Capítulo 20
Que o medo de cair mais uma vez não te impeça de viver mais uma linda história de amor.
Por volta das duas horas da manhã, sua angústia chegou a tal ponto que não teve mais condições de ficar trancada entre quatro paredes. Vestiu um casaco e saiu na noite fresca, notando vagamente que o luar lançava sombras longas e indistintas sobre o chão. Sem ter um destino específico em mente, começou a andar com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça baixa para evitar o frio do vento direto. Nunca se sentira tão desolada na vida.
Caminhou até a antiga ferrovia e deu meia-volta para retornar. O vento havia parado, mas mesmo assim Della tremia de frio ao chegar à cidade. Virou a esquina do hotel, puxando a gola do casaco para proteger-se. Apesar da temperatura, a caminhada servira a seu propósito. Pelo menos agora conseguiria dormir.
Um automóvel passou pelo cruzamento do quarteirão seguinte, mas Della não lhe deu atenção até vê-lo brecar subitamente, engatar à marcha ré e, então, tornar a acelerar com um chiado de pneus. Observou-o aproximar-se dela com a luz dos faróis quase a cegando. Alessandro saiu do carro antes que ela tivesse tempo de coordenar os pensamentos.
Della sentiu o coração acelerado quando ele a encarou com uma expressão furiosa.
— Por onde você andou? Faz duas horas que estou à sua procura! Quer me matar do coração por acaso?
— Eu... — Ela estava tão surpresa que não soube o que dizer. Apenas fitou-o comum olhar confuso e assustado.
Alessandro a encarou por um segundo e, então, sua expressão alterou-se. Ele a puxou para si e a apertou com força.
— Della, você me deixou apavorado. Não sabia para onde você poderia ter ido.
Ela fechou os olhos e aconchegou-se no calor do corpo dele. Nunca lhe ocorrera que ele pudesse voltar depois de ter ido embora daquele jeito, e muito menos que pudesse sair à procura dela. Era difícil acreditar que ele realmente estive-se ali e Della sentiu os olhos úmidos de emoção.
Não esperava que Alessandro se importasse tanto com ela.
Afagando-lhe os cabelos despenteados, Alessandro recostou a cabeça na dela. Passou alguns momentos apenas a abraçando antes de voltar a falar.
— Desculpe pelo que eu disse; Della. Não tenho o direito de julgá-la. Sei que não tenho nada a ver com seu passado, mas certas coisas me deixam nervoso. Quando senti Nádia com medo de mim, e o seu corpinho trêmulo ao meu toque. Senti uma enorme vontade de matar o seu marido de pancada. Como um pai pode fazer isso com a sua própria filha? Nádia é uma menina linda, inteligente.
— Não, Alessandro, foi bom você ter me pressionado. Fez com que eu visse coisas que nunca havia percebido. Eu precisava enfrentar certos aspectos de minha vida. — Ela levantou os olhos e acariciou-lhe o rosto com a mão fria. — Você me fez enxergar coisas que eu tentava esconder de mim mesma.
— Você é a última pessoa no mundo que eu queria magoar e, no entanto, vivo fazendo isso.
— Não é assim, Alessandro. Você só tem me ajudado.
Ele a beijou com ternura e cobriu a mão gelada de Della com a sua.
— Agora vamos para casa. Você precisa se aquecer e eu estou exausto.
Alessandro a conduziu para o outro lado do carro e abriu a porta. Della recostou a cabeça no ombro dele, sentindo de repente um cansaço tão intenso que mal conseguia manter-se de olhos abertos. Fora uma noite longa e difícil. Ele a ajudou a entrar no carro e, então, fechou a porta e dirigiu-se para o banco do motorista.
Com a cabeça apoiada no encosto, Della virou-se para observá-lo. A barba de Alessandro estava por fazer e havia uma tensão evidente nos músculos do rosto. Sentiu uma ternura imensa e esticou o braço para tocá-lo. Era impossível reprimir por mais tempo seus sentimentos por ele.
— Eu amo você, Alessandro Montserrat!... — Ela murmurou. — Não queria que isso acontecesse, mas não pude evitar.
