11. Sobre primeiras vezes, partes quebradas e tudo que não foi dito.
Eleanor, pt. 1
7 horas antes do início do caos.
Era uma tentativa inútil, no fundo eu sabia, por mais que tentasse listar todas as coisas que ainda me lembrariam da garota que fui e das coisas que odiava em Jungkook, nada daquilo poderia parar o que sentia agora. Eu odiava algumas coisas sobre ele, e disso, eu ainda tinha certeza. Odiava sua mania de fazer piadas inapropriadas nas horas mais erradas, odiava suas camisas largas demais, sempre seguindo a mesma paleta neutra entre cinza, branco e preto, além daquele costume ridículo de esticar os braços para cima desajeitadamente e revelar mais do que era necessário saber, quando os tecidos de suas camisetas não cumpriam seu papel de mantê-lo em segredo, revelando sempre a ponta da tatuagem ali, na linha do quadril como uma constante lembrança de que eu sabia exatamente a textura dela.
Odiava a maneira como seu cabelo — sem corte definido — sempre caía perfeitamente alinhado e quase em câmera lenta, por cima dos olhos e como Jungkook sempre parecia inofensivo para mim, na grande maioria das vezes. O odiei em todas as vezes que me perguntei silenciosamente em que dimensão Jungkook se escondia, porque ele cruzou meu caminho na hora mais errada, no meio do meu próprio caos e ainda assim, não quis que eu movesse minhas peças quebradas para tentar caber no meio delas. Pela primeira vez me senti confortável em minha própria pele, e eu o odeio tanto por me machucar agora, justo agora, quando por um único momento, me senti completamente confortável ao lado de alguém, mas lembrar disso não facilitaria nada pra mim. O falso ódio não me impediria de gostar dele ainda mais, era tudo da boca pra fora.
Nas últimas 168 horas eu tinha me dado conta que estava, lentamente, pagando por cada um dos meus pecados cometidos em uma vida inteira. Por ter mentido pra mamãe na quarta série e dito que não entrei na piscina da escola mesmo resfriada, por ter escondido o boletim com notas vermelhas no ensino médio e ter jurado que ele tinha sido extraviado nos correios, por ter beijado Jungkook naquela noite e ter fingido que não era grande coisa, consequentemente me apaixonando naqueles minutos cruciais entre a negação e a raiva, enquanto me dava conta de que provavelmente eu estava fodida.
De alguma forma eu entendia que os castigos vem para coisas assim, que decisões tomadas por impulso sempre trazem resultados catastróficos que vão perdurar, se arrastar na sua consciência com o peso de uma bigorna por meses e anos, e talvez daqui a algum tempo, quando estiver um pouco mais velha e experiente, será o meu pesadelo lúcido, naqueles sete segundos antes do sono tomar conta do meu corpo, quando meu cérebro resolver me trapacear e definitivamente, seria esse momento, esse minuto que encaro agora quando eu me dou conta mais uma vez de que sou uma completa e total idiota.
— Juro por Deus que na primeira oportunidade que tiver, eu faço um chá com as bolas do Jungkook. — Trine diz, naquele meio tempo que leva para se aproximar da mesa do refeitório onde estou, trazendo seu almoço depois de ter ameaçado socar dois ou três garotos do time de baseball para avançar na fila e obviamente deixar metade das pessoas assustadas. Era normal para Trine sentir raiva e sair por aí como se o mundo inteiro fosse o grande causador da libertação de sua catarse, quando na realidade, daquela vez, a culpa era só minha.
Ela havia comprado a minha dor, como sempre fazia, mas dessa vez não tinha só planejado uma vingança bem articulada e engraçada contra algum garoto estúpido, estava magoada porque também confiava em Jungkook, tanto que chegou a acreditar que o que acontecia entre nós não era só sobre o acordo. E de alguma forma, não foi.
— Como ele te diz aquilo e no mesmo dia tá trocando saliva com a ex-namorada?! Juro que eu não entendo. — Ela diz, antes de enfiar um pedaço de cenoura na boca. — Deixa pra lá, sério. De qualquer modo, você sabe melhor do que ninguém que isso tudo era só um... — Ela me olha como se pudesse me enxergar além do que é visível ali, em carne e ossos.
— Se você disser a palavra acordo, juro que te bato agora!
— Christine, no fim das contas era só isso, só um acordo e de qualquer forma, tudo isso acaba hoje, talvez ele só estivesse se adiantando sobre as coisas... — Começo. — E talvez ele goste dela ainda, os dois tem história e sei que sou só uma intrusa no meio disso tudo.
— Não, Eleanor! Eu sei que não era só isso, visivelmente não era só isso. Ok, eu sei que vocês tinham um acordo e que as coisas foram além do esperado, mas você não precisa fingir que tudo está bem quando eu sei que não está... — A verdade é que trabalhava com a possibilidade de Jungkook ter dito que gostava de mim apenas da boca pra fora, no meio de uma situação propícia onde nós dois estávamos sozinhos e aquilo apenas pareceu certo, talvez ele tivesse misturado as coisas, confundido tudo que vivemos nas últimas semanas com algo mais forte, mas no fim das contas, ainda era Jieun com o passado mal resolvido e a presença constante. Aquela linha de pensamento só me faz alcançar o ápice do fundo do poço quando imagino que talvez, só talvez, fosse Jieun que ele imaginasse quando estava comigo.
Não quero que Trine me veja chorar, mesmo que eu esteja lutando contra uma quantidade significativa de lágrimas que estão prestes a cair enquanto ela fala todas as suas teorias sobre nós dois.
Eu também queria odiá-lo na mesma intensidade com que o desejava, no mesmo nível de minha estupidez por estar apaixonada e fazer valer cada uma das coisas que pensei, que tudo aquilo que jurei que parecia ser desnecessário nunca foi ódio, talvez esse tenha sido o único sentimento que Jungkook nunca tenha me feito sentir. Mas lidaria com o fato de que seríamos dois estranhos desviando um do outro pelos corredores da faculdade, evitando um encontro desconfortável de olhares no refeitório ou assistindo silenciosamente o rumo que nossas vidas tomariam no último semestre letivo. E aquele parecia o fim adequado. Nunca o mais feliz.
De qualquer maneira, ainda guardaria a dignidade que me restava, continuaria pensando que tinha sido sortuda de mantê-la naquele mísero segundo antes de tudo acontecer, antes do início do caos que tinha se instaurado na minha vida, pelo menos aquelas três palavras que estava pronta para dizer se manteriam a salvo comigo.
