24.O urso branco, uma playlist proibida e o complexo de Penny Lane
Queria entender como os retornos do Universo funcionam.
Melhor, queria entender como em todas as realidades alternativas e caminhos paralelos de escolhas sensatas, eu sempre acabava em algum cubículo, — seminua —, com Jeon Jungkook dentro dele. Já havia entendido que para alguns isto é considerado, deliberadamente, um golpe de sorte, mas a vida inteira eu ouvi dizer que quando ciclos se repetem, significa que a lição ainda não foi devidamente aprendida.
Então alguma força superior enfia o aprendizado goela abaixo, quer você queira, quer não.
Não posso considerar essa uma opção inválida quando a minha lição é um cara de pelo menos um metro e setenta e nove, e está completamente molhado e pelado — quando digo pelado, eu uso todo o significado da palavra: nu, nuzinho, em pêlo, como veio ao mundo —, me encarando há mais de cinco minutos, sem esboçar nenhuma reação.
O detalhe é que esse cara e eu temos uma história. A mesma que estou tentando contar para mim mesma como o desastre anunciado que colocou minha vida em um ritmo diferente, nos trilhos de uma outra estrada, que inevitavelmente calculou uma nova rota diretamente para este lugar. E o meu coração não para de anunciá-lo ao corpo inteiro como uma canção proclamada em alto e bom tom: É ele! Ele está aqui.
Pelo visto, parece que desaprendi a interagir com caras pelados cujas histórias eu meramente compartilho.
Penso se devo perguntar sobre sua irmã caçula, dizer que vi sua entrevista na capa de uma revista chique ou elogiar o fato de que agora o seu salário vale mais que meu apartamento com almofadas bordadas a mão e impregnadas de fumaça de erva em Nova York. Vou embolando meu pensamento entre letras de músicas, citações e o que quero dizer de verdade. Sou um amontoado de informação inútil que continua ali, tentando reaprender como meus sentidos funcionam. Tudo isto perde a importância quando a pessoa em questão está pelada.
Minha mente de escritora quer transcrevê-lo e cantá-lo, a ânsia começa na garganta e como um pintor que captura o momento, quero rabiscá-lo antes que as palavras ao seu redor desapareçam para sempre dentro de mim, em um sopro de inspiração que se dissipa. Às vezes, como agora, elas surgem em um impulso de prazer tão genuíno que precisava me agarrar a algo real, controlar os meus instintos antes de amaldiçoá-lo com literatura e todos os outros perigos que carrego junto ao coração; tendo a escrita como a minha arma mais letal.
Mantenho os olhos fixos em algum ponto entre os azulejos do banheiro e o chuveiro. Meu cérebro lentamente começa a colapsar. Não quero olhar além da linha de suas costelas. Dar uma checada nele, ou algo assim, seus olhos não desviaram do meu rosto desde que entrei aqui. Seria esquisito simplesmente olhar e olhar para baixo mesmo que minha visão periférica me deixe perceber tudo sem precisar mover os olhos diretamente para um foco. Mas começo a identificar pequenas sutilezas despercebidas, como o quanto o seu cabelo cresceu nesse meio tempo, alcançando a altura dos seus ombros, além do quanto parece um pouco mais musculoso (ou ele sempre teve todas essas definições e nunca tive chance de vê-lo por baixo de tanto tecido e da luzes baixas do quarto?) e que agora ele tem piercings nos mamilos como um personagem cafona de livro erótico.
Uau!
Eu poderia ter esperado isso dele, é claro. Poderia esperar tudo do seu nível absurdo de cafonice premeditada, mas me sinto desconectada de alguém que parecia conhecer bem. Bem ao ponto de não me surpreender com adereços de metal espalhados por seu corpo que já devem ter sido motivo de falatório de outras garotas.
Vejo a ponta de uma nova ta-moko contornando a linha dos seus ombros e deduzo se ela desliza pelas costas em uma nova pintura linda e intocada. Por que esse filho da mãe voltou ainda mais bonito? Penso na possibilidade que uma das outras madrinhas daria tudo por essa oportunidade e a última gota de feminismo que existia no corpo se esvai. Ele é só um grande panaca que eu, de um forma ou de outra, já chamei de namorado, mas sinto uma espécie de prazer culposo ao pensar nisso, ao pensar que ele foi meu.
Grande orgulho de merda para se ter, Eleanor!
Take My Breath Away do Berlin toca na minha cabeça. Preciso relembrar como me mover daqui, afinal, já passamos do tempo disponível em que as coisas parecem acidentalmente estranhas, para quando tudo está tão estranho que uma intervenção divina precisa acontecer imediatamente; um raio, um terremoto ou alguém abrindo essa porta para me tirar daqui. E é Jungkook que toma o primeiro passo ao desligar o chuveiro e abrir a porta do box, caminhando até os roupões do hotel pendurados do lado de fora, é impossível não deixar meus olhos curiosos acompanharem seus movimentos e levo um soco no meio da costela quando me dou conta de suas costas cobertas por uma ta-moko que desliza até a curva do seu bumbum, contornando até a coxa.
Como alguém tão infernalmente bonito assim pode ter um bumbum perfeito desses?
Criações do Universo não tem suas perfeições muito bem delimitadas? Ao menos, deveriam.
Ele alcança um dos roupões e coloca ao redor do meu ombro.
— Coloque isso! — Tento puxar a base do tecido atoalhado com a mão livre enquanto o outro braço ainda esconde meus seios da maneira mais fajuta possível, mas ele fica de costas para mim, simulando um pouco de privacidade (rá!) enquanto se enrola em uma microtoalha que estava dobrada sobre a pia. Ainda consigo ver tudo, tudinho, se ele afastar minimamente as coxas. Me sinto intrusa por espioná-lo, mas não consigo desviar o olhar.
Pênis, pênis, pênis, pênis, pênis, pênis, pênis.
Queria saber onde enfiar a cara.
Acho que preciso de mais tempo do que imagino para absorver o excesso de informações daquele primeiro encontro, do primeiro impacto. E deixo meu cérebro vagar pelos limbos mais desconhecidos, sombrios e sórdidos da minha cabeça, parando em alguma citação de Henry Miller que passeia em minha mente, "a América a três mil milhas de distância. Nunca mais quero ver a América."
— O que você tá fazendo no meu pinto? — É a primeira pergunta que ecoa no espaço quando consigo mover os lábios outra vez. Puta merda. — Quarto.
Ele me olha de novo, torço para que não tenha escutado o que disse.
— Ah, oi, Jungkook! Quanto tempo, como está? — Ele ensaia uma voz similar à minha — Bem, obrigado por perguntar e a propósito, esse quarto é meu também, pelo visto! — Ele responde, depois de puxar as mechas dos seus cabelos com os dedos para trás, e alcançar os seus óculos no suporte ao lado da porta. É um pedido iminente de morte. O processo se acelera antes que eu perceba. Esses malditos óculos ficam bem nele. Parecem feitos para serem dele.
Mas caramba, senti saudades de ouvir sua voz.
Sua voz costumava ser assim tão suave ou estava em um processo de delírio devido a abstinência ao ponto de inventar traços que sequer existiam?
— Não, esse quarto é meu. E você pode pegar suas coisas e se mandar daqui. — Forço meu cérebro a manter uma linha de pensamento, a mesma frieza que mantive na distância, como se ele não pudesse me atingir. É só uma conversa hipotética com um personagem fantasma, Eleanor. Ele não tá de fato aqui, em carne e ossos!
— Você entra no meu quarto, invade o meu banho, tira a roupa e por alguma razão que só faz sentido na sua cabeça, quer que eu saia daqui? — Sua risada ecoa.
— Eu não invadi o seu banho, eu só... — Ele cruza os braços, aguarda a resposta franzindo sua testa patética e me sinto acuada. Havia me esquecido desse detalhe também, do quanto Jeon Jungkook ainda me deixava intimidada com essa sua postura excessivamente despojada, como se nada no mundo fosse capaz de intimidá-lo. Isso não havia sido alterado com o passar do tempo como achei que seria. — Só... o quê? — Ele arqueia as sobrancelhas, desafiador o suficiente pra me colocar de volta no meu lugar.
— Não importa, o que importa é que você não deveria estar aqui, então pega suas coisas e vai embora!
Ele ri. De novo. Girando os olhos de forma quase teatral. Dessa vez a piada sou eu.
— Bem, eu não vou sair daqui. — Ele caminha para dentro do quarto deixando pequenas poças abaixo dos pés. — Você não mudou nadinha, sabia? Acha que me mete medo com esse seu nariz metido!
Sabia que estava usando o mecanismo de defesa mais baixo e desesperado de todos: inversão da culpa. Droga, eu devo parecer muito estúpida olhando pra ele assim, mas não conseguia evitar, não conseguia fingir costume ou ser blasé sobre isso. Meu corpo estava colapsando.
Seus olhos encontram o espelho rapidamente no meio tempo que ele leva para tocar a microtoalha que não cumpre sua função de manter tudo aquilo ali distante do meu campo de visão.
— Se importa se eu...? — Viro de costas e tento fingir que aquilo não é patético, que não chego a me importar minimamente com aquilo.
Já poderia culpabilizar Christine por tudo isso, por ter me arrastado até aqui também. Por ter proposto o Yoongi a se casar do outro lado do globo e carregado todo mundo para um hotel privado em uma ilha remota como uma espécie de reality show de ex-namorados que saem do mar para infernizar os ex-parceiros.
Tive medo do que poderia sair da minha boca se eu a mantivesse aberta por tempo demais, certamente eu diria a coisa errada. Que droga de ideia foi aquela?
Por que não insisti em trazer o pé no saco do Benjamin? Por que não implorei a Christine para ter um acompanhante mesmo que pudesse só fingir que tinha uma droga de companhia, sei lá, um dos padrinhos de Yoongi. Christian Yu, da pós-graduação em Neuropsicologia que vi umas duas vezes na vida e que também estava aqui, ou quem sabe fingir que Hoseok, a partir daquele mágico momento, havia se tornado um possível pretendente aos meus olhos e pudesse me valer disso e me esconder. De mim. Dos meus sentimentos.
Eu poderia beijar uma das madrinhas e chocar os pais de Yoongi, que provavelmente não desconfiavam que éramos o seleto clubinho bissexual da KYU, incluindo o filho deles como membro honorário.
Achei que estava pronta para aquele reencontro, igual nos filmes quando os anos passam e ex-namorados lamentam terem perdido a garota dos sonhos deles, mas aquela garota que se sentia coagida — essa mulher prestes a completar três décadas dentro de cinco anos, que estava colapsando por conta da nudez de um cara — ainda está aqui, apavorada. A verdade era que estava assustada e não sabia o que sentir, esse tipo de concepção errada era totalmente infundada.
E aquele silêncio longo, desconexo, desnecessário e quase infinito me faz querer correr até aquela janela aberta bem ali e pular.
Ele parece tão adulto que me assusta. Bonito como o inferno. Não, infernalmente bonito.
Maldita boca bonita.
Maldito cabelo impecável até mesmo molhado.
E essa droga de piercing no lábio? De quem tinha sido essa ideia diabólica?
Ele volta ao meu campo de visão, dessa vez, parcialmente vestido e então procura a camiseta solta por cima da mesa onde os cartões do quarto estão apoiados e penso em dizer alguma coisa.
— Vamos lá na recepção resolver isso, não quero que a situação atrapalhe a Chrissy e o hyung. — Ele diz e me movo lentamente.
Caminho até a porta e ele continua me acompanhando com os olhos.
— Você vai sair assim? — A voz dele me coloca na rota de colisão com a realidade de novo e só então me dou conta que ainda estou seminua, com um roupão patético cobrindo somente meus ombros.
