você mesmo disse que era só chegar, apitar a campainha e pedir! Era isso que íamos fazer antes de qualquer coisa! Não interessa se a chance perfeita passou, a gente nem tava contando com ela mesmo!
Minha voz estava elevada, eu notei, e ele também ficou um pouco surpreso por me ver gritando. Rapidamente recuperado do choque, porém, Jonathan bufou ainda mais alto e mandou:
– Ah, é? Então vamos apitar a campainha.
Então ele agarrou meu braço e me rebocou até a entrada do prédio, atravessando a rua e esmagando o asfalto com força.
– Espera! Calma, Jonathan! Você não tá falando sério, tá!? Ei! Espera!
Quando chegamos na porta, para meu alívio momentâneo, consegui segurá-lo antes que seus dedinhos alcançassem o interfone. As vantagens de ser mais alto finalmente postas em prática.
Jonathan se virou pra mim furioso, as bochechas inchadas e mais vermelhas como pimentão. Mesmo sendo mais baixo, sua figura era imponente e me deixou meio temeroso, vou confessar. Ele deu um passo na minha direção e rosnou, tentando manter a voz mais baixa possível, mas falhando em alguns pontos da frase:
– Agora você não quer mais o autógrafo só porque descobriu que os boatos são verdadeiros!
– D-do que você está falando?! – gaguejei.
Ele revirou os olhos, debochado.
– Há, como se você não soubesse! – e continuou cuspindo as palavras sem me deixar raciocinar direito. – Só porque agora você teve prova de que o Victor é mesmo gay você não quer mais o autógrafo. Aí aposto que vai chegar em casa e postar a informação em modo público no Facebook. Ou pior! Vai tuitar pra todo mundo que está decepcionado, que isso, que aquilo, blábláblá...
Eu estava completamente sem reação. Jonathan continuou falando mais alguma coisa por um ou dois minutos, mas eu já tinha parado de escutar.
Em algum momento, que não vou saber precisar qual foi, ele percebeu que eu não estava brincando quando disse que não sabia do que ele estava falando, e foi se acalmando até ficar completamente em silêncio.
Um silêncio esquisito.
Jonathan respirou fundo e me puxou para sairmos do foco da câmera de vigilância da entrada do prédio (que eu nem reparara na existência). Acho que estávamos agindo mais que como meros suspeitos agora.
– Espera. Você realmente não sabia?
Balancei a cabeça.
– Mas... Como não...? – Jonathan ficou sem saber como explicar, já que parecia ser algo tão óbvio. Ele respirou fundo mais uma vez e mandou: – Ele sempre disse que a maioria das suas histórias foram baseadas na sua vida, lembra? Ele contou isso na própria palestra na escola, você estava lá, do meu lado, não dá nem pra negar isso...
Ok, eu estava acompanhando seu raciocínio então assenti. Jonathan suspirou.
– E você nunca, assim, reparou que, tipo, em todos os livros dele tem um... casal... gay? Que normalmente os protagonistas são, tipo, gays?
Suas sobrancelhas estavam vincadas, como se ele me implorasse para que não precisasse detalhar mais. Porque realmente estava na cara. Senti minhas pernas amolecerem de novo e confirmei o que, de fato, eu já deveria saber: eu sou o cara mais lerdo do mundo.
– Eu não sabia... – murmurei, mais pra mim mesmo que pra ele. – Mas você sabia. Como você sabia? – e então algumas coisas começaram a ficar cada vez mais claras na minha mente. – Victor nunca fala de si mesmo nas entrevistas. Ele evita qualquer assunto pessoal. O máximo que conta é isso, que é baseado na vida dele e tal, mas isso nunca quis dizer que ele era... Digo, que ele é! Victor nunca disse com todas as letras, nunca-
– É claro que não. Ele não precisa dizer... E se disser, ainda corre o risco de perder venda porque as pessoas simplesmente não sabem separar uma coisa da outra e são todas homofóbicas e racistas... – ele soltou um pequeno rosnado ao fim, juro. – E o marido dele prefere ficar fora dos holofotes, pelo que sei...
– Como você sabe dessas coisas?! – grasnei. Jonathan desviou o olhar e abaixou a voz.
– Sabendo, oras. Algumas pessoas, hm, sabem.
Eu o encarei, confuso. Será que essa informação estava no Google também ou ele é quem tinha feito questão de escavar tão afundo na vida do Victor? Fiz uma nota mental de procurar quando chegasse em casa, de qualquer forma.