— Mas nada de ficar assim por conta dele... — Trine começa. — Hoje tem uma festa na fraternidade da Hongik, e você vai comigo! Eu, você e o Hobi como nos velhos tempos, uh?! — Diz, batendo os dedos contra a mesa, denunciando sua animação. — Cerveja grátis, Hongdae, nós três... Como antigamente! Sério, vamo?!
A proposta não parece ruim, talvez sair desse ciclo vicioso que pareço presa desde que toda essa história de acordo começou, seja bom. Não ocupar a vida dos meus amigos com algum problema meu definitivamente é a escolha mais sensata que posso ter e por mais que só queira me enfiar debaixo do meus lençóis e fingir que não existo pelos próximos dias, meses e décadas, me pego aceitando o convite como se fosse uma questão de sobrevivência.
Beber naquele momento não era uma boa decisão, mas talvez seja pelas últimas decisões que pareciam boas demais que eu devesse aceitar a pior delas, justificar as merdas feitas com o lema do "Só se vive uma vez", e talvez realmente isso fizesse sentido.
Só se vive uma vez, mas se arrepende umas mil.
A tela do meu celular brilha novamente e já sei que se trata de Jungkook, mais uma das mensagens que não cheguei a ler durante a semana inteira, acumulando notificações na barra superior do aparelho, um total de oitenta e nove e com um número inédito de chamadas não atendidas que já passava de trinta e duas.
Nada me embrulhava mais o estômago no misto de medo e ansiedade do que ver seu nome brilhando na tela, seu rosto sorridente salvo na foto de contato que ele mesmo escolheu e a sensação de que o quer que ele tenha pra me dizer, eu não quero ouvir. Não é nada que eu já não saiba agora, que eu já não tenha visto com meus próprios olhos e entendido sozinha.
Provavelmente ele diria que as coisas só aconteceram e que é assim que funciona com as histórias que não acabam bem, sempre com reticências e nunca com pontos finais.
Diria que seria melhor se fôssemos só amigos e deduzir tudo isso por mim mesma parecia melhor do que ouvir essas palavras, menos doloroso. Ao menos não teria minha inteligência testada por cara nenhum.
— Eu preciso ir pra aula agora, sou monitora de um calouro e já tô trinta e sete minutos atrasada... — Trine começa, antes de enfiar uma porção de cenouras cortadas em cubos na boca e juntar seu material largado na cadeira ao lado. — Você vai ficar bem? — Ela pergunta, me olhando uma última vez.
— Eu sempre fico — E era a grande verdade. Uma hora ou outra, sempre acabava dando um jeito, mesmo que sozinha, de ficar bem.
— Ok, nos encontramos mais tarde, certo? — Ela caminha até onde estou, me dando um beijo carinhoso na testa. — Claro, boa aula.
Mesmo que Trine e Hoseok no fundo já soubessem exatamente o grande problema sobre Jungkook e eu, as emoções ainda me chacoalhavam, me deixando com nó na garganta só de imaginar a possibilidade de falar aquilo em voz alta, admitir além do que era óbvio e não era por orgulho, mas porque sabia que isso tornaria as coisas ainda mais reais e quanto mais reais, mais assustadoras elas são. A vida era um grande "eu te avisei" gritado por todas as pessoas ao redor em uníssono, precisaria lidar com isso agora.
Pelas janelas de vidro que cercam o refeitório, como se nos encontrássemos por meio de um sensor invisível e naturalmente sacana, eu o vejo lá fora, parado ao lado de sua bicicleta, usando um boné escuro que esconde os seus olhos, a mochila pendurada em um dos ombros e o celular apoiado contra o orelha, naquele meio segundo que outra vez seu rosto surge na tela de meu aparelho e não consigo desviar o olhar. Ele não me vê, está concentrado demais em apoiar sua bicicleta nas grades de segurança ao lado do refeitório e sei que se demorar mais um segundo parada exatamente aqui, não vou ter como fugir dele.
O tempo que levo pegando minha mochila e correndo até a porta não evita que ele me encontre com a mesma facilidade que o encontrei, com aquele olhar apavorado que reconheço como o da última noite em que o vi, com as desculpas prontas e as frases clichês copiadas de algum seriado idiota, mas não diminuo o passo, avanço ainda mais rápido desviando de uma poça gigantesca de água parada no meio do caminho e fingindo que minha vontade não é de chorar naquele exato minuto. Não tenho forças pra isso e não sei porquê em algum momento achei que teria: de enfrentá-lo cara a cara e dizer todas as coisas nunca ditas.
— Leanor! — A voz dele atravessa o espaço que diminui conforme ele avança, correndo em minha direção. — Ei, espera! — Talvez eu pudesse fingir que não era comigo, me daria aquele privilégio, mas voltamos a estaca zero quando não consigo ignorá-lo e me pego parada no meio do caminho, esperando que ele me alcance.
— Eu tentei falar com você a semana inteira... — Ele respira fundo — Não viu minhas mensagens? — Começa, se aproximando além do esperado — Te liguei também e nada, fui no dorm mas a Trine disse que você não estava lá então eu só...
— Você só... o quê? — Achei que estava sendo óbvia, mas provavelmente não o suficiente pra que ele perceba aquilo.
— Olha Leanor, eu posso explicar o que aconteceu naquela noite... — Ele começa outra vez. Direto ao ponto. — Não é exatamente isso que você tá pensando. — Aquilo era sim algum tipo de piada, das piores, pelo visto. Se não era exatamente o que estava pensando, então o que exatamente era?
— Você não tem que me explicar nada, sabe disso. — Digo e a expressão aflita morre no seu rosto, tão bonito que me sinto idiota pela vontade que tenho de beijá-lo, mesmo agora.
Estava decorando silenciosamente tudo que mais gostava nele, gravando cada detalhe como um adeus silencioso, ainda não tinha dimensão do quanto aquilo tudo me machucaria depois, não tinha como mensurar a causa e efeito de Jeon Jungkook na vida de alguém. Avançaria da fase de testes e saberia os resultados do meu desastre em um futuro próximo, lidando com um coração partido.
— O que eu te disse sobre nós dois naquele dia ainda é verdade... — Ele rebate. Mais um passo e ele vai estar perigosamente perto e eu sei disso.