Puta merda! Eu perdi o controle da minha consciência?
— Eu... espere, eu vou só...
— O tempo que precisar.
Caminho de volta até o banheiro, buscando meu vestido solto pelo chão e tentando vesti-lo outra vez. Não quero encarar meu rosto no espelho, estava com vergonha de mim mesma que a situação inteira estava começando a me deixar insana. E quando volto, ele ainda está com o braço encostado contra a porta, observando a fenda do olho-mágico, distraído com alguma outra bobagem e não parece tão afetado quanto eu, visivelmente, pareço.
— Esse não é o momento mais adequado, mas sabe, tô feliz em te ver de novo. — Ele diz, antes de abrir a porta do quarto, dando espaço para que eu saia. Queria dizer o mesmo, dizer uma série de outras coisas também, mas estou mortificada então apenas evito olhá-lo demais.
Morrer certamente me deixaria mais confortável, mas ainda precisaria trabalhar na segunda-feira.
Caminhamos em silêncio pelos corredores discretos do hotel, desviamos de um carrinho de limpeza como uma dança ensaiada e alcançamos o elevador.
Ainda teria mais um minuto de silêncio profundo e doloroso em um ambiente a sós com Jungkook.
Ele ensaia dizer algo, mas nenhuma palavra é dita, então ele continua batucando o cartão do quarto contra o metal escovado do elevador, enquanto eu finjo que estou em outro plano, uma viagem astral.
Quando as portas se abrem, já avisto Trine dançando perto da piscina, ao lado de uma cascata artificial na área de convivência, girando com um copo na mão e com um véu preso em uma tiara.
As madrinhas estão ao seu redor e reconheço Hoseok pelo par de tênis verde-limão ofuscando as demais pessoas ali.
— Olá, boa tarde. Acho que houve um erro no sistema, eu não sei, mas eu e a gat... esta moça aqui acabamos ficando com reservas para o mesmo quarto. — Jungkook inicia o assunto com a recepcionista que força uma cara agradável.
— Qual o seu nome, senhor? Me deixe conferir outra vez.
— Jeon Jungkook.
Vejo ela digitando seu nome e o meu aparece ao lado, a suíte com a mesma numeração.
— As reservas foram feitas por... Hastings Marjorie, no dia 02 de dezembro. E foram confirmadas também! — A recepcionista exibe o monitor e observamos a fileira de quartos em vermelho, assim como a confirmação de nossas reservas com nossos nomes cadastrados.
— Ah, Deus! Foi a mãe da Christine. — O desespero me abate lentamente.
— Ok, mas você teria como realocar um de nós para uma outra suíte? — Jungkook ainda está barganhando com a recepcionista, mas eu sabia, pelo que Trine havia dito, que o hotel estava com sua capacidade máxima devido aos convidados do casamento.
— Infelizmente não temos mais quartos disponíveis no momento até o próximo checkout, senhor. Posso ajudá-lo de alguma outra forma?
Sim, posso dormir no almoxarifado? Quem sabe neste sofá da recepção aqui ou até ali, nas cadeiras de sol disponíveis ao redor da piscina. Só me mantenha longe deste quarto e deste homem.
— Eu entendo. Vamos encontrar uma maneira de resolver isso, muito obrigado!
Caminhei até onde Hoseok estava, me distanciando um pouco mais de Jungkook, que vinha logo atrás.
— Por favor, me deixe dormir com você! — Me joguei no pescoço dele como se minha vida dependesse de sua resposta.
— Não achei que o seu desejo por mim estivesse a esse ponto, Nonô. — Ele riu.
— Como estava o banho, Jungkook? — Trine perguntou, enquanto continuava olhando pra mim.
Jungkook enfiou as mãos nos bolsos. E riu, envergonhado.
— Ok, sua mãe nos colocou na mesma suíte...
— Nossa, — Trine tomou um gole da bebida — Que grande safada essa sra. Hasting, uh? — E então deu uma risada!
Vou aniquilar Trine antes que ela tenha tempo de dar continuidade a descendência dela.
— Eu posso procurar outro hotel, não tem problema, vou juntar as minhas coisas e vou procurar agora
— Na-na-ni-na-não! — Christine disse, — Você é padrinho do Yoongi, não vai sair daqui. Sabe o que podemos fazer?
—Você... — Trine estava claramente bêbada, seu dedo veio em minha direção quase perfurando meu olho esquerdo - Fica na suíte.
— E esse cabeludo aqui, ô! — Ela apertou a bunda de Jungkook — Vai dormir com o Hoseok. Tudo bem assim?
Hoseok riu.
— Por mim, tudo bem. Mas saiba que esse gostosão bem aqui tá planejando levar algumas gatas ao recanto dele... — Hoseok cutucou Jungkook com o ombro.
Trine revirou os olhos.
— Claro que sim, alguém aqui nessa festa vai querer dar pra você, Hoseok. Confia! — Trine riu de novo.
— Oi, desculpe incomodar, eu não pude deixar de ouvir a conversa... — Heeyeon se aproximou, estendendo a mão para Jungkook. — Sou a Heeyeon, amiga da Christine.
— Prazer, Heeyeon-ssi!
— Então, se não tiver problema, eu posso trocar de lugar com a Eleanor. Ela pode dormir com a Aimee e eu vou adorar dormir com você. — Heeyeon tocou a ponta dos cabelos de Jungkook de forma nada sutil. O silêncio atravessou todos e os olhos mal se moviam. A palavra adorar saiu de sua boca como se fosse um par de mãos prontas para se enfiar nas calças de Jungkook.
A ideia ao vivo fez meu estômago retorcer.
Algo em mim quis gritar, a voz interna que quase disse: "Não, eu quero que você fique comigo!"
— É muita gentileza da sua parte, Heeyeon-ssi. Mas eu não me sentiria confortável, já que a gente se conhece há dois minutos. — Ele se curvou minimamente — Posso dormir com o Hoseok sem nenhum problema, além disso, não quero incomodar mais ninguém com a minha presença por aqui. — Dessa vez o olhar foi direcionado a mim.
Heeyeon sorriu, não pareceu afetada pela resposta. Estava apostando suas cartas, queria Jungkook a todo custo e não me surpreenderia se conseguisse conquistá-lo.
E eu não queria presenciar isso tudo.
— Na pior das hipóteses, você pode dormir no meu quarto com o Yoongi! Mas podemos pensar nisso depois?! Eu preparei drinques pra vocês, eu comprei todos os destilados desse país, eu não quero saber de depressão e coisas pra baixo nessa porra de lugar!
Claramente Christine estava bêbada antes mesmo do pôr do sol, com um ensaio de casamento agendado para dali a três horas.
— Ok, ok, porque você não senta um pouco e eu peço um café pra você? — Falei e ela girou nos próprios calcanhares, descalça. — Eu amo você, sabia? Eu me casaria com você. Eu teria um filho seu, Eleanor.
Entreguei meio copa de vodka a Hoseok enquanto Trine tentava buscar apoio na cadeira de praia. Hoseok esticou o cartão para fora do bolso da calça e entregou a Jungkook.
— Pode levar suas coisas pra lá, aproveita e descansa um pouco.
Ele batucou o cartão contra a cadeira. E suspirou.
— Até mais tarde então.
Jungkook não parecia interessado em conversar e provavelmente estava ofendido, já que não eu não tive sequer abertura para cumprimentá-lo sem um raio de ódio direcionado. Não foi proposital, de forma alguma, mas altamente reativo. De um jeito que há tempos não costumava ser. Acho que tive mais medo do que qualquer outro sentimento, ou simplesmente estava tentando esconder a minha saudade em uma capa mal ajustada de indiferença.
— Você tá bem? — Hoseok sussurrou assim que colocou seus óculos de sol em Trine e sentou no espaço vazio da cadeira de praia.
— Pensei que morreria quando o encontrei... — Coloquei a mão sobre o peito, respirando fundo. — Pensei que ia morrer de verdade. — Meu coração, sem nenhum preparo para a situação, tamborilava forte no peito.
— Você sabe que não vai dar pra evitar ele como vem fazendo nesse tempo, pelo menos, não nesse fim de semana. — Ele tocou o meu joelho, antes de segurar minha mão. — Mas acho que é normal que você se sinta afetada, você disse coisas pra ele, ele disse coisas pra você. Vocês meio que foram um casal. E Nonô, o cara simplesmente lambeu todas as partes do seu corpo, não é como se você pudesse fingir que não... que não o conhece!
Suspirei. Hoseok tinha razão. Não pela parte da língua lambendo partes inomináveis do corpo, mas pelo fato de que tinha dito que amava Jungkook com todas as letras. E fui sincera quando disse. Porque era verdade.
E talvez, só talvez, ainda seja.
— Ele veio sozinho para o casamento, certo? Era a regra, mas será que ele não está...
— Em um relacionamento? Acho que não. Mas sendo bem sincero, já tem uma quantidade considerável de pessoas interessadas pelo que a Trine disse, quando estava sóbria. Ele provavelmente vai passar boa parte do evento sendo coagido a danças desconfortáveis e conversas chatas, então você nem vai perceber a presença dele.
Isso deveria servir de consolo, mas é como um gatilho puxado diante da minha testa.
— É, você tem razão. Não tem nada para eu me preocupar.
Errado. Engoliria meu ciúme com areia da praia.
— Ando acompanhando você todas as manhãs no canal esportivo, sabia? — Seguro o rosto de Hoseok entre as mãos para voltar sua atenção toda para mim. — Você é simplesmente espetacular. Tão sério com esse cabelo lambido. — Passo a palma da mão contra a língua antes de tocar os fios de cabelo dele por baixo do boné, despojadamente posicionado para trás.
Ele desvia, sorrindo.
— Sou o repórter esportivo mais requisitado da emissora, você acredita? É legal ver os estagiários me chamando de sunbaenim com aquele olhar assustado. Eu me divirto demais com eles.
— Não esqueça que você já foi um estagiário que usava camisa polo e sapatênis.
— Não esqueci, por isso é sempre bom torturar jovens almas que estão começando agora no ramo, você sabe, pra endurecer o espírito.
— Ai, credo Hoseok! — Ele sorri.
— Você não imagina o que a Trine montou lá atrás...
— Algo que fere a cultura desse país, com certeza. — Hoseok sorri. — Uma tenda de beckzinho. — Ele sussurra a palavra com uma sutileza engraçada.
— Não brinca, ela... ela não fez isso, né?
— Podemos ser presos aqui! — Hoseok riu de novo. — Por muito menos você pode ir parar no tribunal.
— A Christine é maluca!
— Não sei porque me surpreendo com isso. — Ele jogou o braço ao redor do meu ombro, — Vai ser legal relaxar, como nos velhos tempos.
— Quando a gente soprava fumaça de erva nos nossos travesseiros e a Joohyun achava que era receita de chá de erva doce para a pele.
— O que será que aconteceu com ela?
— Com a Joohyun?!
— É!
— Soube que ela casou, teve dois filhos, você só não imagina com quem... — O suspense teatral de Hoseok me faz rir — Com o bunda mole do Junmyeon!
— Não fode, ela casou com o mala do Junmyeon? E teve pequenas malinhas com o Junmyeon? O universo não deveria permitir essas atrocidades...
— Lembra quando rolavam os boatos que os dois... — Ele gesticulou. Batendo as costas da mão contra a palma da outra.
— Se pegavam no corredor de livros de filosofia! Então era real. Uau! Credo. Eles parecem o tipo de gente que beija com os olhos abertos. — Digo e Hoseok exibe uma expressão de nojo.
— É chocante pensar que gente chata também trepa.