– Mas isso não vem ao caso. – ele retomou, suspirando. – O problema é que, agora, você vai ser mais um dos haters que ficam difamando a imagem do Victor na internet só porque ele é gay-
– Ei, ei, espera um momentinho aí! – dessa vez fui eu quem interrompi, um bocado indignado. – Quem disse que eu vou fazer qualquer uma dessas coisas?! Quem disse que eu sou hater? Pelo amor de Deus, eu venero esse cara desde que me entendo por gente! Isso não vai mudar só porque vi ele beijando outro cara! Uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra! Eu nunca tive problema nenhum com os livros dele e, pra falar a verdade mesmo, não, eu não tinha feito tanto alarde assim de ter personagens gays porque isso pra mim não influenciava. Quero dizer, se o cara é gay ou hétero, ou qualquer outra coisa que não gay ou hétero, que diferença faz para a história?!
– Então simplesmente não faz diferente pra você...? – Jonathan questionou, um pouco abalado pelo rompante de coisas que eu havia desabafado.
Encolhi os ombros.
– Não! Deveria? As histórias não são sobre isso... – então um click ecoou na minha cabeça. – A não ser, talvez, um pouco do último livro. O protagonista está apaixonado pelo colega de classe dele, não é? E ele fica o tempo todo tentando ajuda-lo, aí depois se afasta porque o colega não liga a mínima e não percebe que ele faz isso só porque gosta dele, mas isso não impede o protagonista de ainda gostar dele, como belo trouxa que é, né, pelo contrário...
Falei sem me conter por um bom tempo, revivendo a história do garoto-vampiro-RPG em voz alta. Jonathan me acompanhou em silêncio e, quando parei, notei que suas bochechas ainda estavam extremamente rosadas. E suas orelhas. E seu pescoço. Tudo.
– Desculpa, não pretendia ficar monologando à toa...
Ele assentiu e suspirou mais audivelmente, abaixando o olhar para poder comentar:
– Por que você acha que eu gosto tanto do que o Victor escreve? – antes que eu tivesse tempo para sequer pensar numa resposta, Jonathan emendou: – Eu não o conhecia, até encontrar uma recomendação sem querer por aí, pela internet. Daí eu comecei a ler e não parei mais. Eu li todos os livros em menos de um mês! Eu passava as madrugadas acordado, os intervalos das aulas todas na sala, lendo. Ficava na escola, na biblioteca, pra que ninguém me interrompesse... Fui eu que recomendei que ele fosse dar a palestra na escola. Implorei pro professor Eugênio, que até foi muito gente boa, é verdade, mas não me deu certeza de que conseguiria... Daí eu escrevi pro Victor diversas vezes pedindo pra que fosse na escola, pra falar sobre os livros, pra falar sobre ele...
Quando parou pra tomar fôlego, notei que Jonathan parecia cansado de ter que dizer aquelas coisas pra mim. Ou pra qualquer um, talvez. Ele não tinha chegado ao fim, porém, e parecia querer terminar porque não me deixou interrompê-lo de novo:
– Mas ele nunca fala sobre ele por todos os motivos que eu citei, e também como você apontou, as histórias não são sobre isso... Mas ao mesmo tempo são totalmente sobre isso, só que de um jeito super natural. Como deveria ser. Entende? – ele fez uma pausa e sua voz falhou um pouquinho quando ele repetiu: – Como deveria ser.
Nós ficamos nos encarando em um silêncio pesado até que eu decidisse dizer alguma coisa inteligente para amenizar a situação. É lógico que minha cabeça lerda não funcionou na velocidade da luz e eu acabei perdendo o timing certo, sabe? Ainda mais porque levamos o maior susto quando a porta de vidro do prédio abriu do nada e um cara de bigode e uniforme veio na nossa direção.
***
– Algum problema por aqui, garotos?
O senhorzinho tinha um ar de superioridade naquela roupa. Usava um coturno preto até o meio das canelas e um molho de chaves estava pendurado no seu cinto cheio de compartimentos (parecendo o Batman mesmo). O crachá suspenso no bolso da blusa indicava que ele era o porteiro barra zelador do prédio – como não tinha nenhuma guarita de fora, ele devia ficar sentado no hall de dentro, atrás da porta de vidro que, eu reparei, era espelhado. Ele provavelmente ficou nos vendo discutir ali fora desde o início.
Há quanto tempo estávamos ali, afinal?
– Vocês estão aí há bastante tempo, parados. – ele comentou, apontando a câmera com a sobrancelha. – Um show e tanto lá de dentro.
Jonathan e eu nos entreolhamos, completamente envergonhados e sem saber como responder. O cara ficou nos fitando, trocando o peso entre uma perna e outra, esperando pra ver que desculpa íamos inventar, porque estava na cara que a atividade era bastante suspeita.