— O problema é que não existe um "nós", Jungkook, nunca existiu...— Começo. — Você tava confuso, entendeu errado o que aconteceu entre a gente...— Mais um pouco daquele martírio e sei que vou chorar, talvez ele já tenha percebido naquele segundo, quando desvio meus olhos em direção aos meus próprios pés. — Mas sua namorada voltou e tudo bem, eu entendo isso. — Aquele era o momento adequado pra ir embora, ficar ali só prolongaria ainda mais tudo que eu estava evitando nos últimos dias, no meu caminho alternativo de tentar diminuir os danos, mesmo que não tenha como impedir um cataclisma quando ele já está acontecendo.
— Só me deixa te explicar o que aconteceu... — Sua mão segura a minha e por um segundo, eu quase me desligo de tudo. Meu coração pulsa com tanta força no meu peito que posso sentir a pressão em meus ouvidos. — A Jieun e eu não temos mais nada, aquilo foi só... — Não quero que ele continue. Tudo junto na mesma frase, dito por ele, parece ainda pior. Se os dois não tinham nada, então o que nós, o que eu e ele teríamos?
— Por favor, só pare de me machucar ainda mais! — Digo aquilo mais alto do que pretendo, do que deveria, talvez porque fosse o pensamento que não conseguiria conter se ele terminasse a frase, me desvencilhando do seu toque abruptamente. — Pega essa sua bicicleta estúpida, todas essas bobagens que tá me dizendo e volta pra sua namoradinha, o nosso acordo acabou, não temos mais nenhum compromisso! Cê tá livre — Não tenho tempo de assistir a reação de Jungkook, nem de ouvir o que ele diz naquele meio tempo que me afasto o mais rápido que posso, embora eu saiba que ele continua parado exatamente no mesmo lugar, digerindo tudo que eu disse, não há nada que queira ouvir de volta. Nada que ele possa dizer pra consertar as coisas naquele minuto.
E ali, tudo acaba.
♆
Jungkook, pt. 1
2 horas antes do início do caos.
Eu volto aquele momento tantas vezes. As palavras dela permanecem ecoando na minha cabeça vez ou outra, tão diferente da sutileza convencional e da delicadeza que costumava ter até mesmo para me colocar de volta no meu lugar, e sei que Leanor está magoada comigo de verdade e a culpa é completamente minha. Estava com medo de ser um grande filho da puta ou um imbecil irresponsável e acabei sendo as duas coisas de uma vez só, na tentativa de resolver um problema e nunca de começar outro. Jieun chegou na hora menos propícia, arrastando com ela todas as coisas que eu pensei que seriam fáceis de deixar pra trás quando se tratava do nosso passado, mas aquilo ainda me perturbava. Tudo parece muito mais claro na minha cabeça, mais real, quando ela estava aqui.
Aquela conversa que odiei ter para terminar as coisas que pareciam ter ficado pendentes me deu a resolução de que no fim das contas, não fui amado como achei que tinha sido, não com a intensidade que amei Jieun, óbvio que a porra da conclusão foi tomada antes mesmo que me desse conta sozinho, fui obrigado a assistir o momento crucial do nosso fim por meio de uma foda alheia, envolvendo as duas pessoas que mais confiava no mundo: meu melhor amigo e minha namorada.
As coisas com Leanor tinham sido diferentes desde o começo, muito além do acordo que desmoronou duas semanas depois e continuamos fingindo que as coisas não estavam mudando, quando descobri que o motivo de não conseguir ficar muito tempo por perto não era porque tudo girava em torno de Kim e da tristeza de saber que continuaria me enganando fingindo que estava ali para salvar minha pele de mais um boato idiota, mas porque estava começando a gostar tanto de sua companhia que me sentia como um garotinho assustado.
Aquele primeiro beijo não só ferrou minha cabeça como também me fez pensar na possibilidade de acabar tudo aquilo de uma vez, estava acostumado com um passado ruim me assombrando e nunca deixando que as coisas dessem certo de novo.
Foi assim com a Kang, foi assim com Nayeon e eu me odiaria se fizesse isso outra vez e justamente com a Leanor, que sequer sabia sobre todo resto.
A verdade é que nunca esperei me sentir tão envolvido, e tive certeza naquela noite, que imaginei que as coisas teriam um pouco mais de controle e perdi completamente o juízo quando começamos algo que eu sabia bem como terminaria.
Não era só sobre a maneira como ela me tocava, de um jeito que nunca fui tocado antes, nem as coisas que me dizia mesmo que no fundo sempre acabasse me repelindo pra longe de um jeito que evidenciava muito mais o que existia entre nós, mas foi sobre a maneira que eu pude senti-la em mim, no meu corpo inteiro, nos meus pensamentos e no principalmente no meu coração. Foi a sua implicância falsa que sempre acabava em preocupação, seu olhar bonito perdido no meio de um sorriso sincero e nossa dança sem sentido no terraço que me fizeram perceber aos poucos que já não tinha mais volta.
Estava apaixonado por ela. Estou fodidamente apaixonado por ela.
Eu não fui tão honesto quanto deveria e a ideia errada de que isso a protegeria de alguma bagunça que era só minha, no fim das contas, só fodeu com meus planos. E foderia com todo resto se eu não tivesse ao menos a chance de me explicar.
É naquele segundo, quando saio do banho e caminho até a mesa de trabalho que percebo que Hoseok me ligou pelo menos umas quatro vezes. Deduzo que Leanor tenha contado sobre o que aconteceu mais cedo e ele provavelmente viria aqui conversar comigo como sempre fazia. No meio disso tudo tinha dado sorte de ter encontrado algo sincero sobre a amizade de Hobi, porque desde que tudo tinha acontecido, tinha dificuldades em me aproximar das pessoas, o que desencadeou em boatos que se espalharam pelo campus descontroladamente.
Tinha quase certeza que boa parte dos garotos desse andar do dormitório tinham medo de mim por conta do que aconteceu com Kim, algo que nunca considerei certo, mas justificável de muitas formas. Mas paro aquela frequência por um segundo e retorno a ligação de Hoseok, que me atende animado do outro lado.
— Ei, quer sair pra beber hoje? Cerveja grátis na República da Hongik, vamo?
— Beber agora seria ótimo... — Começo. — Mas não acho que não tô no clima pra festa.
— Para de ser cuzão, Jungkook! Vamo! E a Nonô vai tá lá... — Ele diz. — É sua chance de tentar explicar o que aconteceu naquele dia.
— Eu não sei não, Hobi... Ela não parece muito a fim de me ter por perto. — Digo e ele respira fundo do outro lado da linha.
— Olha aqui, Jungkook, eu só tô fazendo isso porque amo a Eleanor e eu te acho um cara foda, então conserte as coisas enquanto você ainda pode. — As palavras de Hoseok me atingem como um chute no saco. Não, uma joelhada certeira na bola esquerda. — E é a última vez que te digo isso. — Era intervenção exatamente como ele disse que faria se achasse necessário e nunca, nunca o vi falando daquela forma.