— Gente chata domina o mundo. E são mais felizes que nós, tem mais dinheiro que nós, aproveitam mais a vida do que a gente. — Afastei Hoseok minimamente para olhá-lo nos olhos — E neste momento, qualquer um é mais feliz que eu. — Solto uma risada fraca e Hobi balança a cabeça.
—Senti falta do seu drama.
— Cala a boca, seu panaca! — Trine estendeu os braços, enfiando a cabeça entre nós dois.
— Eu senti falta de você e também de você, sabia? — Ela respirou fundo, os olhos pesados quase fecharam — Eu amo vocês e por mim, nós quatro casaríamos hoje. Eu adoraria dividir uma vida com vocês.
— Christine, você precisa de um banho gelado e de café, urgentemente.
— Não, eu preciso mostrar isso aqui... Isso, isso aqui. — Ela tateou pelo bolso, puxando o celular. Estava lutando para achar uma foto no meio das outras na galeria, até encontrá-la: Yoongi despido, fazendo uma pose de "ok" para a câmera. — Não quero esconder nada de vocês!
— Mas que porra, Trine! — Hoseok empurrou o celular para longe.
— Credo. Meu Deus, eu vou ter pesadelos para sempre agora. — Trine gargalhou.
— É o meu homem. Meu homem. Ah, agora não temos mais segredos. Inclusive, vocês sabiam que eu já dei a minha bun... — Pressionei a mão contra a boca dela. Christine perdia o filtro quando bebia, ou melhor, duvidava da existência deste mecanismo que nos silenciavam nas horas mais impróprias como uma espécie de autoproteção, mas para Christine, algo se desligava no momento que o teor alcoólico dava as caras em sua corrente sanguínea. As verdades mais inconvenientes fluíam como o leito de um rio.
— É, você já relatou essa história em detalhes pelo menos duas vezes. — A afirmação de Hoseok tem seu tom dramático de preocupação.
— É o segundo pênis que vejo em menos de uma hora. O dia já tá perdendo o propósito! — Digo e Hoseok gargalha.
— O segundo? E quem foi... Ohhh, então você e o Tsunderezão...
— Não! Eu fiquei sem saber o que fazer e invadi o chuveiro enquanto ele ainda estava lá. — Hoseok deu uma risadinha cúmplice. Falando assim, em voz alta, soava como uma desculpa barata, poderia igualar as táticas adolescentes de fingir mandar um SMS para o contato errado só para ter algum assunto para puxar — E não me olha assim, eu sei que foi esquisito pra cacete, mas eu fiquei tão nervosa e a Trine estava... bêbada e falou todas as coisas mais inapropriadas que ela podia!
Ela me lançou um beijinho alcoolizado.
— Você é uma grande escrota, sabia? Sua sorte é que te amo. Mas vamos, você precisa de pelo menos um banho gelado antes de deixar a megera pós-ressaca sair de você hoje. — Ela tocou a renda do véu improvisado, mordiscando enquanto olhava para Hoseok.
— Ela adorou isso tudo, eu sei. Ela adorou.
—Tá, agora vamos Mulher-Tequila.
🔱
Quando voltei ao quarto, não havia mais rastro de Jungkook ou dos seus pertences espalhados pelo espaço. Os sapatos, a camisa de botões verde musgo e sua mala, nada mais estava ali. As janelas continuavam abertas e conseguia ver o pôr-do-sol através das cortinas. Precisava descansar, precisava ao menos pensar no que faria nas próximas horas. Em breve teria que encará-lo de novo no ensaio de casamento, estar preparada para as fotos, para as garotas ao seu redor, disputando sua atenção, para lidar com os meus sentimentos e o meu ciúme, porque não poderia negá-lo quando ele era basicamente uma outra pessoa coabitando naquele quarto. Gritando aos meus ouvidos.
O motivo de ter pedido para que Jungkook fosse embora tinha muito mais a ver com o que eu poderia fazer se o tivesse tão perto de mim, talvez agisse como uma completa desequilibrada. Será que seria capaz de me controlar ou seria persuasiva ao ponto de convencê-lo de que tudo bem se apenas fingíssemos que ali era um lugar desconectado da realidade e que poderíamos fazer tudo que realmente quiséssemos?
Mas da última vez, o coração partido havia sido o meu. E eu fui responsável por juntar os meus próprios caquinhos enquanto ele se safou sozinho.
E naquele meio tempo, ocupando o espaço oposto da cama, apoiando os pés contra os travesseiros e respirando fundo outra vez, assistindo as espirais desenhadas no teto parecem se mover à medida que continuo a encará-las, assim como ainda vejo os pequenos corpos de poeira languidamente flutuando no ar e estiro a língua para fora na tentativa de pegá-los, tento não focar nisso.
E daí se estou pensando apenas com o lado da saudade?
Faço uma contagem mental de motivos, tento listá-los em uma linha tênue:
1. Ele me deixou sozinha.
2. Ele não deu a mínima para o meu coração.
3. O beijo lento de Jungkook era o mais gostoso do mundo...
4. Ele sabia bem como me fazer sentir amada...
As razões se embaralham dentro de mim, e quero espernear sozinha no chão desse quarto até ter o que preciso, eu deveria ser uma adulta aqui, agindo com racionalidade, mas esse incômodo, como uma etiqueta grossa arranhando as costas, não me deixa pensar, não me deixa seguir adiante até que me livre dela.
Será que ele ainda pensava em mim daquele jeito?
Eu ainda não o perdoei por tudo que havia feito, nem sei se seria capaz de perdoá-lo algum dia, mas sabia que ali, naquele ambiente, não era o lugar adequado para reaver o passado e colocar as mágoas em evidência. Em um quarto, sozinha, enfiando os dedos na ferida aberta da minha mágoa, eu era capaz de odiá-lo, mas diante dele, eu não era feita de aço.
Eu era uma corrente de algodão, ensopada na chuva.
Precisava lembrar os motivos. Precisava me forçar a lembrá-los.
Era sobre Christine e Yoongi e somente eles. Me manteria satisfeita em vê-lo distante, porque ainda era infinitamente bom simplesmente olhá-lo, só olhá-lo, como quem tenta decifrar uma arte abstrata, olhá-lo até que seus traços desapareçam na tela, que a tinta sugasse seus desenhos para dentro do tecido e seus contornos existissem só nas superfícies das minhas mãos.
Admirá-lo assim, nessa distância segura.
Parece que a minha capacidade racional foi meramente diminuída pelo sentimento, o coração começava a tomar espaço silenciosamente, um pouco de álcool e a dinâmica química disto aqui me colocaria em rota de autodestruição.
Ficar longe da tequila hoje. ✔️
Evitar espaços pequenos, pouco iluminados e com Jeon Jungkook dentro deles. ✔️
Aqui eu até posso jurar que sou capaz de dizê-lo com todas as letras: "Só fique longe de mim", mas quando olhava para ele, essas regras perdiam o seu sentido.
Meu celular vibra sob a mesa de cabeceira e pelo som da notificação desviando minha atenção do limbo em que me afundei, sei que se trata de Benjamin. Provavelmente pedindo desculpas pelo que aconteceu naquela noite, agindo como se eu tivesse sido secretamente a causa do seu comportamento nocivo, mas para minha surpresa, quando checo o nome encabeçando as notificações, mas é Taehyung.
[16:20] Kimzinho 🐯:
Você já está em Jeju-do? Após o fim de semana, passe aqui em Seoul para me ver!
Te espero com um bom vinho
e outra coisa que sei que adora.
A mensagem me fez sorrir.
Taehyung e eu havíamos nos tornados bons amigos. Parceiros de algo muito maior que nós dois. Ajudar aquelas garotas deu um novo senso de direção para as nossas vidas e expor a sujeira de uma universidade renomada poderia ter sido um tiro no pé, se não tivesse sido brilhante.
A ideia do coletivo foi toda de Taehyung, apesar dele ser o único membro masculino da banca, mas que em determinados ambientes, tratando-se de um país conservador como a Coreia, é a figura que consegue ser ouvida. Era um advogado bem sucedido e respeitado, isso valia muito dentro de um universo predominantemente masculino, quando nossas vozes foram ignoradas por tempo o suficiente.
Faço um lembrete mental para responder sua mensagem mais tarde, quando estivesse equilibrada outra vez.
A mensagem de Hoseok surge no topo na barra de notificações antes que coloque o celular de volta ao carregador.
[16:23] hobison 😈:
Vou precisar de ajuda com a gravata,
posso passar aí mais tarde?
[16:25] eu:
claro, também preciso
de alguém para ajustar
as fitas o meu vestido!
Me antecipo para o banho e o processo excruciante de tirar a roupa de novo, no mesmo espaço de meia hora atrás ainda me causa pânico. Sentia a presença dele ali, seus olhos me avaliando, imóveis, a vibração ainda oscilava no ambiente como se a qualquer momento, se me distraísse por tempo demais, ele apareceria ali outra vez, com seus sinais de fogo e sua presença perigosa. Dessa vez, garanti que a porta estava bem trancada.
Deveria tomar um banho rápido, me distrair com qualquer outra coisa: O que poderia fazer em meu cabelo hoje? Quais brincos usar? Quanto tempo aguentaria com aqueles saltos antes de ficar descalça para dançar com Hoseok?
Sorrio ao lembrar do quanto costumava ser divertido quando passávamos todo aquele tempo juntos na faculdade, nos fins de semana de beijos trocados com gosto de bebida e danças sem sentido sob o teto de alguma outra estudante.
Fechei os olhos antes de enxaguar o xampu com essência de abacate e manga que mamãe havia feito para mim, sem todas aquelas químicas que ela insistia que fariam mal para o meu corpo a longo prazo.
O sabonete de Jungkook continuava ali, esquecido no box e tive a péssima ideia de levar a embalagem até o nariz, deixando o cheiro suave de banho recém-tomado, da sua pele molhada, invadir a mente de novo.
Saia desse lugar, Eleanor. Saia daí agora!
Tentei desviar o foco colocando a embalagem de volta e repassando mentalmente o que precisava fazer ao terminar o banho: secar o cabelo, separar o meu vestido, experimentar os sapatos, escolher os brincos, me maquiar, preparar a minha bolsa, agir como uma adulta.
Agir como uma adulta. Agir como uma adulta. Agir como uma adulta.
Assim que termino o banho, coloco uma playlist para tocar enquanto me preparo, inundar minha mente de música era a minha tática para não pensar no que não deveria, o meu complexo de Penny Lane, como a personagem de Quase Famosos, surgia naqueles momentos em que me misturava as canções, as letras e melodias para fugir do mundo real.
Embora eu estivesse mais para um William Miller e meu excesso de senso de realidade naquele momento.
A primeira da lista escolhida é literalmente Lavender Haze da Taylor Swift e quase sinto a vibração em meus dedos enquanto acompanho a melodia.
— Ok, com ou sem gravata? — Hoseok entra, fazendo pose vestido em um terno totalmente preto, mas sem nenhum sinal de camisa por dentro.
— Primeiro, uau! E segundo, se você está sem camisa, qual seria a função da gravata?
— Sei lá, me deixar com um ar de cachorrão sofisticado? — Ele faz uma pose e me olha por cima do ombro.
— Você tá lindo! — Caminho ao redor dele, observando seu cabelo penteado para trás com fixador. — Muito lindo.
— O Tsunderezão gostou também, disse que eu parecia um vocalista de banda de rock. — Não pude deixar de revirar os olhos.
— É, então ele tem razão. — Ajusto os botões do seu blazer enquanto ele se encara no espelho que separa os dois ambientes do quarto. — Mas por que veio tão cedo?
— Você disse que ia precisar de ajuda com o vestido, aí imaginei que para colocar as sandálias também, ou se tiver alguma emergência, estou aqui sendo, você sabe, o seu amigo mais gostoso e útil.