Ele respirou fundo antes de entrelaçar seus dedos nos de Della e fechar os olhos, mantendo-se com a cabeça apoiada no encosto do banco. Ela não disse nada, deixando imerso em um conflito de emoções. Apenas apertou-lhe a mão com mais força, tentando transmitir a Alessandro todo o amor que aquele simples contato físico poderia conter.
— Eu nunca disse isso a ninguém. — Ele declarou, por fim. — E tenho medo de dizer agora.
— Você não precisa dizer nada. Eu apenas tive vontade de lhe contar.
— Mas eu penso nisso, Della... — Ele afirmou, encarando-a enquanto segurava as mãos dela entre as suas. — Eu penso nisso o tempo todo que estou com você e quando estamos separados. Porém, colocar os sentimentos em palavras é muito mais difícil para mim. Desculpe, Della, mas isso é algo que me assusta.
— Eu não quero nada de você. Só desejo que me leve para casa e faça amor comigo.
Ele beijou as mãos dela e, então, largou-as e segurou o volante.
— Então vamos.
Alessandro já estava acordado quando Della espreguiçou-se na manhã seguinte. Ela continuava aninhada ao lado dele, com a cabeça apoiada em seu ombro, da mesma maneira como havia adormecido. Por alguma razão que não soube definir, teve a impressão de que ele não fechara os olhos a noite inteira.
Alessandro parecia perdido em pensamentos e ela perguntou-se o que estaria passando pela mente dele. Na verdade, ele era muito mais complexo do que dava a entender às pessoas com as quais convivia. Ela vislumbrara um pouco dessa outra faceta de sua personalidade e descobrira nele um lado apaixonado e sensível. O que mais a impressionara fora saber que Alessandro se importava com ela a ponto de ficar zangado, sair à sua procura e perceber suas necessidades por míninas que fossem.
E ele satisfizera essas necessidades com precisão naquela noite. Sabendo como ela se encontrava vulnerável, amara-a devagar e com infinita ternura. Depois a acolhera na segurança de seu abraço e continuara a seu lado até que ela adormecesse.
Della virou-se para ele e acariciou-lhe o peito. Alessandro a fitou com uma expressão séria.
— Bom dia.
— O que foi Alessandro? — Ela esperou pela resposta, mas Alessandro continuou fitando o teto. — Não fique tão perturbado. Você não compreende por que tem se sentido tão hostil em relação a meu passado, mas eu acho que já entendi. — Della fez uma pequena pausa quando Alessandro a encarou. Depois afagou-lhe os cabelos e prosseguiu. — Você não via um motivo para eu ter ficado com Estevão e, portanto, concluiu que só poderia ser por amor. E aí você não soube como lidar com esta idéia. Alessandro, o fato de eu ter ficado com Estevão não teve nada a ver com sentimentos.
— Então por que foi?
Della hesitou, sem saber como explicar de maneira adequada. Então, baixou os olhos e tentou transmitir a ele as conclusões a que havia chegado.
— Até a noite passada, eu acreditava em toda aquela lista de desculpas que lhe apresentei como justificativas, mas quando você me perguntou que tipo de mãe eu era para...
— Não... — Ele interrompeu, segurando-a pelo punho. — Eu nunca deveria ter dito aquilo. Me perdoe...
— Você estava certo, Alessandro. Deixou-me encurralada e eu tive de encarar certos fatos desagradáveis. Precisei enfrentar a verdade: eu simplesmente escolhi a saída mais cômoda. Fiquei com Estevão porque não tive coragem de ir embora. Foi covarde, acreditando que poderia mudá-lo com o tempo. — Ela manteve os olhos baixos e acariciou, distraída o ombro de Alessandro. — Foi difícil admitir que eu tive parte da culpa, que nunca assumi a responsabilidade pelo bem-estar das crianças e pelo meu também.
— Tem certeza de que não ficou por causa dele?