— Ok... — Não penso muito antes de responder. — Eu vou.
— Ótimo, vou te passar o endereço pelo Kakao, a festa começa às 20h, te vejo lá! — Nossa conversa acaba ali, depois do leve susto que tomei e me pego pensando em tudo que teria que lidar naquela noite, não ficaria no encalço de Leanor, a deixaria aproveitar a festa e talvez em algum momento enxergasse uma oportunidade propícia para falar sobre o que realmente havia acontecido.
Nem que isso me custasse uns doze shots de tequila e uma dose de coragem para não fraquejar outra vez.
♆
Uma hora antes do início do caos.
O metrô está estranhamente vazio aquele horário.
Se tratando de Hongdae e de uma sexta-feira à noite, é normal que tenha o dobro de pessoas naquela estação esperando para se deslocar de Dongdaemun até o outro ponto movimentado da cidade, como a parte de Seoul que nunca dorme. Me sinto estúpido por ir, essa é a verdade. Leanor tinha deixado claro que eu a machuquei e ainda assim, estava indo até ela pra tentar consertar as merdas feitas. A culpa não era dela por entender algo de uma maneira distorcida, quem conseguiria interpretar um beijo de uma outra forma?
Não retribui o beijo de Jieun se foi isso que ela imaginou quando nos viu, a abracei uma última vez antes dela voltar ao dormitório e aconteceu. Talvez eu não tivesse deixado minhas intenções clara, mas em momento algum desde a sua chegada, pensei na possibilidade de voltar com ela. Estava dando um ponto final naquilo e deixando nossas partes mal resolvidas em um passado distante. Ao menos, ela havia sido honesta sobre o que aconteceu naquela noite com o Kim, tudo que havia sentido e me dado os seus motivos, não apenas deixado que eu entendesse ao meu modo e ignorado o que havíamos construído naqueles anos, mesmo antes da faculdade. Já Taehyung simplesmente ignorou tudo que aconteceu e seguiu sua vida, lidou da melhor forma que ele conseguia: fugindo da responsabilidade como o grande filho da puta que ele era.
Checo mais de uma vez as mensagens enviadas a Leanor e nenhuma delas foi sequer visualizada, não que eu estivesse ao menos pensando na possibilidade de que alguma fosse respondida, mas ao menos pensei que ela leria tudo o que falei depois de me ouvir hoje cedo. Mas eu estava errado. Outra vez.
O trajeto dura cerca de 40 minutos e agradeço por ter ao menos colocado roupas mais leves por baixo do sobretudo que estou usando. Estamos no início do Inverno e estou queimando de calor por baixo dessas roupas, me livraria dele no primeiro segundo, quando a bebida começasse a surtir efeito e a quentura habitual que rasgava o meu peito ganhasse força.
O álcool me deixava quente, em todos os sentidos. Até nos piores. Diria que principalmente neles, mas sabia que o grande motivo era meu nervosismo óbvio.
A próxima estação é a da Universidade Hongik e vejo a movimentação de um grupo de garotas reunidas na outra ponta do vagão e deduzo que façam o trajeto até o mesmo endereço que Hoseok havia me enviado, escuto o nome da República duas vezes no meio da conversa e tenho certeza que se trata do mesmo lugar, ao menos pouparia o tempo de usar o Google Maps e dar volta desnecessárias pelo quarteirão.
O prédio gigantesco e com janelas enormes de vidro não parecia em nada com uma República estudantil comum, mas tem um cara na porta usando a camisa do time da Hongik e pedindo a senha secreta que Hoseok havia me enviado: "SACO DE BOLAS", pouco criativo e meio óbvio, por alguma razão imaginei que os caras que vivem aqui usariam alguma parte do próprio corpo como senha só para ter algum prazer bizarro em ouvir garotas repetindo isso em voz alta, mas refaço o comando antes de avançar pelo lance de escadas quase infinito até a porta de vidro onde uma música familiar toca alto o suficiente para ser ouvida do outro lado da rua.
O primeiro rosto familiar que reconheço no meio das pessoas dançando ali, é o de Hoseok, ele está em progresso no meio das fases da embriaguez e consigo notar de longe.
Alguns olhares recaem sobre mim, talvez porque eu esteja vestido como Kylo Ren no episódio VIII de Star Wars: preto da cabeça aos pés, impossível de passar despercebido e com aquele cabelo então.
Caminho para dentro e procuro por ela, sempre a reconheceria pelos cabelos feito de um milhão de ondas, sempre parecendo que acabou de escapar do mar, e obviamente não demoro até vê-la do outro lado da sala, perdida no meio das luzes néon oscilando entre rosa, azul, verde e ciano, dançando de olhos fechados, como se não existisse ninguém ao redor além de Trine que gira segurando um copo multicolorido antes de virá-lo de uma vez só, sorvendo toda a bebida ali. Leanor não me vê naquela distância, mas eu a vejo perfeitamente.
Tem glitter dourado no seu rosto, um pouco nos cabelos e ela, como sempre, parece radiante, tão feliz que me pergunto qual é realmente a minha função ali, se estar perto de alguma forma arruinaria aquele momento bom em que ela está com seus amigos então a melhor forma de resolver as coisas é apenas deixá-la em paz, parar de machucá-la como havia pedido mais cedo, segurando as próprias lágrimas. Mas é tarde demais pra ir embora quando o meu coração aos poucos começa a girar ao seu redor, quando penso que vou me desvencilhar daquilo tudo, mesmo quando no fundo eu só queira ficar e porque assim como o meu coração facilmente a encontra, ela também me vê, parado entre a porta que divide duas salas gigantescas, como uma alegoria tosca no meio delas.
Seu sorriso se desfaz, assim como o olhar que parece voltar ao meu rosto mais de uma vez para se certificar de que era eu tava ali, outra vez, no meio do seu caminho sem ser convidado.
Por que caralho eu tive a brilhante ideia de me envolver nisso tudo? Por que não me mantive agarrado à má reputação que tinha construído e não escolhi sair ileso do resto? Por que não escolhi deixá-la em paz desde o começo?
São perguntas que nunca tem resposta, assim como tudo que aconteceu depois, tudo no fim das contas nunca foi previsto. Definitivamente não foi. Não previ me apaixonar, nem me envolver ao ponto de voltar aqui, como um cachorrinho obediente implorando pra ser perdoado, porque não ser perdoado parecia o pior cenário para se imaginar entre nós dois.