E ele meteu essa?
— Ah, sei. — Olhei para ele por cima do ombro enquanto abria a mala — As madrinhas não vão se aprontar no meu quarto, se é isso que tá esperando.
Hobi gargalhou.
— Bom, é uma pena! — Ele colocou os óculos de sol de armação escura de volta. — Posso colocar algo pra assistir enquanto você se prepara?!
— Dá uma olhada no que tá disponível no streaming. — Caminhei até a cama começar a me vestir com as peças íntimas enquanto Hoseok se distraía com o controle remoto. — Será que tem O Grande Dragão Branco aqui? — Ele virou em minha direção — Uh, que bunda bonita!
Nem parece que essa belezinha estava prestes a viver um colapso nervoso!
— Continua obcecado pelo Jean-Claude Van Damme? Achei que isso tinha acabado na época da faculdade.
— Você sabe que é meu filme de conforto. — Ele exclama como se fosse um crime que não soubesse do seu amor por filmes com lutadores de arte marciais brancos e conceitos racistas de que alguém nascido no ocidente possuía uma profecia de iminente salvador.
— A primeira bunda masculina que vi na vida foi a do Jean-Claude em Soldado Universal, minha mãe nem sonhava que ficava acordada até tarde pra assistir esses filmes. — Disse e Hoseok gargalhou.
— É uma bela primeira bunda! Acho que a minha primeira bunda foi em Romeu e Julieta. Uma primeira bunda problemática!
Ele puxou os cantos da boca para baixo antes de se livrar das meias pretas e caminhar até a cama.
— Ok, me ajuda com o vestido. — Estiquei o cabide para Hoseok, que sustentou a peça pelas alças delicadas e fitas que cruzavam nas costas.
— Está prestes a atingir o ponto fraco de um certo guerreiro, Eleanor.
— Ah, é? Como se eu desse a mínima sobre isso! — E dava! Hoseok deu uma risadinha curta, talvez porque no fundo soubesse que aquilo soava como uma tentativa patética que ele não discutiria, ninguém estava disposto a aguentar mais disso.
— Agora é só ajustar as fitas, pode puxá-las como um corselet.
Hobi enfiou as mãos enormes entre as fitas, posicionando delicadamente cada uma em seu lugar enquanto eu encarava seu rosto concentrado através do espelho. O tom de lavanda do vestido contrastava com a cor escura do terno dos padrinhos, uma combinação bonita e que equilibrava as cores favoritas de Trine e Yoongi. Ainda estava admirada que Christine não se casaria de preto, embora soubesse que uma tentativa existiu, mas foi desaprovada pela sua mãe.
— Você está absurdamente gostosa, Eleanor! Mais do que a cota normal extrapolada — Ele balançou a cabeça, puxando os óculos até a altura dos cabelos. Sorri.
— Ótimo, é disso que preciso hoje. Preciso me sentir confiante.
🔱
Meu corpo inteiro tremia. Um arrepio corria à espinha e as borboletas no estômago estavam a ponto de saírem dali por meio de uma diarreia incontrolável. Serem literalmente ejetadas do meu corpo em um jato de merda. O enjoo que a ansiedade causava ainda era assustador e para ser bem honesta, não sabia identificar quem era o responsável por desencadear a emoção; a situação, a hipótese ou o fato. Tudo que era inevitável, imprevisível e essa infinidade de possibilidades como a droga de um quebra-cabeças impossível de decifrar, onde o resultado era rigorosamente o mesmo.
Quem eu queria enganar?
Mas para ser honesta, não faço ideia de como deveria me comportar, de qual a ação escolhida para receber em troca, em sua reação imediata. A sensação desesperadora corre pelo peito e me vejo outra vez adolescente, fugindo pelos corredores da escola, impossibilitada de olhar nos olhos do algoz (um garoto franzino e de sorriso metálico pelo qual era apaixonada logo depois de Jimin).
— Todos estão esperando lá embaixo, perto do hall, vamos logo. Devemos entrar todos juntos. — Hoseok disse, ao entrar pela terceira vez no quarto para checar se finalmente estava pronta, mas dessa vez, estava apenas pensando na possibilidade de engolir o enxaguante bucal que ainda tinha na boca para começar a festa parcialmente alcoolizada. Isso me daria uma dose de coragem. Caramba, eu havia jurado que me manteria longe da tequila hoje!
Ergui a cabeça e encarei meu rosto no espelho outra vez antes de cuspir o conteúdo na pia.
São só algumas horas, Eleanor. Depois você pode se enfiar nesse quarto até amanhã e fingir que você não existe por 12 horas.
Tento negociar comigo mesmo enquanto limpo a boca para aplicar o lip-tint nos lábios.
— Eleaaaaanor, você tá me ouvindo? Estamos esperando você!
A cabeça de Hobi surgiu na porta.
— Tô quase pronta, pega minha bolsa na cama. Vê se coloquei meu celular, o cartão do quarto também... — Hobi exibiu a alça brilhante da bolsa de festa decorando o ombro do terno caro. — Tá tudo aqui, agora anda logo, vou chamar o elevador.
Caminhei para fora do banheiro depois de mergulhar em uma nuvem de perfume e corri para fora. A tapeçaria do corredor abafava os sons agudos do meu salto fino contra o piso, já podia ouvir a música tocando na área do evento, uma crescente. A música era uma versão ao vivo de I'm Not In Love do 10cc, I'm not in love, so don't forget it, It's just a silly phase I'm going through, onde o eu-lírico contornava uma situação hipotética de paixão, afirmando mais para si mesmo do que para o outro que não estava apaixonado, quando claramente, estava perdidamente envolvido. Era uma das canções favoritas de Christine.
Assim que pisei no elevador, observei meu reflexo no espelho outra vez. Parecia bem. Tinha dado um jeito na franja patética e na ideia mirabolante de parecer um pouco mais moderna tendo uma, mas o coque baixo que havia feito tinha equilibrado o visual ao ponto de deixar minha aparência elegante.
Hoseok cantarolava a canção tocando na festa enquanto os minutos cruciais do quarto andar até o térreo me fazem querer apertar o botão vermelho de emergência e nos manter ali, neutros, distantes, inacessíveis.
Provavelmente mataria Hobi no processo de claustrofobia.
Quando as portas se abrem, avisto duas madrinhas sentadas no pequeno sofá branco da recepção, tomando drinques aguados enquanto gargalham. O mundo parece normal, nada foi verdadeiramente afetado nesta realidade aqui. Christian Yu está recostado contra o apoio do sofá acompanhado a conversa de fora, Aimee está gargalhando sobre algo que talvez não seja tão engraçado assim, mas parece que quando finalmente dou as caras no hall, todos parecem aliviados pela minha presença.
— Aí está ela!
Jungkook é o último que vejo. Recostado contra o balcão da recepção, olhando através das flores que decoram a entrada onde a festa acontece, as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça social que parece feita perfeitamente para o seu corpo, e então, ele lentamente olha em minha direção por cima do ombro. Queria ter tempo o suficiente para desviar o meu olhar, mas era ele que estava buscando esse tempo todo. Era ele que queria que me visse assim.
Jungkook sorriu.
Ah, caramba!
Por que ele tem que ser tão bonito assim?
— Podemos ir? Vocês já viram quem são os pares de quem? — Aimee comentou, sacando o celular para checar o trecho literário que seria utilizado como uma espécie de esquema de enigma para encontrar o seu par. Amor moderno e outras sutilezas de pessoas cultas como Yoongi e Christine. Sabia que ela estava planejando aquilo desde março do ano anterior, com seus livros favoritos.
— A Trine entregou aquelas paradas com trechos de livros que se complementam, preciso checar o meu... — Hoseok disse, buscando o celular.
Minhas mãos tremiam tanto que mal conseguia abrir a bolsa para alcançar o meu aparelho, lembrava vagamente que o meu trecho se tratava de O Retrato de Dorian Grey, na base do convite estava transcrito um pedacinho grifado em lilás.
"Porque considero que influir sobre uma pessoa é transmitir-lhe um pouco de sua própria alma: esta pessoa deixa de pensar por si mesma, deixa de sentir suas paixões naturais."
— Bem, estou com um trecho do Oscar Wilde. — Meus olhos correram até Jungkook, que continuava me olhando do outro lado do hall, sem desviar.
— Aqui, sou eu. — Christian respondeu, erguendo a mão. — "Suas virtudes não são mais suas. Seus pecados, se houver qualquer coisa semelhante a pecados, serão emprestados." É isto, não é?
— É, acho que você é o meu par hoje. — disse e ele sorriu. — Bem, sorte a minha.
— Sou a Eleanor. — Estiquei a mão e ele segurou, deixando um beijo no dorso.
— Christian. Mas todo mundo me chama de Ian. Você é americana, certo? — Ele ofereceu o braço, segurando minha mão ao redor dele educadamente, fiz que sim com a cabeça. — Sou de Sydney, meus pais são coreanos, então voltei para cá para o doutorado.
— Ah, um garoto-canguru! — Pelo amor de Deus, cala a boca!
— Não ouvia isso há anos, mas é, sou a singela porcentagem de garotos-canguru que vivem na Coreia.
Jungkook nos acompanhou com os olhos enquanto Heeyeon ajustava a gravata dele.
As mesas dos padrinhos ficava separada em um lugar acessível para tudo que precisássemos se tratando de álcool, o bar ficava a exatos cinco passos de nossa mesa, estávamos diante do palco do karaokê e ao lado da pista de dança, as táticas nada sutis de Christine Beulah Min Hastings de nos colocar na mira de uma vergonha iminente, um campo minado de possibilidades que estavam disponíveis depois que os nossos filtros sociais, nossa moral e a nossa dignidade fossem solvidas por todos os destilados deste país. De quebra, tínhamos guirlandas brilhantes em nossas cabeças. Uma espécie de culto a algum deus grego ou seja lá o que rolaria aqui depois que boa parte dessas pessoas voltassem aos seus respectivos quartos e uma espécie de culto a Dionísio desse início.
A extensão da mesa permitia que todos sentassem com seus possíveis pares, algo que Christine havia pensado com Yoongi para que de alguma forma ninguém se sentisse deslocado, por alguma armadilha do destino, Jungkook e Heeyeon haviam sido par um do outro e estavam sentados juntos no canto da mesa, enquanto ele bebericava um pouco de whisky e ela, shots de soju enquanto falava animadamente para ele.
Hoseok e Aimee estavam sentados ao lado direito de Christian, Hobi sussurrando alguma coisa no ouvido dela, enquanto ela revirava os olhos e sorria para ele, a mão tocando seu ombro. Não sabia como o charme barato de Jung Hoseok funcionava, mas parecia ser infalível naquele quesito.
Ok, Eleanor. Só mais algumas horas e você vai estar segura no seu quarto quentinho, usando um pijama confortável, ocupando todo o espaço da sua cama e assistindo algum filme que te cause uma espécie de diarreia mental até você não precisar mais pensar neste dia. Você consegue!
Christine apareceu em seu vestido vermelho alguns minutos depois, sorridente e descaradamente bonita.
— Sei que estão animados para encher a cara de graça aqui, e é claro, eu quero isso mais do que vocês, gastei uma nota para ver todo mundo feliz, mas antes de dar início ao Yoontrine, Chrisoongi Festival, eu queria dizer algumas palavras, agradecer a algumas pessoas também, vamos lá, é uma lista longa, hein? — Trine iniciou os agradecimentos enquanto Yoongi estava ali, ao seu lado, sorridente e acenando para algumas pessoas, os sorrisos raros que haviam se tornado lenda, já que ele fazia questão de exibir sua felicidade e Christine parecia a materialização dela.