— Sim, tenho certeza. Eu me apaixonei por ele, mas isso não chegou há durar um ano depois do nosso casamento. Mesmo antes de Demétrio nascer eu já sabia que havia cometido um grande erro. Mas por teimosia e imaturidade, acabei permanecendo ao lado dele. Não conseguia admitir que todos estavam certos quando me avisavam sobre ele.
Alessandro puxou-a para junto de si e a envolveu num abraço apertado enquanto lhe acariciava as costas.
— Eu me senti muito mal quando saí daqui ontem à noite. Depois voltei para procurá-la e não a encontrei em casa...
Della levantou a cabeça e silenciou-o com um beijo suave, tentando perder-se nas sensações que ele lhe despertava. Não queria reconhecer o sinistro pressentimento que se instalara, como se aquele não fosse o fim das incertezas, mas, apenas o começo. Não sabia por que, mas temia desperdiçar o pouco tempo que tinham para estarem sozinhos com discussões sobre o que havia acontecido na noite anterior. Procurando afastar os pensamentos ruins da cabeça, aprofundou o beijo, desejando poder ignorar a sensação de que vivia uma situação provisória. Porém, a inquietude não a abandonou.
Na verdade, aquela sensação perturbadora a acompanhou pelo resto do dia. Era um pouco estranha a maneira como ela e Alessandro evitavam qualquer assunto que pudesse lembrá-los dos acontecimentos da noite anterior, como se ambos tivessem receio de falar demais. Por esta razão, foi um alívio quando as crianças chegaram em casa.
Alessandro voltara a sua casa para verificar as mensagens deixadas na secretária eletrônica e Della encontrava-se na cozinha juntando os últimos ingredientes ao molho para macarronada italiana que preparava, quando Joaquim e Domingas estacionaram em frente ao jardim.
Os meninos quase á deixaram tonta com os detalhes do que acontecera no fim de semana. Nádia, segurando um vidro com as formigas, ajeitou-se numa cadeira e adormeceu apoiada na mesa.
Della olhou para a filha com um sentimento de remorso, imaginando se um dia poderia devolver a Nádia tudo que deixara Estevão destruir...
— Se o gosto é tão bom quanto o cheiro, eu vou comer tudo sozinho.
Della virou-se e viu Alessandro parado junto à porta. Ele sorria, mas isso não disfarçava o olhar sério e penetrante com que a observava. Della sentiu-se perturbada. Era como se ele soubesse exatamente o que ela estivera pensando.
— Você não sabe o que o espera. Já teve que competir com três crianças famintas?
— Você os faz parecer um enxame de gafanhotos e não crianças famintas. — Ele brincou; mais relaxado e deixando duas sacolas grandes sobre a mesa.
— Não ficam muito longe disso. O que tem aí dentro?
— Fiz uma salada, trouxe também um bolo com cobertura extra de chocolate e morangos, dois refrigerantes, torradas para acompanhar o molho.
Os meninos entraram correndo na cozinha, trazendo os sacos de dormir que haviam esquecido dentro da Kombi. Demétrio jogou o dele no quarto e correu para o banheiro; Régis deixou o seu no chão e dirigiu-se para a geladeira.
Della o segurou pelas costas da camiseta antes que ele desse dois passos.
— Nada disso. Você vai esperar pelo jantar. Sem petiscos, mocinho! — Ela apontou para o saco de dormir que ele largara no chão. — E pode guardar isto no armário agora mesmo!
— Ah, mamãe, eu estou morrendo de fome. Não posso pegar um biscoito ou quem sabe dois...
— Não!
— Puxa! Como sua mãe é ruim! — Alessandro comentou, piscando para o menino.
— Se é! — Régis concordou, com um ar travesso. — Estou faminto e não posso nem comer.
— Ah, pobre Régis! — Della ironizou.
— O que tem para comer? — Demétrio indagou, assim que saiu do banheiro.
Della olhou para as mãos encardidas de Demétrio e soltou um suspiro exasperado. Ele parecia ter conseguido lavar apenas as palmas, preservando com cuidado toda a sujeira dos dedos.
— Lave as mãos, Demétrio. Não adianta só respingar três gotas de água e limpar o resto na toalha.
— Mas elas estão limpas!
— Acho que ela quer que você use um pouco de sabonete e use a escova para tirar as terras de suas unhas. — Alessandro explicou, sorrindo.
— Ah, ela quer que eu dê um banho nas mãos!
— Foi o que eu achei... — Alessandro declarou.
Della lançou um olhar de advertência para os dois enquanto tirava cuidadosamente o frasco de formigas das mãos de Nádia. Depois, ia pegando a menina quando Alessandro a deteve.
— Deixe que eu faça isso.
Alessandro levantou a menina nos braços, ajeitando a cabeça dela em seu ombro. Nádia mexeu-se e abriu ligeiramente os olhos sonolentos. Esfregou o nariz e suas pálpebras baixaram momentaneamente, para tornarem a abrir em seguida. Foi então que ela percebeu quem a estava carregando e enrijeceu o corpo, tentando soltar-se.
Com inesperada gentileza, ele fez a menina apoiar de novo a cabeça em seu ombro.
— Está tudo bem, meu amorzinho. Feche os olhos e durma outra vez. Eu vou lhe proteger de qualquer mal. — Murmurou-lhe ao ouvido com uma voz tranquilizadora.
Por um instante, Nádia resistiu. Então, com um suspiro de sono, colocou o braço em torno do pescoço dele e deixou que as pálpebras cerrassem. Evitando fitar Della, Alessandro virou-se e carregou a menina com uma expressão séria e pensativa.
Aborrecida, Della começou a arrumar a mesa. Achava que o sentimento de culpa nunca deixaria de incomodá-la.
Terminou de preparar a refeição com uma série de dúvidas e inseguranças ocupando-lhe a mente. Nos últimos três dias, quase não pensara em sua situação, na falta de dinheiro, na responsabilidade que a desafiava. Porém, tivera apenas um intervalo ilusório em suas preocupações.
De repente, a ansiedade retornava mais intensa ainda.
Quando tudo ficou pronto, jogou alguns talheres sujos dentro da pia e foi até a porta dos fundos chamar os meninos, que haviam desaparecido no pátio outra vez. Depois, relutante, dirigiu-se à sala para avisar Alessandro que o jantar estava servido.
Esperava ver Alessandro parado junto à janela, mas, para sua surpresa, encontrou-o estendido no sofá com Nádia aninhada num braço. O outro estava sob a cabeça dele, enquanto dirigia toda sua atenção para a menina. Espantada, Della constatou que Nádia estava era conversando com ele.
Recostou-se ao batente da porta com uma expressão séria no rosto enquanto observava os dois. Não sabia bem por quê, mas sentiu uma súbita relutância ante a idéia de Nádia desenvolver uma relação muito íntima com Alessandro Montserrat. Se ele conseguisse ganhar a confiança da menina, Nádia poderia acabar por idolatrá-lo e este pensamento causou em Della uma vaga apreensão. Não tinha certeza de que aquela seria uma boa idéia.
Pois nem ela tinha certeza se o relacionamento dos dos dois tinha algum futuro. Ela não poderia arriscar e deixar os seus filhos mais traumatizados ainda, os enchendo de uma falsa esperança.
Bem dizia Cartola, o sambista dos corações partidos: "Amar sem penar é bem raro, o verbo cumprir custa caro. O amor é bem fácil achar, o que eu acho mais difícil é saber amar". Quando se fala em amor, também se fala em disposição e determinação. E não é nada fácil conviver com os desencontros e conflitos, naturais de um relacionamento a dois. Pois cada um é único, em experiências, conceitos, valores e sentimentos.
Suspirando, retornou à cozinha com uma sensação inquietante que não conseguia abafar. Ao longo dos anos, aprendera a confiar em sua intuição, e esta agora lançava perturbadores sinais de alarme.
Não se nasce sabendo amar. Com o tempo, com as experiências dos relacionamentos, vai se aprendendo aos poucos o significado de cumplicidade.
Della sentia que um relacionamento poderia ser prejudicado por palavras ditas sem pensar, sentimentos que não foram expressados.
2535 Palavras
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