— O que você tá fazendo aqui? — O seu tom é ríspido e alto demais, sobrepondo a música que toca ao fundo, algum trap genérico que faz com que se tenha vontade de tirar a roupa.
— Eu só tô aproveitando a festa... — Digo, antes de puxar um copo aleatório esquecido por cima de uma das mesas e tomar um gole daquela mistura que tem gosto de Coca-Cola, cerveja e tequila. — E você? — Ela demora alguns segundos para responder e pela maneira como seus olhos piscam de forma lenta sei que está perto do limite, naquela fase que a sobriedade ainda luta contra o álcool.
— Tô só aproveitando a minha vida! — Rebate, tomando um gole da bebida colorida que alcança em uma bandeja esticada para o alto por algum dos caras do time. — Boa festa pra você, Jeon Jungkook! — Ela diz, antes de cambalear de volta até onde Trine está, se segurando no ombro de algumas pessoas que dançam aleatoriamente por perto.
E mais uma vez a possibilidade de ir embora e deixá-la aqui nesse estado passa a ser nula.
A vejo caminhar até a mesa de drinques diretamente para os shots de tequila, tomando pelo menos dois de uma única vez e vou me guiando atrás dos seus passos, no meio dos olhares que provavelmente se perguntaram o que caralho eu tô fazendo ali vestido daquele jeito, mas é ela. É tudo sobre ela no fim das contas. — Leanor, pega leve, isso é tequila pura! — Minha mão alcança a sua antes que ela pegue a próxima dose.
— Sai daqui! Eu não... — Ela respira fundo — ...não preciso de babá! — E outro shot de tequila é sorvido rapidamente. — Arriba, abajo, al centro, adentro! — Ela repete e lá se vai outra dose.
— É sério, vai devagar... Isso não te faz bem! — Tento alcançá-la outra vez e ela se afasta. — Estoy girando el copito en la cabecita! Arriba! — Ela repete em voz alta, em um espanhol improvisado e tosco. — Essa é pra você, Jungkook... — Grita, enquanto se livra do casaco que está usando e sobe na mesa onde os drinques estão sendo servidos, dançando de joelhos por cima dela, deslizando a mão no próprio corpo e rebolando de um lado para o outro.
Alguns caras se aglomeram ao redor da mesa naquele meio tempo que ela insinua que se livrará da própria blusa, mas o efeito é completamente contrário quando ela simplesmente curva a cabeça e coloca tudo para fora. Deduzia que seu jantar havia sido pizza e que ela tinha tomado muito mais bebidas do que eu sequer poderia imaginar, drinques frutados e alguma coisa com abacaxi. Parecia tonta e perdida. É o tempo que tenho de alcançá-la e levá-la até um lugar menos aglomerado, mantendo seu rosto para cima, evitando que engula o próprio vômito enquanto a carrego no colo.
Seus olhos estão quase fechados e ela não consegue sustentar a própria cabeça, mas não perde a oportunidade de ser sarcástica nem mesmo bêbada.
— Eu sei que você nunca me viu ser tão sexy assim... — Ela diz, antes de vomitar outra vez, agora, no próprio cabelo e nas roupas que está usando.
— É, pode ter certeza que não! — rebato. — Acho que tá na hora de ir pra casa...
♆
Início do caos.
Não encontrei os sapatos de Leanor.
Nenhum outro pertence além do casaco que havia trazido consigo no caminho de volta até o campus, cambaleando na grama até chegarmos ao prédio dos dormitórios.
No carro, havia dito uma série de coisas que não tinham sentido, alguma história sobre sua infância que terminou com aulas de Teorias Jornalísticas, estatísticas sem sentido sobre a quantidade de bactérias presentes no volante de um carro, assustando o motorista do Uber que provavelmente aumentou o volume da música no rádio para não ouvir aquela conversa, e de quebra, havia me presenteado com um jato de vômito no bolso lateral do meu sobretudo.
Então lá estava ela, descalça e com vestígios de drinque de abacaxi no próprio cabelo, apoiada em meu ombro avançando até os elevadores, precisaria de um banho, roupas limpas e descansar pelas próximas doze horas, provavelmente o peso do mundo inteiro estaria despencando em sua cabeça pela manhã.
Mas naquele momento ela não se preocupa com aquilo, enquanto encara o próprio rosto no espelho do elevador como se estivesse perguntando quem ela era, as pálpebras demorando a fechar e abrir e uma dualidade que nunca vi em Leanor.
— Você sabe quem sou eu? — Pergunto, quando seu olhar perdido vagueia até mim.
— Sim, você é o filho de Satã....— Bom, ao menos ela me reconhecia, o que ainda era um bom sinal. — Veio buscar a minha alma, certo?
— É, meio que isso. — Respondo, tentando segurá-la um pouco mais perto. — Vou levar sua alma, tipo um ceifador.
— Você é bem sexy pra um ceifador. — Ela diz, sorrindo de um jeito engraçado.
Quando as portas se abrem, Leanor não caminha para fora, insistindo que o piso está gelado demais e vai acabar com os dedos congelados pelo frio, estava sem sapatos há horas, sem meias ou nada para protegê-los e não penso duas vezes antes de colocá-la no colo e avançar pelo corredor escuro com a ajuda da luz do meu próprio celular, enquanto ela se encolhe como um bebê morninho em meus braços.
— Prontinho, agora vou colocar você no chão só pra abrir a porta, ok? — Digo e ela se prende com ainda mais força ao redor de meu pescoço — Não! Tá frio!
— Coloca os pés por cima dos meus enquanto eu abro a porta, você pode? Só vai demorar um segundo e te pego de novo! — É como tentar convencer uma criança birrenta, ela não gosta da ideia, mas obedece, deslizando lentamente o corpo para baixo sem nenhum equilíbrio, apoiando seu peso por cima de meus pés.
— Eu gosto quando você me pega... — Sua voz é um sussurro, um traço de voz que se perde naquele espaço. Se tinha algo que deduzia que Leanor podia ser quando estava bêbada, era sincera. Teria dificuldade em ouvir certas coisas, principalmente em velar meu próprio sono naquela noite quando ela estava ali, bem ao lado de minha cama com cara de perigo iminente.
Seus pés são minúsculos por cima de meus sapatos. E embora estivesse relutando com aquele pensamento durante a noite inteira, ela está perto demais para que eu ignore tudo que sinto e finja que não me lembro de tudo que aconteceu aqui, de tudo que foi dito e pensado enquanto quebrávamos uma ou duas regras de uma vez só.