— Lembrei da foto. — Hoseok sussurrou em meu ouvido, apontando para Yoongi e quase engasguei com um gole de vinho.
— Você não vai fazer isso aqui, não é? Eu já tinha esquecido!
— Eu não posso passar por essas experiências traumáticas sozinho, nós dividimos os mesmos neurônios, você precisa sentir também.
Ele riu.
— Aos padrinhos e madrinhas... — Trine começou e voltamos nossa atenção para ela. — Gostaria de agradecer pela presença de todos, a minha melhor amiga ali, sim, aquela mulher linda sentada bem ali, por favor, Eleanor, fique de pé. — Tentei não tropicar por cima de Christian, enquanto ficava em pé no pequeno espaço da cadeira. — Ela atravessou continentes para estar aqui comigo, essa é a mulher mais especial que já conheci. Assim como o Hoseok, por favor, amigo, vocês dois, venham aqui. — Hobi ofereceu a mão para me ajudar a dar a volta na mesa e então alcançar o palco improvisado, dali, não poderia escapar dos olhares de todos, muito menos de Jungkook.
— Nós passamos por muitas coisas juntos, a Eleanor e eu somos de um país diferente, com uma cultura diferente e fomos acolhidas aqui ainda muito jovens, duas crias do exército que se encontraram no momento exato da vida e sinto que o Hoseok e o complemento de toda nossa inserção. Isso aqui, para mim, é além de um casamento e se minha alma estiver dividida em milhões de pedaços que pertencem a quem eu amo, essas pessoas aqui tem a maior parte dela. — Estava prestes a chorar, tinha mantido a concentração para não arruinar o que havia feito mais cedo e o trabalho que havia dado de manter aquela maquiagem intacta.
— Eu amo vocês, eu amo vocês para sempre.
-— Agora vamos encher a cara! — A música voltou a tocar, algum indie animado como Tame Impala enquanto Trine puxava Yoongi para um beijo discreto.
Desci os degraus do palco tentando manter a fenda segura para que nenhuma parte do tecido acabasse enroscada nos meus saltos como havia feito na última meia hora, precisava de uma consciência extra para usar malditas roupas como aquelas.
Só tive tempo de erguer a cabeça minimamente depois de confirmar que estava com os dois pés firmes no chão outra vez e Jungkook estava de pé, diante de mim outra vez.
— Quer dançar? — Sua boca se movimentou minimamente e a batida da música não me deixou ouvi-lo bem, enquanto sua mão pairava ao meu redor, pronto para me segurar caso eu despencasse dali.
— O quê? — Ele aproximou o rosto — Perguntei se queria dançar! Comigo!
Observei a nossa mesa por cima do seu ombro, Christian estava distraído no celular, Heeyeon admirando a bunda de Jungkook enquanto ele estava de costas, vulnerável para jamais perceber que ela estava prestes a mordê-lo se pudesse, e eu estava ali, em uma linha de fogo cruzado.
— E a sua acompanhante?
— Por favor, eu explico tudo!
— O-ok. - Ele segurou a ponta de minha mão, me puxando para onde um grupo pequeno de outras pessoas dançavam em pares. Heeyeon continuou acompanhando nós dois com o olhar, estava vivendo um episódio de escapismo. Jungkook se aproxima tão devagar que tenho medo do que posso fazer nesse meio tempo, sua mão desliza em minha cintura, um toque quente que ainda reconhecia, ainda causava a mesma sensação boa de antes. Não deveria continuar tão consciente de sua mão ali. Nem da vontade que tinha de enfiar meu nariz em seu pescoço e sentir seu cheiro mais de perto. Aqueles detalhes me levavam a lugares sombrios e desejos que seriam mais difíceis de evitar se ele estivesse a cinco centímetros do meu rosto.
Minha boca está seca, minhas mãos geladas e tenho medo de me fragmentar.
São só mãos.
A ponta de seu mindinho se enrosca em uma das fitas enquanto ele me aproxima um pouco mais do seu corpo. Continuo olhando para sua gravata, profundamente encarando o padrão do tecido lilás como se tivesse algo interessante para me contar naquele meio tempo.
— Essa garota tá começando a me assustar... — ele sussurrou enquanto mantinha os olhos acima da minha cabeça, olhando na direção do palco.
— Quem? A Heeyeon?
— É! - Ele riu — Ela simplesmente... — ele curvou o rosto para baixo, me olhando dessa vez — ela simplesmente meteu a mão no meu pau por baixo da mesa.
— Dentro da sua calça?
— Não, ela deu uma apalpada generosa. — Jungkook riu, constrangido. Copiando o movimento no ar. — Eu acho que ela se soltou depois dos shots de soju, só tem vinte e cinco minutos que estamos aqui.
— Ela já estava interessada há pelo menos umas 7 horas ou você não percebeu? — Ele desviou o olhar, já havia notado. Óbvio. — Não que isso justifique ela ter metido a mão no seu... nas suas calças. Nada justifica isso! Você deveria ter dito a Trine, deveria ter gritado para todo mundo ouvir... Quem essa garota pensa que é?
Jungkook respirou fundo, girando meu corpo ao redor dele seguindo o ritmo da música.
— De qualquer forma, obrigado por ter aceitado, gatinha.
— Não me chame de gatinha aqui... — Sussurrei, colocando a mão contra a sua boca.
— Por quê? — Ele seguiu o mesmo tom, como se cantasse a letra da mesma canção.
— Não quero que ninguém escute e deduza... algo.
Ele dá aquele meio sorriso que não parece malvado, porém mostrava uma espécie de esperteza que era só dele, como se o resto do mundo fosse um conjunto de idiotas que ele tinha na mão.
— Deduzir o quê?
— Qualquer coisa que não é verdade. Presumir que somos... algo que não somos.
— Além de que... eu achava que esse apelido era uma coisa só nossa.— O modo como a palavra sai faz com que me sinta patética. Nossa. Como se ainda tivéssemos algo a compartilhar. —Digo, do acordo, do que...
Ele assente em antecipação.
— É que o gatinha só deve aparecer quando for acompanhado de um motivo, certo? — É, tipo um soco no meio dessa sua cara panaca!
— Eu não estava falando disso! Você poderia ao menos...
— É brincadeira, você não precisa ficar tão tensa. Eu tô brincando! — Revirei os olhos.
— Você continua inegavelmente irritante, sabia? — Eu afirmo, outra vez, somente para deixá-lo ciente do que ainda pensava,
— Oh, parece que alguém acordou de calcinha virada por aqui... — Parecia muito satisfeito consigo.
— Rá, não pense que você tem influência sobre isso. — E tinha.
— Ok, e sobre o que eu tenho influência?
— Além do fato de me fazer ter vontade de beber veneno, acho que em nada!
A mão dele se moveu lentamente em minhas costas, tocando as minhas costelas, cedendo as fitas do vestido como as cordas de uma guitarra.
— Me desculpe se andei causando esses sentimentos ruins em você. — Seus olhos estavam fixos no meu rosto outra vez, evitei olhá-lo de novo. — Não foi intencional.
— Olha Jungkook, eu acho que deveríamos dar uma trégua um ao outro pelo menos nos próximos dias, sabe.
— Um ao outro? — Ele riu. Revirei os olhos. — Você precisa colaborar com o fato de ser um pouco menos irritante, não somos mais dois universitários irresponsáveis. Além disso, eu queria me desculpar pela maneira que agi com você mais cedo... — Virei meu rosto para o lado oposto enquanto falava, Heeyeon continuava nos observando. Na verdade, observando Jungkook, seus olhos analisavam milimetricamente todos os os seus detalhes e sabia que estava pensando no que poderia fazer se tivesse-o só para ela, em algum lugar sem tanta gente ao redor.
O pensamento que tive não foi nada feminista. Não poderia culpá-la, ela não sabia de nada. Não tinha como saber.
— Sobre o quarto, não se preocupe... Não tiro sua razão em não me quer por perto. Eu não julgo. — Minhas decisões partiam de premissas particularmente egoístas, e não me orgulhava delas, mas não abriria mão de me sentir segura se isso significasse, de uma forma ou de outra, mantê-lo distante dos meus pontos fracos e expostos.
— Não é isso, — comecei, tentando pensar em algo que não desencadeasse uma frase errada, com sentido dúbio ou mirabolante demais ao ponto de perder o sentido. — É só que tudo seria estranho. Dividir a mesma cama. O mesmo espaço. Entende?
— Entendo. Mas você só não queria por perto ou pensou que eu tentaria alguma coisa?
— Sei que não faria nada, estava temendo mais pelo que poderia fazer com você.
Merda!
— No sentido de... eu quero dizer, sei lá, te enforcar enquanto você dormia.
Jungkook continuou em silêncio, observando meu rosto de perto. Ele não havia comprado essa e quem compraria?!
— Ok, se continuar me encarando assim você vai acabar fundindo o meu crânio, sabia? — falei, sem desviar o olhar da cantora que havia iniciado uma versão mais lenta de Kill Bill da SZA — Ou ter uma hemorragia nasal, sei lá.
Quando a última música tocou, depois do silêncio constrangedor e do meu comentário inapropriado, não tivemos escolha a não ser voltar para a mesa.
Christian estava conversando animadamente com Hoseok, enquanto Aimee seguia pendurada no pescoço de Hobi e sabíamos bem onde aquela noite terminaria. As taças de vinho começaram a ter gosto de possibilidades e a noite passava diante dos meus olhos como uma criança hiperativa depois de uma generosa colherada de açúcar.
Tudo isso era culpa dele. Culpa de Jungkook.
Poderia abrir um zíper invisível em minha pele e colocar para fora o meu coração e os sentimentos que nunca foram embotados, nem mesmo pelo tempo distante. Porque puta merda, ele tinha que ser tudo isso. Tudo isso na porra de um homem. O homem que eu ainda amava tanto ao ponto de sentir meus músculos tremerem como as cordas de um violino afinado enquanto ele me encara do outro lado da mesa, folga a gravata e sorri como se eu fosse sua nova amiga recém-conhecida. Como se sua maldita boca não tivesse marcado cada centímetro da minha pele suada. Tracejada como o mapa de Seul; nos pontos cheios de correntes elétricas, choques térmicos, fios condutores pelas linhas que ele conhecia de olhos vendados.
Você não vai poder me deslamber se é o que está pensando!
Ah, caramba! Estava bêbada. Estava bêbada, sim!
Sabia que se deixasse Jungkook me tocar de novo, me condenaria perpetuamente por uma culpa com gosto bom na língua. Doce e marcante. Não seria capaz de parar de novo. Porque, na verdade, eu nunca fui. A distância me manteve segura, enjaulada, afastada. Quem me manteria a salvo dele agora?
— Nonô, vem cá, precisamos que arraste esse bumbum bonito até aqui para uma foto. — A mãe de Trine gritou e assenti, caminhando até onde todos estavam começando a se reunir. Incluindo as outras madrinhas ao redor de Jungkook e Hoseok.
— Os padrinhos, por favor, todos juntos.
Segurei a taça de vinho com a outra mão, me aproximando de Hoseok. Sorri forçadamente assim que o flash foi disparado. Perder o controle dos músculos do rosto é apavorante. Precisava não deixar meus olhos com o aspecto de embriaguez que sempre tinham quando passava do ponto. Foi nesse ponto crucial que a coisa toda desandou.
O vinho escorreu e foi facilmente absorvido pelo tecido da camisa de Jungkook.
— Meu... Nossa, Jungkook, me desculpe! — repeti, não sabia sequer o que fazer com as mãos.
— Tudo bem, tudo bem... eu só preciso mesmo de um guardanapo, eu acho. — Quatro mãos estenderam seus guardanapos de pano em direção a ele.