Jonathan foi o primeiro a se recuperar, claro, e mandou:
– Nada. Estávamos de passagem, só. – ele me olhou de soslaio e completou: – E já vamos indo nessa, desculpe...
Ele virou as costas para o prédio e me deu um leve cutucão no braço para que o acompanhasse para longe.
Mas eu ainda não tinha pego meu autógrafo. Não tínhamos ido ali pra nada; não é possível que depois de tudo ainda voltaríamos de mãos abanando!
Qual era a pior das hipóteses, ele chamar a polícia pra gente por estarmos simplesmente conversando na rua? Tudo bem, ele podia fazer isso, mas mentalmente calculei o quanto nós dois conseguíamos correr antes que ele voltasse e ligasse para o 190. Decidi que valia a pena arriscar, segurei Jonathan pelo braço e mandei:
– Na verdade, estamos aqui para ver o Victor... Victor Costa, sabe? Ele mora no sétimo andar.
Jonathan esbugalhou os olhos, tenso, mas permaneceu onde estava. Fiquei escutando meu coração estourando nos meus tímpanos enquanto o porteiro me encarava, decidindo o que deveria fazer depois.
Eu estava tendo uma maré de sorte tão grande naquela semana que duvidei se teria qualquer vislumbre dela pelo resto da vida, ainda mais quando o porteiro simplesmente nos deixou entrar. Sem qualquer outra pergunta, só uma recomendação:
– Sabem onde pegar o elevador, certo?
Nós não sabíamos, mas respondemos que sim e disparamos prédio adentro, sem a menor noção de como aquilo tinha acontecido. E o elevador foi mesmo um pouco difícil de achar, mas não impossível, então uns cinco minutos depois estávamos colocando os pés no chão do sétimo andar.
Meu Deus, estou invadindo um prédio!
Ao sairmos do elevador, notamos que havia somente uma porta branca, grande, daquelas de gente rica. Nos entreolhamos e o Jonathan desatou a gargalhar de uma hora pra outra. Como se tivesse puxado um tampão imaginário, meu saco de risadas também explodiu e ficamos assim, rindo igual idiotas, no corredor, fazendo um escândalo porque a acústica do interior daquele prédio não era lá muito favorável (poxa, engenheiros!!).
Acho que fomos ouvidos até debaixo da terra, e com certeza de dentro do apartamento, porque a porta branca de rico se abriu no minuto seguinte. Nós prendemos a respiração ao ver a cabeça confusa do motorista do Victor aparecer no batente... Digo, do marido do Victor.
Ele estreitou os olhos para a visão de dois adolescentes suspeitos no seu corredor e estava prestes a começar a inquisição quando o próprio Victor apareceu à porta. Meu coração bateu ainda mais forte e eu não sei o que deu em mim, mas resolvi aproveitar o último resquício de sorte que eu devia ter. Afinal, aquela sim era a chance perfeita.
– Victor, me desculpa, eu não deveria estar aqui, eu sei, mas agora já era, então você pode, por favor, assim, pela coisa mais sagrada que você... hm, admira? Não sei, essa frase ficou confusa... Mas você pode, por favorzinho, me dar um autógrafo aqui? Juro que nunca mais faço isso. Juro que depois disso vou embora, que não piso mais aqui, nunca mais, juro, jurado, de pés juntos... – fui desembolando e tirando o livro da mochila e andando em direção a eles, tudo ao mesmo tempo.
Jonathan foi andando do meu lado e, quando finalmente tirei o livro da mochila e estiquei pro Victor, completei com uns trezentos "por favor" e pedidos de desculpa, soltando um sorrisão amarelo.
Ficamos os quatro estáticos.
Até que o Jonathan cortou o silêncio:
– E, por favor, não chame a polícia pra gente. Por favor.
– Por favor. – eu emendei mais uma vez. Não custava, né?
Victor e o marido dele se entreolharam e, para a nossa surpresa, começaram a rir. Não tanto quanto nós ríamos antes, mas mesmo assim era um sinal de alívio. Tanto que eu voltei a respirar só naquele instante, percebendo que estava prendendo o ar todo no pulmão.
O marido do Victor abriu mais a porta e se escorou na maçaneta enquanto o próprio escritor se aproximava de nós e pegava meu livro. Ele sorriu para a capa e os dois mais velhos trocaram um olhar que eu não sabia muito bem o que significava, mas parecia significar muita coisa.
– Têm uma caneta aí? – Victor perguntou, olhando diretamente pra nós dois.
Caneta, pensei, em pânico.