Assim que abro a porta e a lufada de ar quente do aquecedor nos alcança, Leanor relaxa um pouco em meu ombro, o suficiente para que eu apenas empurre a porta com o pé e a ergua outra vez pela cintura, segurando-a como uma criança.
— Ok, vamos lá, você precisa tomar um banho rapidinho... Fica sentadinha aqui que vou buscar uma camiseta para você vestir. — Apoio suas pernas contra a cama enquanto busco alguma peça de roupa que ela possa usar apenas para não ficar completamente nua enquanto está molhada, nem consigo ponderar como isso seria errado pra caralho, mas no meio tempo que levo caçando algo no armário, Leanor já se desvencilhou da própria calça e está com a cabeça presa na gola blusa que está usando, rindo sozinha, mas rapidamente a solto com medo que sufoque no meio do próprio cabelo.
— Eu te disse pra esperar... — Suas mãos vão até o sutiã para retirar aquela peça também, mas consigo pará-la naquele instante. — Toma, veste essa camiseta, você não precisa tirar tudo...
— Mas você já viu tudo, não tem pro... não tem problema. — Ela rebate, lutando contra o feixo do sutiã que parece ter o dobro de dificuldade para ser aberto. Sorte a minha. Sorte que alguma divindade ainda olha e cuida de mim.
— É uma situação diferente, mas vou vestir pra você, vem, levanta os braços... — Leva menos de um minuto para que Leanor ergua um pouco o corpo com dificuldade e a camisa deslize cobrindo-a novamente. E por baixo da camisa, ela consegue se livrar do sutiã.
Me livro do sobretudo, dos sapatos e da camisa que estou usando e prendo os cabelos em um coque ridículo antes de levá-la até o banheiro, checando a temperatura da água no chuveiro.
Leanor leva o dobro do tempo para executar qualquer ação, se movimenta lentamente até me alcançar como se fosse cair em um sono profundo a qualquer instante, se apoiando contra o meu peito e deixando os resquícios do glitter preso em seu rosto, na minha pele.
— Não quero entrar...— Ela balbucia as palavras de olhos fechados, se prendendo tão forte contra o meu peito que me pergunto se vou realmente ter coragem de fazer aquilo com ela , mas já imaginava que não teria outra escolha a não ser me molhar junto.
A péssima decisão de escolher uma camiseta de cor clara só evidencia o que estava a todo custo tentando evitar, revelando mais do que queria ver quando aos poucos Leanor se desprende de mim, talvez retornando a si mesma, com um pouco da lucidez dando as cara, a camisa molhada contornando seus seios, a cintura e tudo que já toquei e experimentei como se pudesse dizer que era meu. Por um segundo ela foi minha, rápido como despertar de um sonho bom.
— Posso lavar o seu cabelo? — Pergunto, antes de colocar um pouco de shampoo na mão e deslizar entre as ondas bonitas que contornam seu rosto. Leanor era uma mulher linda, puta que pariu!
— Uhum! — Tão bonita, que me sentia profundamente culpado pelo pensamento que me consumia naquele momento, enquanto ela fecha os olhos e deixa que a água remova o glitter dourado, da maquiagem borrada escorrendo pelas bochechas rosadas, abrindo-os novamente, de leve, antes que eu termine a minha tarefa de tirar todo o shampoo que escorre pela camiseta, fazendo espuma em nossos pés. Ela puxa uma das minhas mãos apoiando por cima de seu coração, está calmo, bate em um ritmo desacelerado. — Você vai me beijar agora? — Ela pergunta, com os dedos da mão livre fincados em minhas costas e o equilíbrio duvidoso. Se eu fosse honesto com tudo que sinto e tudo que tenho vontade, seria desonesto com ela, a melhor escolha é fingir que ali sou apenas o seu amigo, não um cara apaixonado, que meu corpo não está reagindo como esperado.
— Não beijo garotas bêbadas. — Digo isso e ela ri, as mãos descem até barra ensopada da camiseta que está usando, puxando-a para cima, largando em um lugar qualquer dos azulejos brancos do meu banheiro. — Vira, quero terminar de tirar a espuma...— Digo, evitando olhar seus seios sem nenhuma proteção naquele momento, mesmo que ela mantenha os olhos fixos e inexpressivos em mim.
Ela estava usando uma calcinha bonitinha com bolinhas amarelas, o tecido parecia fino demais, úmido demais, como aquele pensamento dignamente filho da puta que me consome, mas não mantenho meus olhos ali, nem em quanto tudo me lembrava a nossa primeira noite, provavelmente ela se arrependeria disso tudo pela manhã e eu não queria ser o responsável por mais uma vez ser o motivo dos seus arrependimentos.
— Você fica engraçado de cabelo molhado... — Ela comenta, antes de virar em direção à parede do chuveiro e apoiar suas mãos contra os azulejos, me olhando por cima do ombro. — Assim?! — Respiro fundo outra vez e refaço o trajeto deixando meus dedos deslizarem até as pontas do seu cabelo, na metade das suas costas e voltando, tocando de leve a pele de sua cintura, tirando toda a espuma.
— Seu toque é gostoso, Jun... — Ela diz, com um fio de voz que me silencia de imediato. Não tenho resposta para aquilo, não tenho e não quero ter. Mesmo tão perto de Leanor daquela maneira, e puta que pariu, com um pau latejando dentro da própria calça, me pego lembrando que foram exatamente aquelas palavras que ela usou na noite do Halloween, quando suas mãos pareciam fincadas na carne de minhas coxas me incentivando a ir mais e mais fundo dentro dela, e eu sei que ali, no meio daquele caos, as coisas são infinitamente mais problemáticas do que sentir um desejo desmedido ou reviver uma noite que olhando agora parece errada, quando estamos tão machucados. Só não me diga essas coisas, Leanor. Só não continue com esse jogo.
— Vou buscar uma toalha pra você, tá? — Digo, no instante em que desligo o chuveiro e ela se mantém paradinha ali, com os olhos fixos nos próprios pés.
Tinha separado um moletom um pouco mais confortável e quente para ela usar naquela noite, um par de meias que provavelmente iriam até a altura de seus joelhos e mesmo que minha insistência não resultasse em nada outra vez, dormiríamos em camas separadas.
Improvisaria com cobertores e toalhas dobradas, deixaria que Leanor ao menos soubesse que não quis em momento algum me aproveitar de sua vulnerabilidade para justificar o motivo de tê-la trazido para casa, queria que entendesse, pelo menos de alguma forma, que estaria disposto a cuidar dela e amá-la da maneira que ela merece ser amada, não que me aproveitaria de uma oportunidade como aquela para parecer um héroi. Se tinha feito aquilo sempre seria com a intenção de protegê-la, nunca de machucá-la.
— Vem cá, vou te vestir... — Digo, enquanto me sento na ponta da cama e desenrolo o nó de sua toalha feito no trajeto do banheiro até a cama, buscando o moletom logo em seguida.
A incentivo a dar um passo à frente, no espaço entre minhas pernas, antes de usar a toalha para secar as outras partes molhadas. E ela permanece me olhando do alto, como se pudesse ler cada um dos meus pensamentos, o cheiro frutado que se desprende de sua pele parece ser quase natural, eu ainda sinto o seu perfume quando se movimenta, mesmo que lentamente. Finjo que não percebo aquilo, enquanto deslizo a toalha por seus braços e me livro da única peça molhada restante em Leanor, puxando a calcinha ensopada para fora de suas pernas antes de vestir o moletom que havia previamente separado. — Você é o pior tipo de cara que existe pra alguém se apaixonar, sabia? — Sua voz rompe nosso silêncio, chama minha atenção de volta para seu olhar. — Você parece inofensivo, mas não é... — ela começa. — Nunca foi.
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Eleanor, pt. 2
Porque o nosso caos é sempre o mais difícil.
São as primeiras vezes que determinam a qualidade de nossas experiências até as segundas, terceiras e demais chances de viver algo. São as primeiras vezes que nos marcam, ficam presas na nossa memória e são o comparativo para todas as outras.
Depois de Jungkook, me perguntava se em algum momento havia, de fato, me apaixonado por alguém, gostado de Jimin como pensei que tinha, amado Taehyung de um jeito platônico e estranho que ainda me deixa confusa, mas nada nunca foi como ele e eu sei disso.
Era como a primeira vez.
Talvez meu corpo tão tenha se livrado completamente do álcool na corrente sanguínea e aquilo fosse um efeito lento e gradativo da bebida ainda surtindo efeito sob mim, mas definitivamente não ameniza as coisas. Ainda é madrugada e não consegui dormir o tanto que deveria, mas Jungkook está ali, ao meu lado, completamente apagado pelo cansaço.
Lembrava em flashes de memórias do trabalho que ele havia tido me trazendo até o dormitório depois de ter deixado um rastro de vômito pelo caminho, depois do banho e dos seus cuidados em me deixar confortável, no meio de um silêncio de coisas que precisam ser gritadas mas no fundo a gente nunca sabe como dizer, e entre um comentário que não teve resposta e uma ideia errada sobre tudo, preferi fingir que estava sonolenta e pouco lúcida, quando na verdade me lembrava de quase todas as coisas.
Não faz sentido continuar aqui, eu sei disso.
Deveria voltar ao meu quarto e deixar um bilhete agradecendo pelos cuidados, não achar estranho e profundamente cuidadoso que Jungkook tenha tido o trabalho de vestir em mim uma de suas peças íntimas para que eu não me sentisse tão desprotegida e me envolvido em um manto de proteção feito de cobertas, dormindo apenas com uma camiseta sem mangas e sem absolutamente nada para protegê-lo, ainda sim, estava quente. Quase febril, como sempre.
Sabia que ele dificultava tudo agindo dessa forma, como se no fundo se importasse o suficiente para cuidar de mim, mesmo que no minuto seguinte Jieun chegasse aqui para reaver o posto que era dela em seu coração, um lugar que eu não poderia alcançar mesmo se quisesse. E era ridiculamente óbvio.
Seria ainda mais humilhante continuar aqui e chorar, exatamente como quero fazer agora, tão perto e longe ao mesmo tempo. Eu imaginava que meu retorno a esse quarto traria boas lembranças de como tudo começou, mas agora me sinto dando adeus a tudo que foi meu pela metade e aquela parte dói muito mais.
— Leanor? Tá sentindo alguma coisa? — Sua voz me puxa de volta no meio de um pensamento, enquanto ele acende sua luminária de cacto e esfrega os olhos como uma criança que enfrenta a claridade da manhã. Estou sentindo tanta coisa, Jeon. E mesmo se colocasse tudo em uma lista, mantivesse tudo em uma ordem clara, você não entenderia.
— É, eu... tô meio enjoada, mas vai passar. Pode ir dormir. — Digo, quase imediatamente, quando ele caminha até sua mesa de trabalho e busca um pouco de água pra mim.
— Toma um pouquinho, você bebeu tanta tequila que não faço ideia de como tá acordada...— Talvez você não saiba, mas nenhum desses inibidores de sentidos funcionam de verdade quando o grande causador de todos aqueles sentimentos está bem ali, deitado ao seu lado.
— Nem eu. Mas... as coisas vão ficar bem, vamos só dormir!— Digo e ele assente, caminhando até sua cama improvisada. — Você sabe que pode dormir aqui comigo se quiser, não é? — Sua pergunta exige uma resposta imediata.
— Jungkook, você está com a Jieun e eu não acho que isso seja certo. — Começo. — Agradeço por ter me ajudado hoje mas... — Outra vez minha respiração parece pesada. — Não vamos mais confundir as coisas, não somos mais nada um do outro.
— Nós somos amigos, não somos? — Ele pergunta. — E não existe nada entre a Jieun e eu...— Ele repete.
— O problema é esse, eu não quero ser sua amiga... — Talvez seja aquela a resposta que ele não quer ouvir, mas que eu sabia que precisava dar. — Eu não sou sua amiga. — Repito. — E como você pode me dizer que não existe? Eu vi vocês. Quer dizer você costuma beijar pessoas pelas quais você não sente nada por aí e eu tava aqui achando que era a única com quem você fez isso?! — Outra vez o silêncio parece pesar entre nós, como se aos poucos pudéssemos aceitar os fatos e não mais questioná-los.
— Eu só tava tentando resolver as coisas, não tive a mínima intenção de beijá-la... — Ele começa. — Não foi intencional, as coisas só aconteceram... — E a resposta que temia ouvir é a primeira que escuto: as coisas só aconteceram.
Jungkook está certo, tudo vai acontecendo e acontecendo até que apenas se perceba que não tem mais volta. Não tenho mais nada a dizer, sei que se começar a falar outra vez sobre nós, eu sairia ainda mais machucada daqui, era o fim e só me restava aceitar isso: a nossa teia de mentiras, de histórias pela metade e incertezas tinham nos deixado daquele jeito, sem saber o começo, o meio e o fim de nenhumas das coisas que começamos.
Estou chorando. Como uma completa idiota, estou chorando na frente dele como nunca queria ter feito desde o primeiro momento.
Eu sou patética. Completamente patética. E agora ele também sabia disso.
Mas diferente do que imaginava, Jungkook só me abraça. Me cerca do seu calor constante e do seu cheiro gostoso de banho, me mantém junto do seu coração que não parece uma harmonia partida como o meu, mas até isso nele soa bonito e me odeio por saber que não importa o que faça agora, nada, absolutamente nada, vai me fazer parar de amá-lo.
Amor. Eu sempre tive medo dessa palavra, mas nada parece tão certo naquele momento, nada se encaixaria para exemplificar melhor o que tô sentindo. Amor. Ele era amor. Dentro e fora. Em cada detalhe estúpido e até nas coisas que não gosto. Tudo sobre ele era amor.
E eu teria que aprender, no fim das contas, a também viver sem isso.
— Você sabe que faria de tudo pra te proteger, Leanor. — Ele começa. — Absolutamente tudo. Até mesmo ficar longe de você, se achar melhor... — Não tenho muita força de raciocinar, nem sigo uma linha que faça sentido. Só o aperto contra o meu corpo com o máximo de força que consigo, porque se começar a falar agora, pioraria a quantidade de sentimentos perdidos dentro de mim.
Jungkook se desvencilha de mim, caminhando até a sua mesa de trabalho e vasculhando nas gavetas por alguma coisa que não consigo ver com clareza o que é.
— O que tá fazendo? — Pergunto, quando ele retorna até onde estou, puxando a barra do moletom que estou vestida para cima e retirando do meu corpo, seguido das meias e não consigo me mover, nem sei exatamente o que pensar.
Ele faz o mesmo processo, retira a camiseta que está usando e se coloca de pé, diante de mim.
Os cabelos ainda um pouco úmidos dele, são puxados para trás com força pela própria mão, antes dele prendê-lo com penas de pássaro.
— Fica de pé... — Ele diz, antes de esticar as mãos para eu alcançá-lo.
Ainda não consigo entender o que está acontecendo, mas quando ele pega as tintas dispostas por cima da mesa de cabeceira, entendo o que quer fazer. É um dos seus rituais.
Seus dedos afundam na tinta vermelha e atravessam meus ombros em um risco horizontal, seu polegar desliza de meus lábios até o queixo, marcando um traço bem ali.
— Toda a proteção que é minha, agora também é sua. — Ele começa. — Tudo que você sentir, eu também sinto. — Outra vez a tinta vermelha vira um risco que vai de um canto a outro de minha testa.
— Seu coração e o meu agora são um só. — E então sua palma é marcada em meu peito.
— Como filho legítimo do Deus-Sol, protegido pelo espírito de tudo que é vivo, compartilho minha proteção. — Seu rosto toca o meu, sua testa apoiada contra a minha, e então entendo, que aquela é a forma mais bonita que eu poderia conhecer o amor. Sendo protegida por ele.
— Coloca sua mão sobre o meu peito, assim... — ele diz, apertando meus dedos por debaixo dos seus. — Sente?! Temos o mesmo ritmo agora.
Não penso muito, não deduzo tantas coisas, eu apenas o beijo.
Com tudo que sinto, de uma vez só. Deixando que a tinta vermelha marcada em mim, também o marque, como rastros que o amor deixava aos poucos, algo quase mágico que eu sabia que duraria apenas por uma fração de segundos até tudo começar a desmoronar.
—
Aviso: *O ritual apresentado no capítulo é meramente ficcional e tem o intuito apenas de ilustrar de maneira clara os sentimentos de um personagem para com outro, sem quaisquer semelhanças com rituais reais da cultura maori.
(Para entender como funciona melhor os rituais maori: teara.govt.nz/en/traditional-maori-religion-nga-karakia-a-te-maori/)
*Cena da dança na mesa foi inspirada no meu filme favorito: 10 coisas que eu odeio em você, disponível no Disney+.
N/A:
Como nosso casal não-casal avisou, já demos início ao caos em CCEG! E vamos de surto?! Obrigada por terem lido e peço desculpas por qualquer errinho, já que se trata de um capítulo bem extenso, algumas coisas podem passar despercebidas na correção.
Mas queria conversar com vocês sobre algo que considero importante falar, principalmente pra quem acompanha não só CCEG, como as minhas outras histórias.
Ano passado foi um período extremamente caótico na minha vida, principalmente em relação à minha escrita. Passei por inúmeros bloqueios criativos e crises de ansiedade que de alguma forma me tiraram um pouco do prazer de escrever.
A escrita sempre teve um papel importante na minha vida e uma maneira de me conectar - também - comigo mesma. No último ano passei por uma crise de exaustão emocional e acabei me distanciando de tudo que me fazia sentir pressionada, isso incluía algumas histórias e algumas atividades que fazia. Me sentia extremamente pressionada e acabava ficando triste e insatisfeita com absolutamente tudo que escrevia e ainda estou - aos poucos - me recuperando dessa fase ruim, inclusive retomando aos poucos a finalização do meu primeiro livro (já que ainda não me sinto 100% segura)
CCEG tem sido provavelmente uma das poucas histórias que escrevo sem me sentir pressionada, com uma leveza que até me assusta, e por isso, as atualizações tem sido muito mais frequentes do que as outras: não me sinto pressionada a escrever.
É muito difícil ter um trabalho julgado do outro lado quando você sente que aquilo não é 100% você, eu acredito que um trabalho bem feito não é só quando se tem uma escrita impecável, cheia de palavras bonitas e conotações poéticas, mas sim histórias que te fazem sentir algo verdadeiro, que mexem com você e com suas emoções e pra mim, saber que escrevi algo apenas para ser "bonito", mas sem nenhuma emoção, não me vale de nada.
Acredito que aos poucos as coisas voltarão ao normal, que voltarei a escrever como antes, sem me preocupar com tantas coisas e só pela felicidade de ter esse encontro comigo mesma, mesmo sabendo que sou muito sortuda por vocês acompanharem e gostarem tanto das baboseiras que escrevo. Sou infinitamente grata e feliz por isso!
Peço que compreendam essa fase difícil, eu sei que é chato, mas eu tenho dado o meu melhor para tudo ficar bem.
Não abandonei nenhum dos meus plots, nenhuma das minhas histórias pendentes e todas elas, repito, todas terão seu momento assim como CCEG está tendo.
Agradeço a todos por tanto carinho comigo sempre!
Com amor, S.
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