— Tem um lavabo ali atrás, você deveria limpar isso antes que seque. — a senhora Hastings disse, indicando o caminho pelo lado esquerdo da pista de dança.
— Eu te ajudo com isso. — falei, empurrando Jungkook na direção das portas laterais. O corredor estava vazio quando cruzamos, o silêncio desconfortável projetado no ambiente em alto e bom som. Conseguia ouvir o som dos meus saltos contra o piso.
— Acho que é aqui — Abri a porta do lugar minúsculo, acendendo a luz. Ensopei uma toalha disposta ao lado da torneira e deslizei por cima da mancha que havia se dissipado um pouco. Aquela camisa não parecia barata, provavelmente teria o preço do meu aluguel levando em consideração o novo estilo de vida de Jungkook.
— Você prefere que eu tire? — ele perguntou, encostando a porta para fechar e tirando o terno.
— É, é, pode ser.
De costas, Jungkook desabotoou a camisa social, enquanto eu, invasiva, estranha e em uma posição totalmente acusatória, continuei observando sua movimentação pelo espelho. Prendi a respiração quando vi o de novo o desenho crescente em suas costas, deslizando até o quadril e unificando-se a ponta da antiga tatuagem que conhecia bem.
Ele estendeu a camisa para mim, e continuei o processo de esfregá-la com ajuda da toalha. O espaço inteiro estava absurdamente quente.
— Obrigado por me ajudar. — disse ele, ajustando o relógio ao pulso. Parecia elegante, mais velho, mas algo ainda remetia a essência de vilão de filme adolescente. Até mesmo no modo como havia penteado o cabelo. Engoli em seco.
— A culpa foi minha, não precisa agradecer.
O pequeno objeto preso ao seu mamilo me fez desviar o olhar daquela direção. As pontas afiadas de um piercing apontavam para direções opostas. Suas mãos estavam encostadas contra a pia, abertas, observando toda a minha ação. Meu rosto estava em chamas. Se ele se aproximasse demais, saberia. Seria capaz de sentir a quentura que escapava de mim.
— Tá tudo bem? Olha não precisa se preocupar, eu posso muito bem buscar outra camisa lá em cima...
— Desculpe, eu acho que talvez tenha arruinado sua camisa cara. Mas eu posso pagar, é só me falar quanto pagou e eu posso... — Fazer um empréstimo para comprar uma camisa social Balenciaga.
— Você não precisa pagar nada, foi um acidente... — Ele tocou minha mão, alcançando a toalha úmida que inutilmente continuava a esfregar na camisa — Eu odiava essa camisa mesmo.
Seu braço nu raspou contra o meu ombro e encarei o espelho para olhá-lo, enquanto seus olhos continuavam mirando a lateral do meu rosto, cada vez mais perto.
— Acho melhor você voltar pra festa, eu não tô muito legal, acho que vou para o meu quarto. E você, hum, tem muita gente ali que daria um braço pra te ver assim, com tudo... isso aí a mostra. — Minhas mãos deslizaram no vazio, simulando o espaço do seu corpo.
— Você não quer ajuda para subir?
— Você vai me carregar no colo até o quarto?! — Era para soar como uma piada, mas pelo meu nível de embriaguez, talvez tenha soado grosseiro. Sorri. — Eu agradeço, mas a ideia de ser erguida no seu colo para mim parece a iminência de uma náusea.
Sua língua tocou a parte interna da bochecha.
— Tudo bem. Você parecia gostar, por um tempo. Ainda lembra disso?
Pior de tudo era me sentir assim, rendida. Porque trazia à tona tudo que achei que tinha me livrado com o tempo. Essa vontade estranha de ser sua. De que um pronome possessivo encabeçasse toda oração que saía de sua boca. Minha, minha, minha. Queria longe ao mesmo tempo que sentia essa falta de tê-lo por perto.
E sim, eu ainda me lembro. Esta é a pior parte. Eu ainda lembro disto tudo.
A expressão de confusão de Jungkook me deixa constrangida. Talvez ele realmente não tenha dito o que pensei que diria. Mas eu estava exatamente com o pensamento nisso.
Droga, como ele poderia ter ficado ainda mais bonito? Inferno!
— Não, não lembro. E não faço a mínima questão de me esforçar para refrescar a memória, se quer saber. Agora tenha uma boa noite, Jeon Jungkook!
Arremessei a camisa ensopada no peito dele antes de abrir a porta do lavabo e caminhar pelo corredor na direção dos elevadores.
Tonta o suficiente para cair aqui e o mundo não parar mais de girar e girar.
Desde quando os elevadores tinham escadas para entrar?
🔱
Tomo um banho gelado antes de ir para a cama vestida naquilo que gosto mais: minha camiseta do Stillwater e um moletom quentinho. Escuto o som da festa rolando lá embaixo, mas já havia gastado toda a minha desenvoltura social em conversas passivo-agressivas com Jeon Jungkook e só precisava, naquele momento, de um café quente e ir para debaixo das cobertas.
Ligo a TV e deixo um programa noturno rolando enquanto apoio os pés contra a cabeceira e continuo encarando o teto outra vez. Será que Jungkook teria ido para o quarto de Heeyeon com ela? Bem, ela estava disposta a fazer o tipo de coisa que ele adorava fazer.
Continuava sentindo a sensação de suas mãos em minha cintura, enfiando a mão dentro da camiseta somente para reaver a mesma quentura. Ali, naquele ponto.
Seus dedos quentes tocando bem aqui, no mesmo lugar que ele costumava pressionar antes de me beijar devagar, ou quando sutilmente dizia, com sua voz colidindo em meu ouvido.
"Me deixa te foder assim..."
Se sua mão deslizasse um pouco mais para cima...
O arrepio corta minha respiração.
Foco, Eleanor. Esse aperto sutil entre as suas coxas não vai dar em nada. Tudo bem sentir saudade aqui, dentro desse quarto, mas não deixe isso ir muito longe, cruzar a porta e ir direto para o quarto ao lado.
Alcancei o celular outra vez, abrindo as mensagens de Taehyung para respondê-lo.
[23:45] eu:
posso pensar no seu caso
se vou ser recebida com um bom vinho e
essa outra misteriosa coisa que supostamente adoro,
pode contar comigo!
Solicitei o serviço de quarto para pedir um café expresso, queria voltar a reagir antes de dormir, acordaria com uma ressaca impossível de curar se ainda estivesse parcialmente bêbada quando relaxasse completamente. Seria o tempo de assistir um filme qualquer, comer alguma bobagem e então, dormir até o horário do próximo evento no dia seguinte.
Pelo menos fiquei longe da tequila, um bom começo até agora.
O barulho repetitivo contra a parede me deixou em alerta. Ok, o quarto ao lado era justamente o de Hoseok. A porta estava a cerca de dez passos de distância e aquilo só poderia ser o que estava imaginando que era. Objetos caindo no chão e risadinhas, uma conversa baixa e não penso duas vezes antes de colocar o meu ouvido contra a parede na tentativa de entender.
Os sons diminuem, pelo visto deve ter sido uma visita rápida.
A campainha do quarto toca e assim que abro, o rapaz sorri, segurando uma bandeja com o meu café.
— Seu café, senhora Jeon. — Só pode ser piada!
— É Greene! O meu sobrenome é Greene. Tipo, Green mais com um E no final. — Ele checa a ficha e vejo o sobrenome de Jungkook diante do meu nome. Ótimo. Era uma conspiração universal.
— Tudo bem, deixa pra lá, obrigada de qualquer forma! Tenha uma boa noite. — Ele se curva minimamente e empurra seu carrinho em direção a porta seguinte.
Aproveito o tempo para rever minhas anotações para a análise do álbum do Arctic Monkeys, precisava de uma review até a sexta e tinha escutado aquelas canções pelo menos uma centena de vezes, gostava do modo como as letras tinham amadurecido junto às vivências dos integrantes, algo que geralmente acontece com músicos de longa data, mas ainda achava engraçado como o AM, lançado há pelo menos dez anos, conseguia conversar com a maioria das pessoas de todas as idades. Aquelas letras ainda mexiam com meu emocional, ainda me levavam de volta ao início do curso de Jornalismo, as noites silenciosas na biblioteca de KYU e também, em alguns momentos com Jungkook. Tenho certeza que em uma dessas noites que estive no dormitório, I Wanna Be Yours tocou em uma das playlists dele. Lembro de como ele sussurrava as letras enquanto me beijava, de olhos fechados, I wanna be your setting lotion, hold your hair in deep devotion...
Mas The Car também conversava com minha versão adulta, assim como as melodias pareciam um pouco mais solitárias e menos entusiasmadas com alguma espécie de escape da realidade dentro de um corte temporal como o AM soava. Alguém preocupado com as meias até os joelhos que uma garota usava, não é o mesmo eu-lírico que sugere ter um coração amargurado o suficiente para entender que o que ambos tem é casual, não será do feitio deles se envolver sentimentos.
Gostava dos sons de jazz, da sensação de noite solitária em um carro com bancos de couro, dirigindo plenamente pela cidade, ao contrário da ideia de uma festa lotada onde dois jovens escapam para um quarto qualquer para se desligar do mundo inteiro enquanto estão juntos.
Anoto as ideias que me vêm à mente no meio que a música percorre meu imaginário outra vez, até as batidas malditas retornarem. Um pouco mais fortes dessa vez. Termino o café em um gole só, antes de calçar minhas pantufas e abrir a porta para o corredor.
A primeira pessoa que vejo, sentado diante da porta do quarto, com a cabeça recostada contra a madeira e de olhos fechados, é Jungkook. Ele olha em minha direção no segundo que apareço diante da porta. Já está sem o terno caro, e desta vez, vestido. A camiseta preta de mangas curtas exibe totalmente o seu braço tatuado, e está vestindo suas calças largas escuras favoritas. Os cabelos úmidos parecem emoldurar aquele rosto irritantemente bonito.
Queria me cansar de dizer isto em algum momento.
— Parece que a festinha do Hoseok te acordou, não é? — Ele sorriu — Camiseta legal.
Queria mentir e dizer que não me senti aliviada por vê-lo do lado de fora daquela porta. E não sendo o protagonista do que quer que esteja rolando lá.
— Eles estão...
— Aparentemente, sim. — Jungkook aponta para a gravata pendurada na maçaneta. — Eu vim tomar um banho, me trocar e sai para buscar uma cerveja no bar, quando voltei, ele já estava aí.
— Oh, isso, oh, oh, oh, oh.
Os gemidos ecoaram através do corredor, assim como as batidas sequenciadas.
— Assim, por favor, faça assim! — A voz de Aimee atravessou a acústica da porta de madeira. - Isso, Hoseok, coloca tudo!
Jungkook ergueu os olhos para mim com um ar de riso, eu estava começando a corar.
— Quer dar uma volta?
— Por favor!
Assim que entramos no elevador, foi inevitável não cair na gargalhada. Sairia deste hotel com mais traumas do que havia chegado, essa era a verdade.
— Nunca mais vou conseguir olhar na cara do Hobi. — Disse e Jungkook riu, enquanto se apoiava contra o espelho do elevador.
— Ouvir isso como espectador não é a melhor das experiências...— Ele toca o cabelo, colocando-o para trás da orelha, — Acho que essas coisas só funcionam quando se está envolvido.
Ele me olhou outra vez. Ainda parecia que conseguia ver através da minha alma.
— É, eu acho que sim. — Tenho certeza que acabaria rindo outra vez. — Para ser sincera, achei que era você do outro lado da porta.
—Eu?!
— É, a Heeyeon estava interessada em fazer o mesmo com você, não é?