Eu não tinha lembrado desse detalhe.
Mas então Jonathan abriu a própria mochila e vasculhou, sem sucesso, todo o seu conteúdo.
– Eu trouxe! Espera, tá por aqui...
Irritado, ele virou tudo no chão. Isso mesmo, quase quinze livros espalhados no corredor. A caneta foi a última a cair, é claro.
– Uau. – o marido ergueu as sobrancelhas.
Victor só suspirou, mas levando tudo na esportiva.
– Tragam pra dentro, parece que isso vai demorar um pouquinho, né?
E foi assim que eu tomei chá com biscoitos com meu escritor favorito.
***
Ok, não houve chá. Muito menos biscoitos.
Mas nós nos sentamos no sofá da sala deles enquanto Victor pacientemente assinava todos os livros que o Jonathan havia levado. E o meu. Sim, o meu também, com meu nome, com direito à dedicatória. Tudo.
– Vocês não são os garotos do colégio que eu dei uma palestra essa semana? – ele questionou.
E ele ainda se lembrou da gente!
– Eu já não tinha autografado pra vocês?
– Sim! Mas... – respirei fundo. Não queria soar ingrato. Ao meu lado, porém, Jonathan meio que me empurrou com uma das pernas, num gesto que eu interpretei como incentivo, então continuei falando. – Mas é que esse aqui é especial, sabe?
Victor parou de assinar e me fitou, sorrindo.
– Sei. – ele refletiu por um momento antes de retomar a fala. – É especial pra mim também.
– Por quê? – Jonathan perguntou antes que eu tivesse a chance de pedi-lo pra ficar calado. E só depois percebeu que talvez tivesse passado um pouquinho dos limites, tentando em vão se corrigir: – Porque, assim, também é especial pra mim. Por um motivo especial... digo, por um motivo único. E especial, de certa forma. Eu acho. Algo assim.
Victor riu de novo e, numa olhada rápida para seu marido (que permaneceu de pé, na porta, nos observando atentamente), ele se abaixou perto de nós dois e disse:
– Vou contar um segredo, mas fica só entre nós, tá ok? – nós dois fizemos que sim imediatamente. Victor sorriu mais abertamente e, terminando de autografar meu livro, finalizou: – Ele foi completamente inspirado em mim.
***
Fiquei morrendo de medo de chegar em casa e meu pai e a Carol já estarem lá e eu não saber que desculpa inventar por ser saído sem avisar. Por sorte, quando subi correndo as escadas do prédio e abri a porta, o apartamento continuava vazio. No meu celular, nenhuma mensagem, nem chamada, nada.
Eles com certeza estavam aproveitando a folga.
Fiquei imediatamente aliviado e corri escada abaixo de novo porque o Jonathan havia, sem querer querendo, voltado para a minha casa comigo.
– Quer subir? Eles não estão em casa. Ainda.
Já se passava das duas da tarde e meu estômago roncava porque não tínhamos almoçado, então esquentei a pizza do dia anterior pra gente. Comemos em silêncio porque deixei a TV ligada e dei o play num seriado qualquer que meu pai estava assistindo no dia anterior com a Carol. Era sobre crimes e tal, não me prendeu muito, mas pelo menos preenchia o silêncio entre a gente.
Quando terminamos e nos sentamos de fato para assistir alguma coisa, fomos descobrindo aos poucos que gostávamos dos mesmos estilos de seriados, que víamos as mesmas coisas, e eu até me permitir entrar naquela "vibe ruim" perto dele enquanto falávamos sobre futuro, amizades e tal. E ele não se afastou ou tentou mudar de assunto; na verdade, o Jonathan concordou com meus pensamentos. E daí passamos a falar um pouco sobre música também, e inevitavelmente voltamos ao nosso assunto principal: livros.
– Então, – pigarreei pra chamar atenção. – posso ver suas marcações no livro do Victor? O último. Vi que tá cheio de post-its...
Jonathan hesitou um pouquinho, mas me passou o livro e me deixou foleá-lo à vontade. Inconscientemente fui buscando as citações que eu mais gostava pra ver se ele também tinha marcado as mesmas. Fiquei contente ao descobrir que sim, pelo menos quase todas.
Uma dessas citações em particular falava sobre como o protagonista estava se sentindo em relação ao colega de sala. Eu não havia marcado essa no meu livro, mas Jonathan sim.
– Você também está apaixonado por um colega de sala? – perguntei, do nada. Ele ficou roxo de vergonha, eu percebi.
– Não! – vi seus dedos se esfregando uns nos outros de nervoso. – Ainda.
– Hm. Mas é mais ou menos por esse motivo que ele é especial pra você, não é? O livro.
– Mais ou menos... – ele sorriu, ainda envergonhado, mas com coragem suficiente de acrescentar: – Mas não pra você. Você não é gay.
– Não sou? – franzi a testa com a afirmação. Ele franziu de volta, confuso comigo também. – Por que tem tanta certeza?
Se eu mesmo nunca parei pra pensar nisso, eu quis completar, mas de novo perdi a oportunidade porque a porta da frente abriu e a risada extremamente alta da Carol invadiu o cômodo. Ela se desculpou depois que viu que tínhamos um convidado, e meu pai ficou ainda mais surpreso que ela.
– Jo...nathan...? – ele repetiu o nome, como se esperasse que o garoto fosse desaparecer no meio, enquanto ele falava, ou coisa assim.
Jonathan se levantou de um salto do sofá e ficou todo tenso.
– Oi, professor Antônio.
Rolou um desconforto de ambas as partes, mas meu pai sabiamente ignorou a situação e a Carol o rebocou para o quarto para que qualquer estrago maior pudesse ser evitado. Antes de ficar fora de vista definitivamente, ele disse, porém:
– Professor só dentro da escola, Jonathan. Aqui, sou só o Antônio, tudo bem?
– Tudo bem.
E desapareceu.
– Acho que eu vou embora. – Jonathan disse, ainda de pé, ainda tenso.
Suspirei. De certo modo, sabia que a possibilidade de algo assim acontecer era alta, então não tentei impedi-lo. Ele não ficaria à vontade na presença do meu pai tão cedo, mas, bom, também pensei que isso pudesse mudar com o tempo. Com mais visitas. Com mais contato...
Fui com o Jonathan até o ponto de ônibus mais próximo e expliquei como chegar aonde ele queria, e acrescentei que poderia voltar quando quisesse.
– Ele não morde, sabe, meu pai.
Jonathan riu e pediu desculpas, mas era estranho ver um professor em casa. Eu concordei, apesar de tudo, e sabendo que não tinha muito o que dizer sobre isso.
Ficamos em silêncio.
Jonathan sabiamente cortou o silêncio:
– Você é...? – ele não precisou terminar porque sabia que era uma continuação da conversa anterior.
– Isso agora é uma pergunta? Porque antes era uma afirmação.
– Agora é uma pergunta.
Pensei por um minuto.
– Não sei. Não faço ideia. Como se sabe uma coisa dessas?
Ele encolheu os ombros.
– Também não sei. – e remexeu na alça da mochila. – Mas eu acho que sempre soube. Quero dizer, eu nunca... sabe, eu nunca, tipo, nunca beijei ninguém nem nada, mas...
– Mas então como você sabe? – questionei de novo.
Jonathan me encarou. Ficamos nos encarando. Uns bons cinco minutos em mais um silêncio, que não era tão desconfortável assim. Minha cabeça estava completamente vazia, com faíscas de curiosidade genuína brilhando aqui e ali.
A real é que eu realmente não parava pra pensar nessas coisas porque, bem, eu nunca vi isso como um problema a ser resolvido, sabe? Eu não me importava com isso porque não tinha que me importar. O que viesse tava de bom tamanho.
A meu ver, não era disso que a minha história também tinha que ser feita.
Mas então, quando o Jonathan se aproximou, e foi se aproximando até não ter espaço entre a gente, e depois me puxar pra baixo pelo moletom (que, sim, eu ainda estava usando e que acabou sendo útil, no fim das contas), e depois me beijar, na boca, assim mesmo, sem aviso algum... Eu continuei achando que a minha história não tinha que ser sobre isso – sobre a possibilidade de eu ser gay, ou hétero, ou bi, ou seja lá quais outras tantas sexualidades existem.
Mas a minha história, a do garoto nerd dos fortes que viveu a melhor semana da vida dele na companhia de um garoto baixinho e fofinho, podia conter todas essas coisas se eu quisesse, e ao mesmo tempo, porque são pequenos detalhes como esses que me fazem ser quem sou. E que podem fazer essa história ser especial, só que de um jeito super natural, sabe? Como deveria ser.
Como deve ser.
Oi, gente!
Ah! O Victor (e o marido dele) são personagens principais do meu romance "Anistia".
Pra quem quiser conhecê-los mais, e ler a história do garoto-vampiro-RPG, ela está disponível na Amazon (aqui https://www.amazon.com.br/Anistia-Lorena-Miyuki-ebook/dp/B00IDQDWA8/ref=sr_1_7?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1501271686&sr=1-7 ).
Sim, ela existe :)
Obrigada pela leitura!
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