Della
Acordar com um peso no coração. O peso de múltiplas escolhas erradas em sua vida, milhares de minutos, máquinas da louça para arrumar, pilhas de roupa para passar. Acordar com o peso dos horários das nove às seis, do tempo perdido no trânsito, das obrigações.
Deixar de viver para se tornar um ser quase invisível, pra quê? Para simplesmente agradar quem nunca teve um gesto de amor verdadeiro... Pela mesa de cabeceira o relógio continua a anunciar uma verdade incontestável o tempo passou rápido demais.
Consultando as horas, a luz pálida da lua cheia reflete apenas mais dor no pobre coração magoado. Três horas. Madrugada. A cidade toda adormecida. Ao seu lado, um ronco ritmado, uma respiração profunda interrompida ocasionalmente por um suave murmurar e o sussurro da cama.
Sob a escuridão do quarto, o corpo imóvel, inerte, cansado graças às noites consecutivas de insónia. Agora, Della acorda sempre assim, o desespero irrompendo pela madrugada. Passa as noites a fazer contas à vida que já passou. Acumula momentos, subtrai lições, multiplica a angústia pelas noites que ainda lhe faltam.
Ao seu lado dorme o marido, companheiro a qual depositou tantos sonhos e esperanças, o único homem a quem conhece os mais íntimos pormenores do corpo. Conhece-lhe de cor as mãos calejadas, o cabelo antes lindo e bem cuidado agora onde ainda restam algumas lembranças de como é ser vaidosa, a voz calada que só se pronuncia em situações de extrema necessidade.
Deitada ao lado do marido, entediada pela insónia, Della recorda os primeiros dias de casada como quem conta carneiros. Trezentos e sessenta e cinco dias de namoro, sem expectativas nem experiência. Ambos vindos de famílias modestas e sem nenhuma expectativas, não havia estudos ou ambições profissionais para deixar para trás. Apenas o amor e muita vontade de ter mais mundo para além da cidade onde crescerá. Com a mala meio vazia, Della e Estevão rumaram a uma nova vida e lá montaram sua casa. Os pais de ambos, num esforço financeiro para lá do comportável, deram-lhes o básico com que viver: uma cama, uma geladeira, fogão, um sofá e uma mesa para a refeição. Os dois primeiros anos foram os melhores da sua vida.
Depois vieram os filhos. Primeiro o menino e, dois anos depois, outro e por último uma menina. Ambos a cara do pai. Vieram os empregos das nove às seis para pagar os livros da escola e os trabalhos temporários de Estevão para pagar os pares de calçados que o garoto insistia em estragar. Della também fez a sua parte e, depois de sair das casas onde fazia trabalhos domésticos, por sorte as damas da cidade exigiam os piores absurdos, punha o avental e suava na cozinha, entre forno e limpeza geral.
Voltava para casa ainda a tempo de fazer bolos para fora e ganhar mais uns trocos para, um dia, mandar os filhos para a universidade. Um sonho que infelizmente precisou abandonar.
Agora, aqui, quieta e muda na cama, tudo se resume a uma vida inacabada. Os filhos estão adormecidos no quarto ao lado em um lugar totalmente estranho.
Fechando os olhos com força Della tem medo do futuro e de não ser capaz de cuidar de seus filhos sozinha.
As lembranças de apenas dois anos de felicidade se misturam com as horas felizes que passou com seus filhos. Vêm, de tempos a tempos, encher as paredes de sua mente cansada de vozes, reboliço, vida.
Não há mais sonhos e nem um pouco de esperança, porque, Della, está ocupada demais a viver uma vida falsa. Sem disponibilidade para aturar as insanidades daquele que um dia jurou lhe amar. Nos entre tantos, Della e Estevão arrastam a vida entre silêncios. Então, surge a pergunta que a insónia não consegue calar: O que restou de seus sonhos de mulher?
A família já a tinha alertado, o Estevão fazia uns comentários estranhos mas festas familiares, mas Della fingiu surdez, empurrou essas ideias para longe, ela nem percebia bem aquilo entre os poucos amigos que tinham, o mais certo era ser tudo invenções. Mas eles insistiam "olha que o Estevão tem uma amante. É impossível um homem perder tantas oportunidades assim, sem ter um rabo de saia envolvido. Bebida e jogatina acabam com um homem, mas uma amante, suga até a alma do infeliz!" e aquela conversa começava a incomodá-la, de tal modo que deixou de falar com a família e os poucos amigos já no início do noivado. Só quando, há cerca de um ano, numa tarde abrasadora de novembro, depois da louça lavada e a cozinha arrumada, aproveitou o extremo cansaço e do sono pesado do marido para tirar as dúvidas.
Duas ou três tentativas bastaram-lhe para descobrir diversas pistas, bilhetes de apostas variadas, tanto dentro da cidade com em torno dela. Algumas fichas de cassinos clandestinos e bilhetes impregnado de perfume barato das prostitutas.
Sem saber mais o que procurar, vagueou pela mala ainda intacta da última viagem, vendo letras conhecidas, outras nem tanto. Muitas mulheres. Mulheres mais jovens do que ela. Mais magras, mais bonitas, mais interessantes. Num gesto inconsciente, alisou com as mãos os cabelos tingidos de escuro. Uma exigência feita pelo marido que fingia ser ciumento. O mesmo afirmava que seus cabelos antes sedosos e de cor clara chamava demais a atenção de outros homens.
Minutos após todas essas descobertas, Della tirou a prova dos nove. O seu nome era Madame La Rive. Tinha cabelos ruivos, uma boa forma física e uma vida em comum com o seu marido. Ambos amavam os rodeios e os jogos de azar. Lá Rive era dona de um cassino e um modesto rodeio itinerante que viajava pelas cidades menores. Nas mensagens escrita de próprio punho, denunciavam todos os planos já feitos: onde era o encontro, a que horas, quando. Detalhes mais tórridos e mensagens mais atrevidas fizeram Della corar de vergonha. Dez anos de casamento, dois filhos, uma vida inteira e Estevão nunca lhe tinha dito aquelas coisas. Não sabia se havia de sentir ciúme ou alívio.
Ensinada a ser discreta e não levantar a voz e nem pensou em confrontar o marido, Della não traiu o hábito. Fechou a mala, voltou a colocar a carteira no lugar de sempre, com cuidado para não acordar o marido. Não verteu uma lágrima mas passou a tarde a chorá-las de joelhos no chão, esfregando a raiva nos ladrilhos da cozinha da casa da madame La Rive.
A mesma que fez questão de contratar seus serviços pra organizar sua bela casa no centro da cidade. E disfarçada de uma mulher caridosa lhe dava os restos que sobravam dos banquetes que tinha com o seu próprio marido. Mas, Della não reclamaria, esse alimento aplacava a fome de seus amados filhos.
Desde então, a insónia. O acordar constante a meio da madrugada, a vontade de deitar fogo aos dez anos de relação. A cada dia que passava, mais se convencia que não havia volta atrás: era matar, morrer ou deixar-se comer viva. Eram tantos pensamentos e sentimentos sombrios que passavam por sua mente que Della nem percebeu que definhava.
O plano está montado, só falta a coragem: havia uma arma na sala, antiga, herdara-a do pai, mas ainda funcionava e tinha alguns cartuchos guardados para uma emergência. Era apanhá-lo a dormir e vingar esta dor que lhe infligira. Ou então... Arranjou uma boa dose de medicamentos (sedativos, antidepressivos, analgésicos), que esperam por si na gaveta da mesa de cabeceira. Será rápido e indolor. Uma mão cheia, um gole de água, relaxar e deixar-se ir, ir, ir... Até não voltar mais.
Qualquer um dos planos lhe parece promissor. Vingar a traição com um tiro de espingarda? Será capaz? Será libertador? Ou só servirá para estragar o pouco que ainda tinha de vida? Se for presa, como será? Aguentará ver a dor no olhar dos filhos? Irão perdoá-la por tamanha atrocidade?
E para morrer, terá coragem? Escolher por um fim àquele arrastar de dias iguais aos anteriores? Será capaz de decidir, deliberadamente, que ali era o ponto final, que não quer mais ver o por do sol, o sorriso dos filhos ou os dias que ainda lhe restavam?
Todas as madrugadas acordava com esta angústia e, por isso, continua a a arrastar os dias, dizer bom dia, servir o almoço, organizar-lhe a roupa para ficar bem apresentável ao lado da amante nas competições de rodeio.
Mas hoje, há algo diferente no ar. Um cheiro a morte, uma promessa de vingança. Ao seu lado, o ronco ritmado, o respirar profundo. Estevão mexe-se e, num hábito muito antigo, vindo dos tempos de adolescente ainda passa-lhe o braço pela cintura. Della treme de repulsa.
Levanta-se, desliza até à sala, confirma as balas enfiadas na câmara da arma. No quarto, testa a pontaria e os ângulos, vê de que lado pode disparar para que o impacto seja menor. Num segundo, o que era o seu marido é um conjunto de sangue, nervos e tecido espalhado pela colcha e pelos lençóis de flanela. Por fim, alcança o cocktail de comprimidos que guarda na gaveta da mesa de cabeceira, sempre à distância de um braço. Engole-os a seco, um a um, e deita-se na cama, esperando que a morte seja, por fim, a sua sorte.
Minutos depois acorda assustada olhando de lado, a cama está vazia como sempre. Estevão viajou e deixou um bilhete reclamando que ela dormiu pesado demais e nem organizou o seu café da manhã.
Della suspira aliviada por se tratar de mais um pesadelo. Ainda era cedo, dia de folga das crianças e o qual ela decidirá ficar em casa.
Se dedicaria mais as crianças e a si mesma. O marido que se virasse também... Graças a carta de sua avó, as coisas poderiam acabar mudando realmente para melhorar.
1625 Palavras
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