Minha curiosidade parece gritar para perguntá-lo a respeito, embora saiba que se decidir ir por aquele caminho, acabarei machucada. Não tenho que saber, não deveria saber. Nada disso deveria me interessar. - Ou estou enganada?
— Ela sugeriu algumas coisas que poderia fazer, tipo... — Ele gesticulou algo com sua mão e usando a língua contra a parte interna da bochecha, em um vai e vem. — Mas eu só fui deixá-la no quarto, estava realmente com muito álcool no sangue. Um fósforo ali e tudo iria para a puta que pariu!
Sorri.
— Uma proposta tentadora.
— Explodir a garota ou receber um boquete?
Explodir a garota.
— Fazer coisas de adulto. — disse e ele me olhou de novo, por cima da armação dos seus óculos de leitura.
— Para ser sincero, não tenho o mínimo de interesse.
Fiquei feliz em ouvir aquilo.
O elevador para no térreo e quando as portas se abrem, consigo ver as luzes vindo da pista de dança da festa de Christine, as pessoas sabiam bem aproveitar por aqui, mas a minha energia social havia sido reduzida a zero somente na meia hora que passei por ali. Deveria levar em consideração o voo longo, os reencontros e uma série de fatores que meu corpo demoraria mais para lidar, essa era a verdade.
— Espere um segundo, vou até o bar buscar umas cervejas. — Jungkook disse, caminhando até o lado oposto, no lugar com pouca iluminação e música mais lenta, um jazz gostosinho que tocava lentamente, colidindo contra a música agitada de Jay Park que tocava através das portas do espaço de eventos.
Jungkook demorou menos do que dois minutos, voltando às duas garrafas sustentadas pelo gargalo.
— Para onde vamos?
— Tem uma quadra de basquete aqui do lado, quer fazer algumas cestas? Só pra, você sabe, manter o corpo quente.
— Tudo bem. — Você deveria estar no seu quarto, longe daqui, longe desse cara.
— Me diz, quantas camas tem no quarto do Hoseok? — Ele fica em silêncio por um segundo, até se virar para mim com ar de riso. — Uma!
— Ah, não!
— É, pois é! Vou dormir nos fluídos sexuais do Hoseok e da Aimee-ssi.
Sou atingida por um raio de culpa por tê-lo chutado do quarto.
— Bom, tenho uma proposta...
— Acho que estou tendo um déjà-vu. — Exclamou!
— Ok, se eu ganhar a partida de basquete, você vai dormir entre o Hoseok e a Aimee hoje, mas se eu perder, você pode dormir no meu quarto, o que acha?
Eleanor, é melhor você ganhar isso! Tarde demais para voltar atrás.
— Feito.
— Tá confiante?!
— Não deveria?
— Sou muito boa nisso, sabia?
— Rá!
— Tá duvidando? Vou chutar essa sua bunda, Jeon Jungkook!
Ele apoia as cervejas na mureta da pequena quadra de basquete, antes de alcançar a bola.
—Ok, vamos lá. Regras: ataque e defesa, drible na linha de três metros e quem conseguir 10 pontos primeiro, ganha. Feito?
— Eu vou comer a sua bunda, Jeon Jungkook. —Digo e ele ri, antes de ir até a pequena mureta da quadra para deixar os óculos.
— Espero que esteja preparada para dividir a cama comigo.
Ele riu, arremessando a bola para mim.
— Me conte, gatinha, como é trabalhar na Rolling Stone?
— Literalmente um sonho, eu adoro o que faço, não sei se faço bem, mas eu gosto de fazer.
— Você faz bem pra caralho!
— Tá dizendo isso porque quer tirar o meu foco, não é?
— Não, — ele ri —Eu leio o que você escreve toda semana. Inclusive, adorei o que falou sobre a Gracie Abrams, comecei a ouvi-la por sua causa. Aliás, você escreve com seu coração, dá pra sentir.
Tento não parecer tão afetada, tão mortalmente ferida, enquanto continuo quicando a bola de um lado para o outro sem prestar atenção no lance e em mais nada ao redor, além dele.
— Eu não, eu não sabia que você acompanhava o meu trabalho... — Jungkook consegue driblar e tomar a bola da minha mão, fazendo uma cesta de três pontos.
— Bem, agora você sabe! — Ele puxa as mechas do cabelo para trás da orelha. — Você é a pessoa mais interessante que conheço, a mulher mais extraordinária que já tive o privilégio de ter na vida, então... — Seu cabelo balançou com a brisa fria, parecia perigoso demais.
Bang!
Meu coração dança no peito, se contorce e preciso controlar o riso. A vontade que tenho de abraçá-lo de olhos fechados, de dizer que só queria ouvir aquilo, só precisava daquilo ao invés das minhas inseguranças jogadas na minha cara.
Melhore suas análises, deixe seus textos menos emotivos, você tá falando como uma adolescente, sabia?
Na verdade, Ben queria que eu escrevesse como um outro cara da Rolling Stone. Não como Eleanor, da Rolling Stone.
— Minha vez!
— E como é viver em Tóquio? Você gosta?
— Estranhamente bom. Me sinto à vontade no trabalho, mas sempre serei um estrangeiro e essa sensação é cruel. Mas adoro o que faço, já passei uma semana dormindo na minha sala para terminar um projeto...
— Nunca fazer parte do todo, mesmo existindo no meio de tudo.
— É, jamais pensaria em algo tão profundo e sagaz assim, mas é exatamente isso. — Consigo bloquear seu lançamento com uma das mãos.
— Que merda! — Ele ri. — Você é muito boa!
— Sou boa em muitas coisas. E você vai dormir na cama quentinha do Hoseok. — digo e ele para um instante, com as mãos nos joelhos para recobrar o ar. — Ah, que gatinha malvada!
— Então, esse Benjamin é seu namorado? — Continuo batendo a bola embora não esteja mais dando a mínima para aquilo.
— Não, ele é um cara... com quem tive um lance.
—Teve? Não tem mais?
— Foi o que eu disse. Aparentemente não temos mais nada.
— Mas... você, você gosta dele?
— De certa forma. Nós dois transávamos. — Arremesso a bola e ele consegue pegá-la no ar, dando a volta ao meu redor.
— Entendi. Legal.
—Mas era só isso. Justamente isso.
— E era bom, o lance todo? — Tento driblá-lo desta vez, mas não consigo alcançar sua bola alta. Acabo esbarrando com o rosto em seu peito, e puta merda, eu poderia ter passado essa noite sem saber como ele estava excepcionalmente cheiroso.
— Era ok, precisamos mesmo falar dele? — Tomo a bola de suas mãos — Minha vez.
— E você? Tem namorada? — Ele desviou os olhos da bola para me olhar nos olhos de novo. Quase como se estivesse perguntando se ele havia cometido algum crime — Não tenho. Nem penso nisso.
Finjo um arremesso, mas ele se aproxima, me girando pela cintura para o lado oposto. O frio correu minha espinha.
— Ei, isso não é permitido!
— É? E você vai fazer o quê a respeito? — Ele sussurra contra o meu rosto no minuto em que toma a bola, quicando com as duas mãos, os lábios quase tocando o meu nariz e dá a volta na quadra com ela, arremessando depois da linha de três metros, arremessando um beijo no ar para mim.
— Sabe, você parece um urso branco com essa calça de moletom. — Jungkook comenta — Fica fofo em você!
— Vem cá, esse troço aí pendurado no seu lábio, pra que serve?
— O piercing?
— Não, um bigode. É óbvio que é o piercing.
— Posso te mostrar depois. — Ele gargalha, antes de, outra vez, tomar a bola da minha mão e fazer um lance. — Não é permitido segurar a bola sem lançá-la.
— Você está me distraindo, preciso de uma pausa.
Caminho até a mureta, dando um gole na cerveja que ele trouxe. Minha coxa já está doendo outra vez, não deveria ter bancado a atleta de novo sem antes ter me aquecido.
— Acho que não vou conseguir continuar o jogo — Falei, enquanto Jungkook continuava fazendo cestas por conta própria.
— Está com tanto medo assim de perder?
— Não é isso, é que acabei machucando a perna no ballet na última semana, não deveria ter feito esse esforço todo.
— Você conseguiu voltar para o ballet?
— Não com a mesma frequência de antigamente, mas algumas noites por semana.
— Onde dói?
— Aqui. — Aperto o ponto para que ele veja. E ali, na parte interna da coxa, subindo até a lateral do bumbum.
— Tudo bem, — ele respira fundo, enxugando o suor com a gola de sua camiseta — Quer subir agora? Vou esperar a festa do Hoseok terminar de qualquer forma.
— Você pode dormir comigo... — Puta que pariu. — No meu quarto. Você pode...
— Não quero incomodar você, isso aqui era brincadeira.
— Você realmente pode. — continuei — Se quiser, você pode ficar.
Jungkook permaneceu em silêncio, ofegante, a bola apoiada ao lado do quadril, estava prestes a dizer alguma coisa e conseguia sentir, conseguia ver a nuvem de palavras se formando acima de sua cabeça, as frases se formando e perdendo força na ponta da língua. Ele umedeceu os lábios e abaixou os olhos, as mechas do cabelo cobriram o rosto.
— Leanor, eu queria conversar com você sobre tudo o que...
— Não! — O interrompo. — Não precisamos falar sobre nada.
— Nós precisamos conversar sobre o que aconteceu naquela noite.
— Não, não precisamos! — Quero dizer que estava pronta para ouvi-lo, e que queria, acima de tudo, entender tudo, seu lado e também contar o meu, porque só assim seria capaz de exorcizar esses demônios que pareciam me assombrar e continuavam me seguindo para aterrorizar o meu presente e qualquer iminência de futuro aonde quer que fosse. Mas sabia que seria um golpe duro e não seria egoísta ao ponto de fazer aquilo tudo ser sobre mim. Nada ali era sobre mim, ou sobre nós dois. Estávamos ali por Trine e Yoongi, por essa razão deveríamos manter a trégua, por isso estava apenas me permitindo ir contra toda a minha segurança na tentativa de ser amigável, de mantê-lo por perto até onde aguentava, contudo, passar daquele ponto seria tortura.
— Eu preciso! — Ele afirma. — Eu. Preciso.
— Hoje não, por favor. Esse fim de semana, não. Eu...
— Eu vou respeitar você, só quero que saiba que precisamos conversar, isto está pendente há quase quatro anos. — Tomo um gole da cerveja gelada e respiro fundo.
Você me arruinou para o amor, Jungkook.
Me arruinou para qualquer possível pessoa que possa minimamente me interessar.
Estou marcada e não consigo seguir em frente. É isto que você quer que eu confesse? Então aqui está, não consigo te superar e já aprendi isso.
Eu ainda te amo.
— Vamos dormir?! — Sugeri e ele levou alguns segundos até assentir.
— Tudo bem, é melhor mesmo.
Durante o trajeto de retorno aos quartos, ele permaneceu em silêncio. Tomou goles generosos de sua cerveja e bateu os dedos contra o espelho do elevador para aliviar a tensão, enquanto eu continuei encarando meus próprios pés naquelas meias patéticas. O corredor estava em silêncio quando entramos, provavelmente Hoseok havia dormido ali, mas a gravata continuava pendurada na maçaneta, como se estivéssemos em algum filme oitentista cafona, Jungkook pensou em bater na porta, mas desistiu no segundo seguinte.
— Fique à vontade — Disse, abrindo espaço para ele entrar como se não tivesse expulsado-o daqui mais cedo.
—Obrigado.
A TV continuava ligada, mas já passava de uma da manhã e os programas antelucanos já estavam sendo transmitidos, em volume baixo. Minha cama continuava bagunçada e meus saltos soltos pelo chão.
