10. Água-com-açúcar, quase-amor e outras dores.
Restava apenas uma semana até o fim do acordo. Sete dias. 168 horas.
Provavelmente reviver o fim de semana em Busan em um loop infinito nos últimos dias poderia ser categorizado como uma espécie de castigo que me fazia voltar até o motivo inicial daquilo tudo e não ter resposta. Me sentia diferente, essa era a verdade. Alguma coisa tinha mudado ali — entre a festa de Halloween, o beijo no refeitório e o fim de semana em Busan —, de alguma forma, a imagem mental de Jungkook no meio de minha família como um membro agregado e disforme aos poucos não parecia mais tão tosca, mamãe o adorava de maneiras que nem mesmo eu conseguia compreender, papai poderia canonizá-lo depois de descobrir que além de tudo Jungkook era um estrategista nato quando se tratava de partidas de UNO.
Era algum tipo de realidade paralela em que havíamos entrado e que já não me incomodava tanto. Eu sabia que seria uma saída dolorosa, estúpida e solitária fingir que não estava pensando em tudo que tínhamos feito nas últimas três semanas, não colocaria em pauta os grandes acontecimentos porque no fundo o que realmente fazia diferença eram os detalhes e o papel que eles desempenhavam dentro de nosso acordo completamente fajuto: me virar do avesso.
Não falava sobre nossas vontades. Não, não era só sobre o que Jungkook e eu havíamos começado naquela noite no seu dormitório, em uma decisão impulsiva e que parecia certa demais no momento. Porque aquilo pareceu certo pra caralho e eu não posso negar.
Mas algo crescia escondido dentro de mim, talvez só tenha realmente me dado conta do tamanho daquele sentimento na noite da condecoração de River, onde poderia culpabilizar o barato de um baseado forte e as risadas sem motivo aparente nas horas seguintes, quando vimos o nascer-do-sol pelas portas de vidro do quintal, sentados no chão frio da cozinha comendo pizza gelada, mas estou sóbria, lúcida, perfeitamente sã e ainda assim, sinto aquele frio na barriga quando penso sobre tudo que aquele fim de semana significou.
Minha rota de pensamento não segue a mesma linha por muito tempo, perco a concentração com uma facilidade absurda quando atravesso o corredor até a aula de Teorias de Jornalismo e o vejo ali, de pé, na porta da sala de aula, de costas para a entrada principal como carma que retorna materializado.
Pela maneira como seus ombros se movem enquanto puxa as mangas da camisa até os cotovelos, sei que está conversando com alguém, está segurando o seu caderno de croquis com uma das mãos enquanto a outra suspende a mochila em um dos ombros.
Reconheceria aquele par de tênis esportivos pretos e o cabelos negros que sempre fazia um redemoinho na nuca em qualquer lugar que fosse, estava em um estágio tão ridículo de envolvimento que já conseguia reconhecer minhas coisas favoritas em Jungkook, poderia listá-las se não tivesse a intenção de me concentrar nelas, mesmo quando não quero, mas acabo levando a minha falta de atenção a outro patamar e tropeçando em um vaso de plantas posto entre uma porta e outra e me pergunto de quem foi a ideia absurda de colocar um vaso bem ali?
Por sorte, o alcanço antes que se estilhace no chão e se torne pedacinhos miúdos de minha própria dignidade, distraída demais para não notar algo tão ridiculamente grande.
Essa é a minha versão meio desconhecida, a quem fui apresentada — com muita relutância —recentemente, que fica nervosa, tensa e sem nenhum senso de coordenação motora quando Jungkook está por perto. E ele me pega ali, desprevenida, agarrada ao vaso gigantesco de porcelana chinesa que provavelmente está na universidade há uns 50 anos, e sorri — não pelo barulho de minha falta de tato ecoando pelo corredor da KYU — , mas com sua felicidade inabitual e seus sorrisos que agora já não pareciam mais tão raros pra mim.
Olhando pra ele agora, tinha certeza de que as coisas tinham simplesmente mudando entre nós, não queria rotular aquilo, mas gostaria de entender, principalmente o ritmo que meu coração acelera e minhas emoções se movimentam sem saber exatamente o que sentir naquele meio tempo que ele caminha em minha direção.
Sinto que quanto mais avanço, mais longe tudo fica. Quanto mais entendo, mais as dúvidas se multiplicam. E quanto mais me aproximo de Jungkook, mais as coisas perdem completamente o sentido. Tudo. Desde o começo.
O barulho no corredor aos poucos parece ser silenciado pela voz vaporosa e suave dele, e me pergunto por que porra eu continuo notando cada detalhe — a pinta bonita abaixo do lábio, a covinha na bochecha esquerda, os olhos brilhantes com cara de infinito estrelado — , todas as minhas opções cafonas de frases de efeito. Todas as mais poéticas e banais pra caralho. Tudo. Absolutamente tudo que eu tinha guardado aqui dentro pra algum textão clichê que provavelmente escreveria no futuro em uma rede social, qualquer uma delas parecia perfeitamente plausível de ser encaixada naquele cenário, com Jeon Jungkook como papel principal — Você tá sabendo? — Ele começa e tento não parecer tão atenta a sua boca e minha vontade de beijá-la de uma maneira estranhamente automática.
— Sobre o que exatamente? — Permanecia agarrada ao vaso, como se fosse sair por aí girando com ele nos braços. Um pouco patética, pra variar.
— As aulas nesse prédio foram canceladas por conta da tempestade, você não recebeu a notificação? — Não sei. Estava ocupada demais no meio de uma epifania sobre o nosso fim de semana. Mas ela está lá, a mensagem, congelada no display do celular assim que verifico, com a ordem de que todos os alunos daquele prédio voltem para os dormitórios ou se abriguem na Área Comum, as refeições seriam servidas lá até o alerta de segurança voltar ao sinal verde. Já estava acostumada às tempestades de Outono, as chuvas sem trégua naquela época do ano, um pouco antes do início do inverno, como um sinal claro de que o clima não era tão ameno assim, os sinais vermelhos estavam por ali o tempo todo, uma prova de que nada nunca era tão inofensivo quanto parecia. E não falava apenas da chuva.
— Ótimo, não tava nenhum pouco a fim de assistir aula hoje. — Digo e ele sorri, mas tudo parece um pouco estranho e robótico demais, não apenas a sua aproximação cautelosa e lenta, como se estivesse checando o terreno para se certificar de que uma dinamite não explodiria prontamente, mas como reage ao que digo, com aquela expressão de quem está pronto para dizer algo que não sabe como.
Droga, o pouco tempo daquele não-namoro já tinha me feito conhecer Jungkook bem o suficiente pra deduzir que se tratava de algo errado, até mesmo aquele silêncio estranho sempre queria dizer alguma coisa.
— Aconteceu algo? Se for por conta da tempestade, não se preocupa, nada pode ser pior que aquela de 2015! — Ele sorri outra vez, mas são seus olhos que denunciam o seu medo mesmo que eu não saiba exatamente do quê.
— A Jieun voltou... — Sua jugular se movimenta sozinha, a inquietação das suas mãos que não sabem exatamente o que fazer, o que dizer em seguida, mas o que exatamente ele espera que eu faça?
— Ok — começo — E o que isso significa, exatamente? — Por alguma razão eu tenho medo da resposta, se ele entender o que quero perguntar nas entrelinhas, se a volta de Jieun significa o fim do acordo, o fim de seja-lá-o-que for que começamos naquela noite, no meio da nossa própria confusão, não sei se quero saber agora. Mas é o silêncio dele que me mata, que estranhamente me machuca quando penso que ele tem tanto receio de responder a verdade porque sabe que isso de alguma forma vai me ferir.
Talvez ele ainda goste dela e eu sei disso. Eu soube desde o começo.
Mas porque agora, exatamente agora, não me sinto pronta pra ouvir aquilo vindo dele?
— Acho que precisamos conversar em outro lugar — Ele diz e seu olhar passeia pelo meu rosto tentando descobrir se aquela informação tinha me afetado da maneira que ele imaginava que afetaria.
Sua mão agarra a mão, nos puxando na direção da saída, para o prédio dos dormitório e consigo sentir a sua pulsação a medida que meu braço toca seu pulso de leve, como se pudesse sentir os segredos que ele nunca me mostra. E Jieun é um deles. Talvez o mais enraizado e profundo. O que mais fere. Ela parecia distante, como um fantasma do Verão passado, mas foi invocada e trazida dos mortos como a certeza de que as coisas de alguma forma sempre retornam uma hora ou outra, e ela também voltou. Parecia ter calculado o tempo certo para aparecer, precisamente naquela última semana, como se no fundo soubesse que a realidade iria nos atingir de qualquer forma: toda essa brincadeira de namoradinhos também iria acabar, certo? Certo.
Merda, eu sabia disso pra caralho, mas imaginar o fim de tudo me faz pensar no quanto fui infantil por ter apenas começado aquele plano, traçado aquela rota para alcançar Taehyung e de alguma forma, ele se tornar a última pessoa em que tenho pensado nesse tempo todo e talvez eu não tenha dimensão do quanto tenho sido egoísta. Principalmente com Jungkook.
Quando chegamos ao dormitório, sou atingida pela energia das lembranças daquela última vez que estive ali. Pela expressão de Jungkook quando dá espaço para que eu avance no corredor estreito que separa a porta do restante do seu quarto, sei que ainda penso nisso, no que fizemos sem preocupação alguma do que poderia acontecer depois.
— Quer beber alguma coisa? — Ele pergunta, enquanto larga os sapatos no pequeno batente depois da porta. Um calmante, água com a açúcar, sei lá. Qualquer coisa que não me deixe cair de ansiedade na próxima meia hora.
— Uma cerveja?!
— São nove da manhã, Leanor.
— Ok, então eu quero uma cerveja. — Digo e ele sorri, buscando uma garrafa no frigobar ao lado de sua mesa de trabalho. — Então, o que quer me dizer? — Estou impaciente demais para arrodeios, contornos gigantescos do assunto que eu sabia exatamente que se tratava ali. Tome um gole da cerveja gelada demais enquanto observo Jungkook enfiar a mão no próprio cabelo, puxando-o para trás antes de me olhar uma outra vez.
— Tem algo que quero te contar sobre a Jieun e eu... — Ele começa. — Acho que é mais do que justo que você saiba disso, não sei como as coisas vão ficar agora que ela voltou, ainda é estranho, mas sei lá, você me perguntou sobre isso uma vez e ... — Ele pausa, morde o próprio lábio como se tivesse congelado o próprio pensamento, se ele está fazendo tudo isso pra me dizer que ainda gosta dela, é melhor que diga logo, de uma única vez, como arrancar um curativo.
— Você sabe que o Taehyung e eu éramos amigos, não é? — Ele respira fundo antes de caminhar até a cama — Na verdade, éramos tipo "melhores amigos" desde que tínhamos, sei lá, uns 6 ou 7 anos e na adolescência, você deve imaginar, ele ficou popular e as garotas viviam cercando ele de um lado pro outro, só uma delas não queria nada com ele, típico do Kim, sempre querer o impossível, considerar tudo um desafio — Ele sorri, provavelmente porque aquilo soa estúpido demais quando dito em voz alta, irreal o bastante para ser quase engraçado. Mas não é.
— A Jieun e eu começamos a namorar nessa época, e inclusive entramos pra faculdade juntos, foi quando toda essa merda aconteceu... — Ele parece desconfortável com a situação, mas mesmo assim continua — Eu lembro que naquela tarde, eu saí mais cedo para dar aulas no Dojang e por alguma razão quando cheguei, fui direto vê-lo, sei lá, dizer um oi, jogar videogame, alguma coisa idiota desse tipo, dividíamos o dorm naquela época, era só algo que eu costumava fazer... — Seus dedos tamborilam na própria perna enquanto me conta com detalhes a história, me sinto estranhamente culpada, principalmente por estar ali depois de tudo que havia pedido.— Eu abri a porta, chamei o nome dele, e caralho, eu reconheci a voz dela. Eu só... eu sabia que era ela. E bom, o Kim e a Jieun estavam... estavam transando na porra da minha cama. — Ele termina, puxando a garrafa da minha mão e tomando um gole da cerveja fria, meus olhos não se movem, permanecem fixos nele, mesmo que eu não o veja realmente, estou só tentando digerir o que ouvi. Tentando entender o que não via e agora vejo. O quanto Jeon tinha sido realmente machucado. O quanto fui estúpida com ele. O quanto tudo, absolutamente tudo ali era ridículo. E aquela culpa era só minha. Eu sabia sobre aquela história, eu sabia sobre a garota pega no quarto do Kim, mas jamais poderia imaginar que se tratava da namorada de Jungkook. Ex-namorada.
— Eu quebrei a cara dele e bom, não me orgulho disso... — Ele continua e então entendo o motivo dos boatos sobre Jungkook e da implicância de Dong-Yul naquele dia no refeitório. Era sobre Kim. Sempre era sobre ele.
— Eu-eu nem sei o que dizer, Jeon. — Começo. Mas sei que nenhuma daquelas palavras significa nada, na verdade. — Eu sinto muito.
— Tudo bem, você queria saber a história e bom, agora você sabe... — Ele toma um outro gole da cerveja, antes de se livrar a camisa xadrez que está usando por cima de uma camiseta preta. O álcool na corrente sanguínea o deixava quente, me lembrava disso.
— Desculpe por isso, desculpe por ter te pedido isso... — Não precisava explicar, nem mesmo agora. Ele sabia que era sobre o acordo. Sobre a porra da ideia ridícula que tive. Sobre ter deixado que ele se sentisse outra vez usado, porque era isso que eu sentia: como se tivesse jogado Jungkook diretamente no meio de uma parte ruim de seu passado e o obrigado a ficar lá, por mim.
— Eu aceitei o acordo porque quis, Leanor. Eu quis. Você não tem culpa de absolutamente nada e... — Ele para um instante, apoiando as costas contra a parede enfeitava de pôsteres de seus filmes favoritos. O cenário perfeito para Jungkook, o protagonista de sua própria narrativa. — Se eu deixasse as coisas do jeito que estão, me sentiria um completo cuzão, você merecia saber quem o Taehyung é — Ele respira fundo, quase tão alto quanto a tempestade que lentamente despenca lá fora. — Se ele te machucasse, nem sei o que faria... — E é por conta de uma claridade extrema pelas frestas da sua persiana, seguido de um trovão ruidoso que deduzo que não devo sair dali até ter minhas respostas, sejam quais forem as perguntas.
— Nós ferramos quase todas as regras desse acordo, Jungkook! — Deito na sua cama, de olhos fechados e respiro fundo, quando lentamente os abro, vejo que ele pendurou estrelas no teto, algumas que poderia jurar ter visto na noite em que estive aqui. Ele havia trazido-as pra mim, como naquele livro que tinha lido há um tempo. Estrelas brilhando só pra mim.
— Fodemos tudo! Absolutamente tudo! — Ele começa. — Mas você se arrepende do que fizemos na noite do Halloween? — Estremeço. Não esperava aquela pergunta, não naquele momento. Não quando estamos sozinhos de novo, onde tudo aconteceu.
— Não, eu sei que foi só... sexo, não é? Algo casual, sei lá como chamam. — A verdade é que não havia me sentido assim, tinha ido até o fim porque me senti segura e porque tudo aquilo pareceu tão fodidamente certo que pecaria contra mim mesma se dissesse não.
— Pra mim não foi só sexo... — Outro trovão ensurdecedor e a intensidade de uma claridade absurda atravessam o quarto. As luzes se apagam e o som suave do aquecedor é silenciado.
Escuto apenas a respiração de Jungkook, no escuro, e tudo ao meu redor parece outra vez insuportavelmente quente.
— E o que foi então, uh? — Pergunto e tenho medo de ouvir a resposta, porque sabia que qualquer uma delas, naquele dia, poderia mudar tudo. Aumentar a bagunça que existe ali, entre nós dois.
Minha mão toca seu peito de leve, sente outra vez seu coração tão forte contra a palma de minha mão. Corações não mentem. Não enganam, não traem, não escondem a verdade.
— Foi amor.
É um músculo, um emaranhado de sentimentos que reagem conforme uma ação e eu queria poder dizer aquelas palavras que estão atravessadas na minha garganta, porque ele me causava aquela sensação tranquila de que estou no lugar certo, e quando Jungkook me beija, sinto saudades. Como se soubesse que aquela parte nossa, secretamente nossa, estivesse aos poucos dando adeus. Restava só uma semana, os malditos sete dias para que nosso acordo chegasse ao fim, para que voltássemos a ser dois estranhos que conheciam demais um ao outro. Pensar naquilo era tão doloroso quanto imaginá-lo dentro de uma outra realidade além daquela onde ele está só comigo.
— Deita aqui... — Começo. — fica comigo só até a chuva passar... — Ele ri, e me envolve como se seus braços tivessem um encaixe perfeito para o meu corpo, com seu abraço protetor, um calor de um raio de sol constante.
Eu me demoro olhando Jungkook tão de perto, pela claridade dos raios cada vez que rasgam o céu e seus olhos escuros — daquela versão que identifica como minha —, fixos nos meus olhos como se nada pudesse nos tirar dali.
— Leanor... — Ele começa, tão sério que às vezes até me esqueço que aquela parte responsável existia em Jeon. — Tem outra coisa que quero dizer...— Prendo a respiração por um segundo, corto o meu próprio ar com medo que de alguma forma um movimento brusco faça aquele momento desaparecer, não sei do que se trata, mas seu olhar não nega.
— Acho que quebrei outra regra do nosso acordo... — Meus dedos tocam seus lábios enquanto ele fala. Tão macios. — Quebramos um monte de regras, Jun... — Seu rosto cabe perfeitamente nas minhas mãos, mas ele fecha os olhos quando me aproximo. E só me sente.
— Dessa vez é diferente, quer dizer, nada mais é do mesmo jeito, você sabe... — Outra vez um longo silêncio, nada parecia bom o suficiente pra ser dito.
— Você ainda gosta da Jieun, não é? — A pergunta o afasta, sei que é inesperada demais, invasiva demais, eu não tinha direito de perguntar aquilo e mesmo assim, havia feito porque merecia ter uma resposta quando sentia que estava afundando cada vez mais no meio das coisas que nunca são ditas.
— Não é possível que você ainda não tenha entendido, Leanor! — Ele ri e eu paro por um instante, a ansiedade crescendo no centro do meu corpo, tão forte que causa uma leve vertigem — Não é óbvio? Eu pensei que tava sendo óbvio... — Outra vez um longo silêncio. Infinitos de silêncio que não confortáveis, não daquela vez.
— Eu gosto de você, Leanor. Você ainda não percebeu? — As luzes acendem como um sensor externo para o que acontece lá dentro, mas não consigo mover meus olhos para longe dele, nem mesmo com a claridade que invade queimando e afastando o escuro. Nem mesmo os trovões impiedosos lá fora me fazem tremer, são só figurantes no nosso filme, espectadores da cena de um desfecho que ainda não aconteceu. E eu não sei explicar aquele sentimento.
— Eu gosto de você e fodi com tudo, eu sei — Não consigo formular uma frase, porque nada tem sentido. Nada. Estou desmoronando aos poucos e eu sei, que é tudo culpa do que ele me disse: sobre Taehyung, sobre ele, sobre Jieun e eu. Me sinto mal por vê-lo parado ali, no meio do quarto, aguardando uma resposta que ainda não tenho certeza se posso oferecer quando tenho muito para digerir de uma vez só. E eu só queria que as coisas fossem diferentes.
— Eu-eu tenho que ir.
— Leanor, não precisa ir embora, você sabe.
— Eu preciso mesmo, mesmo ir. — Digo e puxo minha mochila largada no chão para pendurá-la outra vez no meu ombro.
— Até quando você vai continuar fugindo de si mesma? — As palavras me atingem na mesma proporção de um soco no estômago. Outra pergunta que não tenho resposta, outra vez eu fujo, como sempre faço e outra vez, não sei como reagir.
— Por que só me disse isso agora, uh? — Começo.
— Regra número 2º: não interferir nas escolhas e decisões do outro e enfim... — Ele responde quase automaticamente, com os olhos passeando pelo quarto.
— Eu sei, a porra das regras, a porra do acordo...
— Só achei que não seria justo esconder isso, nem com você e muito menos comigo. Não tô pedindo pra você abrir mão de nada por conta do que disso — Mas como eu continuaria as coisas da mesma forma depois de tudo?
— Só me sinto culpada, não tô fazendo nada como deveria... e preciso ficar sozinha, pelo menos agora.
— Posso pelo menos te levar até o seu dormitório?
— É melhor não, Jeon. Mas eu volto. Prometo...
♆
Meu celular vibra pela quinta vez debaixo do meu travesseiro e só então me dou conta de que apaguei completamente pelas últimas 5 horas. É Hoseok que está me ligando e pelo número de chamadas perdidas, tenho certeza que algo realmente sério aconteceu ou pelo menos deduzo isso.
— Alô?
— Porra, onde você tava? — Em uma realidade paralela, tentando esquecer o que tinha escutado nas primeiras horas da manhã e não sabia direito o que fazer com isso. Dormir sempre seria minha saída de emergência da pra tudo.
— Tô indo aí pra gente conversar, a Trine tá por aí?
— Tá, tá dormindo desde que cheguei. Acho que ela nem levantou pra ir pra aula, pelo menos não perdeu nada. — Hoseok sorri do outro lado da linha e então desliga depois de falar algo sobre os snacks que havia comprado ontem à noite, depois de checar a previsão do tempo. Provavelmente se tudo isso envolvesse uma catástrofe natural, comeríamos Doritos e M&M's até à morte. Verifico as outras chamadas e uma delas é de Jungkook, às 10h30, logo quando voltei para o dormitório e simplesmente me encolhi na minha própria cama e me desliguei do mundo. Uma mensagem no texto que pedia que o ligasse assim que me sentisse melhor, estava preocupado, havia sido impulsivo e se sentia que aquele era o momento errado para falar sobre algo tão sério. Mas nunca negou que o sentimento existia.
Não voltou atrás sobre isso e em algum momento, desejei que isso não fosse completamente verdade. E eu deveria ter sido honesta sobre os meus medos naquele momento.
São as batidas de Hoseok na porta que me distanciam daquela ideia ridícula em que me pego presa, embora Trine não se mova um único centímetro daquela posição em que se encontra dormindo, já está escuro lá fora e deduzo que não tem intenção de ir a lugar algum agora, mas a deixo em paz e me sento do lado de fora do quarto com Hobi e seu saco de snacks.
— O Jungkook me contou... — Ele começa, inclinando a cabeça com aquele olhar típico de "está tudo bem mesmo?" — Passei no dorm pra vê-lo hoje cedo.
— Não sabia que vocês estavam tão próximos assim...
— Você sabe, chupões aproximam pessoas. — A frase soa tão séria na voz de Hoseok que não sinto vontade de rir, embora saiba que ele está segurando o próprio sorriso.
— Mas então, como você está depois de tudo isso? — Ele pergunta, tirando uma embalagem gigantesca de Cheetos de queijo daquela sacola de papel da conveniência.
— Não digeri nem metade das coisas — E essa era a verdade. — Só me sinto estúpida depois que soube sobre a Jieun e o Kim, me sinto mal por ter colocado o Jun no meio disso...
— É, o Jungkook me disse que você tava atordoada, mas pensei que era porque ele disse que gostava de você. — Então é isso, ele contou essa parte a Hoseok? Paro por um segundo e não consigo pensar com clareza, há quanto tempo ele sabia daquilo?
— Ele te contou isso também?
— Era meio óbvio, Nonô! Mesmo que não tivesse dito, não era como se eu já não tivesse notado vocês dois. — Ele enfia uma quantidade considerável de Cheetos na boca, antes de voltar a falar com a boca cheia. — O jeito que ele te olha, o jeito que cuida de você... É sério, essa coisa de "acordo" já tinha virado uma piada interna entre a Trine e eu. — Ele comenta e sorri, com um pedaço de salgadinho preso ao dente.
— Eu realmente não sei o que fazer agora, as coisas só mudaram e mudaram sem que eu realmente percebesse, entende? E agora, Jieun tá aqui de novo! — Digo, enquanto ele toma um gole de seu refrigerante.
— Mas se isso foi real, não importa quantas vezes ela volte, tudo isso é passado. Só isso. — Ele começa outra vez. — Se você sente que deve dizer algo ao Jeon, deveria dizer agora. Parece que você só é impulsiva para as coisas erradas, Nonô! — E outra vez aquela quantidade de pensamentos desconexos sobre tudo que havia acontecido nos últimos dias retorna.
O que deveria fazer agora? Deveria ir até lá e despejar nele tudo que senti e tudo que não tinha certeza? Que eu não queria esquecê-lo, não queria que fosse embora? Que queria decorar todos os detalhes dele outra vez até que eles também fizessem parte de mim, redescobri-lo inteiro, uma, duas ou quantas outras vezes conseguir? Que imaginar que as coisas vão chegar a isso só me faz pensar que eu tô apaixonada? E eu não quero isso.
Não queria ter me apaixonado por Jungkook. Não queria ter imaginado que as coisas seriam diferentes se tivéssemos nos conhecido de outra maneira e não queria ter desejado aquilo.
Porque senti amor quando ele me tocou e eu só queria descobrir como era ser amada. Amada pelo amor dele, porque no fundo tudo pareceu tão certo. Todas às vezes.
— Eleanor Rose Greene, levanta essa bunda daí agora e vai falar com o Jungkook! E isso é uma intervenção! — Hobi diz, levantando do chão frio e apontando na direção da saída dos dormitórios e não tenho dúvidas antes de levantar e correr até lá ouvindo seus passos bem atrás de mim. — Eu o vi quase agora nos elevadores do dorm, ele deve tá por aqui ainda! — Hobi grita e quase escorrego uma ou duas vezes quando minhas meias deslizam contra o piso escorregadio e lustroso e por pura obra de destino — como eu havia deduzido naquele momento — eu o vejo ali, de pé, perto das portas de vidro da Área Comum, bonito como da primeira e última vez que vi, usando o mesmo moletom daquele dia na biblioteca, quando nos odiamos sem pretexto, antes de qualquer fato, e sou atingida pela dimensão de minha própria tolice quando os braços pequenos de Jieun envolvem sua cintura em um abraço, retribuído com o mesmo afeto, seguido de um beijo que não quero assistir, mas que nem mesmo o impacto do corpo de Hoseok se chocando contra o meu, desvia o meu olhar.
Eu não via e agora vejo, claramente, o que não conseguia entender, o grande motivador daquela angústia. Jieun não era um fantasma. Ela existia em carne e ossos e uma história com Jeon que eu provavelmente não poderia competir ou achar que tinha espaço. Sempre tão tola! E a culpa não era dela de retomar seu posto de namorada, era minha por tentar ser o que não era.
Eu não via e agora vejo. Tudo. Tão claro.
São os malditos snacks de Hoseok despencando da sacola de papel e ecoando pelo espaço vazio que desviam a atenção de Jungkook até onde estamos, ele não me queria ali e agora eu sei disso, naquela narrativa eu também era só espectadora e nunca a protagonista, meu quase-amor não era digno de uma cena principal. E eu agora entendo isso também.
Estou apaixonada por Jungkook.
Sozinha.
N/A:
Se preparem para os grandes acontecimentos de CCEG!
Obrigada à todos que acompanham e por tornarem essa história tão especial, até breve!
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