— Se tiver cobertores extras nos armários, posso improvisar uma cama aqui... — Ele disse, caminhando até o lado oposto do quarto.
— Você pode dormir na cama comigo, é só usarmos os travesseiros como uma barricada...
Ele balançou a cabeça.
— Então, ok.
O silêncio desconfortável outra vez tomou o lugar.
— Você prefere qual lado da cama? — perguntei e ele deu de ombros. — Que tal embaixo? — O tom deveria soar engraçado, mas como sempre, Jungkook sabia como ser mais inconveniente do que eu.
— De você ou dela? — Ele não conseguia se conter?
-—Da Terra, Jeon Jungkook!
— Desculpa, é que eu não consigo conter essas merdas... — Ele coçou a nuca, desconfiado — Pode ser do lado direito.
Algo em Jungkook havia amadurecido junto a sua postura de homem sério, usando aquelas calças confortáveis e uma blusa de botões frontais verde musgo que parecia um apelo ao crime, naquelas primeiras horas do dia.
— Você pode ficar, se quiser. Só precisamos combinar os horários para usar o banheiro, não quero ter que encontrar você —
— Pelado?
— Tomando banho.
— Você que invadiu o chuveiro e acredito que não existe nada aqui que você já não conheça.— Sem tom de voz baixo me faz pigarrear.
— Não é porque já conheço, que significa que quero ver outra vez.
Na verdade é sim!
Ele colocou as mãos no bolso, continuava parado de pé, eclipsando a luz da TV e pela minha visão periférica ainda parecia sutilmente mortal.
— Entendido. Mais alguma coisa?
— É só isso!
Minha coxa continuava extremamente dolorida, mas tento ser discreta ao me ajustar na cama, sem pressionar demais a mão ali, sabia que ele perceberia.
— A sua coxa...
— Tá tudo bem.
— Eu posso fazer uma massagem, se quiser. Eu aprendi algumas técnicas na época do Taekwondo.
A última coisa, entre todas que poderiam existir e serem exemplificadas aqui, era aquela: Jeon Jungkook com as mãos na minha coxa. Mal havia sobrevivido a um simples toque na cintura, aquilo certamente seria mortífero.
— Não, de jeito nenhum, vou ficar bem...
— Quer que eu te mostre como faço e você faz em si mesma?
Era uma boa ideia.
— Tá... — Ele puxou a própria calça para baixo com sua habilidade sobre-humana de tirar as roupas e fiquei cega de sentidos, prendendo a respiração e desviando o olhar. Aprenderia através da intuição, sem precisar encará-lo muito.
— Aqui, tá vendo? Você vai deslizar para dentro... Sua mão vai correr para a parte interna do seu corpo, em direção a sua... é, a sua virilha. Tenta.
Copiei o movimento por cima da calça de moletom.
— Eu posso... eu posso tentar? É algo estritamente profissional. — Jungkook perguntou, antes de erguer as calças de volta e contornar a cama até onde eu estava.
— Tudo bem, — afastei os cobertores e ele tocou de leve por cima do tecido da calça.
— Aqui dói?
— Não, não muito. — A verdade é que estava doendo, mas o tecido grosso da peça quase não me deixava sentir o toque dele ali.
Jungkook apertou um pouco mais acima do joelho e a tensão do músculo me fez segurar o seu pulso.
— Aqui dói, não é?
Assenti.
Toquei o cós da calça, desviando o olhar para ele. Não deveria fazer aquilo, mas estava prestes a tirar a roupa.
— Eu acho que talvez ajude se eu... — Puxei minimamente a calça para baixo e ele me ajudou, passando o elástico pelas coxas, até os tornozelos e então, estava ali, outra vez, de calcinha e camiseta, usando meias patéticas diante de Jungkook.
Ele sentou ao lado da cama, ocupando um espaço mínimo.
— Talvez uma loção corporal ajude...
— Aqui, — apontei para a mesa de cabeceira, o hidratante frutado parecia arma do crime adaptada, a primeira coisa sacada nas mãos na hora do desespero.
Ele espalhou um pouco nas mãos antes de tocar minha pele, deslizando até a curva do meu quadril e voltando. Estava concentrado naquilo.
— Dói assim?
Fiz que não com a cabeça. Doer não era exatamente a palavra quando sua mão corria bem ali.
— Pode doer um pouco agora. — Ele apertou o ponto dolorido, sentindo o músculo tensionado. Prendi a respiração por um segundo.
Ficamos em total silêncio enquanto me concentrava, na tentativa de não fazer nenhum barulho enquanto ele continuava focado em seu trabalho quase criminoso de massagear a minha coxa. Meu coração já parecia programado para aquele tipo de reação, estava nervosa, com a boca seca, as mãos suando, o peito a ponto de explodir. Há tempos não me sentia assim. Há tempos não sentia muitas daquelas coisas.
— Dobra a perna assim, vou massagear aqui. — Ele tocou a parte de trás da minha coxa e um arrepio tomou o corpo. — Você vai se sentir muito melhor, vai ver.
Fico paralisada por alguns minutos enquanto seus dedos deslizam ali, tão perto de uma zona perigosa, inertes do que podem fazer, e retornam sãos e salvos.
— Por que não assistimos algo? — Alcanço o controle remoto e clico no botão do streaming, retomando o que Hoseok estava assistindo mais cedo, queria focar em outro ponto que não fosse nós dois, qualquer outra atividade que não tivesse aquele mesmo requinte de crueldade autoimposta.
— O Grande Dragão Branco? Não sabia que era uma fã do Jean-Claude... — Ele diz, olhando por cima do ombro, na direção da TV.
— Grande... — respiro fundo, por Deus, volte essa mão até o meu joelho. — Grande fã.
Ele observou a TV de novo.
— É tosco pra caralho como eles podem estereotipar um asiático, olha isso!
Eu queria desviar minha atenção para outros pontos, disseminar meu interesse em algo além de você.
Jungkook era uma playlist com canções proibidas das quais tinha sido intuída a nunca mais ouvir outra vez, embora o desejo secreto que mantinha ainda era de tocá-la no escuro, debaixo das cobertas, depois que todos já estivessem embalados pelo sono e pudesse reaver as sensações que elas me causavam antes.
E aqui, estava com os fones plugados no aparelho, a maldita playlist aberta a ponto de dar o primeiro play e não para mais de ouvir, no modo repeat.
Sua boca se mantinha séria, iluminada parcialmente pelas cenas toscas de luta e Jean-Claude Van Damme de regata preta em algum bairro asiático. Seus olhos miravam minha pele, enquanto sua mão deslizava para cima e para baixo.
— Onde mais está doendo? — Me sobressaltei com a pergunta, erguendo minimamente a camiseta para mostrar o outro ponto, bem ali, na curva do bumbum.
— Dói aqui. — Ele me olhou nos olhos de novo, parecia um desafio, como se perguntasse outra vez: "tem certeza disso?"
— Você quer que eu...? Eu posso te mostrar em mim e você pode faz-
— Faça, por favor.
Jungkook assentiu, puxando meu corpo para baixo.
— Preciso de você deitada agora.
Mal conseguia responder, o toque que senti foi ali, na altura do elástico da calcinha, tão sutil que sua mão escapou antes que pudesse me dar conta dela outra vez.
— Assim?! — Ele assentiu, ajustando as mechas do seu cabelo para trás da orelha.
— Vou te tocar aqui, ok?
Fiz que sim a cabeça, de olhos fechados.
Sua mão deslizou para cima, apertando acima do ponto esperado. A dor me fez segurar seu pulso de novo quando o nó do seu dedo pressionou o local dolorido.
— Já vai passar, prometo.
Minha mão continuou apoiada em seu ombro, estritamente consciente do tecido de sua camiseta entre os meus dedos, enquanto ele usava as duas mãos para aliviar a dor.
— Tá bom assim?
Sua mão deslizou, aberta, até a curva do meu bumbum e fechei os olhos outra vez. Suas pupilas profundamente escuras, como luas eclipsadas, desapareceram do meu campo de visão
— Você vai sentir alívio em alguns minutos, vai ver. — Ele se afastou, limpando as mãos com resquício de hidratante frutado no tecido de sua calça. — Acho melhor irmos dormir agora, tá muito tarde... e esse filme tá uma merda, então.
Assenti.
Meu coração estava disparado demais para que eu relaxasse agora. Estava acesa. Talvez fosse culpa do café, da partida de basquete, daquela cerveja gelada demais...
A culpa só poderia ser desses três vilões de um sono tranquilo.
Ele deu a volta na cama, batendo o joelho contra a mala aberta por cima do suporte e então, alcançando seu lado na cama, antes de se enfiar nas cobertas.
— Você não quer dormir sem camiseta? Sei que sente muito calor quando dorme e...
— Vou ficar bem. Boa noite.
Eu queria tanto beijá-lo que estava começando a ficar tonta. Era uma necessidade inerente, mais forte e maior do que eu, que dominava os meus impulsos. Como água da chuva após um longo período de estio, bastaria uma aproximação mínima e me sentiria aliviada de novo.
Não, não, não...
Apenas, saia daqui. Saia dessa cama. Se afaste.
Caminho até o banheiro e fecho a porta, precisava de um pouco de água para aliviar aquele calor queimando cada célula do meu corpo. O que era isso? O que estava acontecendo?
Continuei encostada contra o mármore da pia, recobrando os sentidos.
Foi só um toque, nada além de um toque.
Vou voltar para aquela cama, vou deitar e vou dormir. Exatamente como ele estava fazendo agora.
Caminhei de volta para o quarto, desliguei a TV e me encolhi no espaço livre da cama, Jungkook continuava deitado na mesma posição, de costas para mim. A escuridão floriu pelo chão e conseguia ouvir minimamente a sua respiração suave ao meu lado.
Fechei os olhos.
Precisava somente me concentrar e dormiria bem. E foi justamente a movimentação mínima do outro lado que me fez olhar por cima do ombro, tentando encontrá-lo no escuro, até sentir o seu braço ao redor de minha cintura, me puxando para perto.
— Me desculpe, eu queria ter sido mais forte que isso... — Ele sussurrou contra o meu rosto. — Acho que posso morrer hoje se não te beijar agora...
Meus dedos se enroscaram por cima dos dele, ali, na minha cintura.
— Achei que não faria isso nunca... — cochichei. Conseguia sentir sua respiração ali, tão perto, seu hálito quente colidindo contra o meu queixo, seu corpo pressionando o meu em todos os lugares onde precisava senti-lo.
O calor em excesso pareceu cada vez mais sufocante.
Estava zonza, definitivamente agora, e sabia bem a motivação: tesão.
Primeiro senti seus dentes raspando em meu pescoço em um percurso lento, seu nariz contornando a pele, sentindo meu cheiro devagar, e então seus lábios deslizando por cima do lugar marcado, até o queixo.
Me beije logo, por favor, só me beije de uma vez.
Abri os olhos e a TV continuava ligada, Jungkook estava na mesma posição de antes, dormindo profundamente.
Recobrei a respiração em um susto.
Estava apenas sonhando.
—
#ClãCCEG
N/A: Existe um enigma dentro deste capítulo com a data da próxima atualização!
Tenho certeza que ao longo da leitura vocês vão perceber pequenas mensagens e depois quero ver aqui se alguém adivinhou, hein?
Demorei, mas voltei e estava morrendo de saudades de vocês.
Este é o capítulo mais longo dos últimas atualizações, há tempos não metia 20K assim para vocês devorarem, e espero que tenham gostado de um capítulo mais extenso e que foi muito divertido de escrever.
Peço desculpas por qualquer errinho, são 20 mil palavras, revisar tudo isto depois de escrever não é tarefa fácil, enfim.
Até breve!
— Com amor, Sô!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro