Capítulo 18
Que o medo de cair mais uma vez não te impeça de viver mais uma linda história de amor.
Quando chegaram ao local do acampamento, Domingas já pusera uma toalha sobre a mesa e começara a ajeitar as travessas de comida sobre a mesma. Nádia correu para junto dela com os olhos brilhando de entusiasmo.
— Olhe aqui, Tia Domingas! Olhe o que eu trouxe! O sr. Montserrat pegou para mim.
Domingas observou o lenço que Nádia abria a sua frente em extremo cuidado e, então, com as mãos na cintura, lançou um olhar zangado em direção a Alessandro.
— Muitíssimo obrigada, Alessandro. Só você mesmo poderia trazer formigas a um piquenique!
Ele riu enquanto pegava um frasco de vidro vazio para entregar a Nádia.
— Pegue isto, princesa Nádia. Corra até o riacho, dê uma lavada e nós guardaremos suas formigas aqui antes que elas fujam.
Nádia hesitou, sem saber se ele falava sério ou não. Depois, afastou-se da mesa e pegou o vidro da mão de Alessandro. Na pressa de sair, tropeçou no banco e o frasco escorregou de suas mãos, estilhaçando-se contra o chão. Numa reação espontânea, ela abaixou-se para pegar os cacos, mas Alessandro a segurou pelos braços. A menina voltou os olhos arregalados de medo para ele.
— Você se cortou? Ele buscou algum ferimento ou até mesmo um simples arranhão.
Nádia sacudiu a cabeça num sinal negativo, com os olhos fixos no rosto dele, como se estivesse esperando uma reprimenda severa. Della observava a cena e percebia a expressão irritada de Alessandra, mas não havia sinal de zanga na voz dele quando dirigiu-se a Nádia com um sorriso.
— Vocês, crianças da família Giacinti, não têm muita sorte com vidro, não é?
Paralisada pela ansiedade, Nádia o encarou com os olhos cheios de lágrimas.
— Desculpe. Não fiz de propósito, eu... — Ela murmurou.
— Eu sei que não, minha pequena princesa. Acidentes acontecem a toda hora.
Com a voz ainda trêmula, ela baixou os olhos e apertou as mãos.
— Mas agora eu não tenho onde pôr minhas formigas...
— Encontraremos outra solução, não se preocupe. Vou ajuda-la nisso!
Della ajoelhou-se ao lado deles e começou a recolher os cacos de vidro. Quando Alessandro falou com ela, sua voz tinha uma inesperada rispidez.
— Deixe aí. Eu limparei mais tarde. Não quero que você se corte!
Pega de surpresa pela reação dele, Della o fitou com um olhar questionador. Com a expressão evidentemente tensa, ele deu-lhe as costas e voltou sua atenção para Nádia.
Colocou a menina sobre o banco e ajudou-a a tirar as meias para evitar que se cortasse com algum estilhaço que tivesse se prendido ao tecido.
Nádia observou os dois, inquieta. Era evidente que Alessandro ficara aborrecido com a reação aterrorizada de Nádia. Sabia muito bem por que sua filha havia reagido daquela maneira e experimentou uma profunda sensação de culpa. Não fora apenas ela que ficara emocionalmente marcada pelos vários anos de dificuldades; Alessandro havia percebido o fato e aquilo o irritara. Estevão gritava e culpava sua pequena por tudo de errado que acontecia dentro da casa. Era tanta perseguição que Nádia nem saia do quarto quando o pai estava em casa, apesar disso, ela sempre tentava buscar algum carinho do pai, que no final nunca foi demonstrado.
Ela recomeçou a pegar os pedaços de vidro, sentindo-se como se sua própria vida se encontrasse em cacos a seus pés. Com um nó na garganta, fechou os olhos para conter as lágrimas, imaginando se o tempo conseguiria reparar todos aqueles danos em seus filhos.
Alessandro não abriu a boca durante a viagem de volta. Della fitava a estrada, sem ter idéia do que fazer para quebrar a tensão do silêncio. Por um lado, ficara aliviada quando as crianças decidiram ficar com os Mendonça para retornar no dia seguinte; por outro lado, porém, teria apreciado, naquele momento, as conversas intermináveis deles. Tinha receio de enfrentar sozinha a irritação de Alessandro.
Quando chegaram a Alexandria, Della sentia uma terrível dor de cabeça. Tudo o que queria era enfiar-se na cama e esquecer o mundo. Desceu do carro depressa assim que Alessandro estacionou, e rezou para que ele fosse embora, mas isso não aconteceu. Ele saiu do automóvel e bateu a porta com uma violência que a fez estremecer.
Della entrou em casa, consciente da presença de Alessandro logo atrás de si. Tensa, tomou a direção da cozinha, mas não chegara a dar dois passos quando ele a segurou pelo braço e a obrigou a encará-lo.
— Não pense que vai fugir disto, Della. Eu quero algumas respostas. Agora!
Ela o fitou com um olhar assustado e o rosto pálido. Sentia não ter energia nem mesmo para abrir a boca, quanto mais para dar respostas. No entanto, não teria como evitar a conversa e procurou manter-se impassível.
— O que você quer saber?
— Quero alguns esclarecimentos a respeito de Nádia. A menina ficou com medo de mim e eu quero saber por quê. O que o pai fazia contra ela?
Suspirando resignada, Della recostou-se no espaldar alto de uma das cadeiras da sala e baixou os olhos.
— Ela não estava com medo de você. Nádia é assim com todos os homens.
— Por quê?
— Por causa do pai dela é claro.
— O que ele fazia? Batia nela? Gritava ou... Santo Deus!...
Della sustentou o olhar furioso de Alessandro por alguns instantes. Depois, caminhou até a janela, cruzou os braços e ficou fitando a escuridão do jardim.
— Não, ele não batia nela. Na maior parte do tempo a ignorava. Às vezes procurava intimidá-la, em outras ocasiões a menosprezava, mas em geral agia como se ela não existisse. E isso bastou para deixar minha filha desconfiada e com medo em quase todos os momentos.
— Havia algum motivo especial para ele tratá-la assim?
— Porque ela nasceu! Estevão queria outro homem, mulher para ele sempre traria dor de cabeça e despesas desnecessárias. — Della hesitou um pouco antes de prosseguir: — E porque ela tem a personalidade muito parecida comigo.
Alessandro passou a mão pelo rosto e virou-se de costas para Della. Passaram-sè longos instantes de silêncio antes que ele voltasse a fitá-la.
— Por que você não o deixou, Della? — Ele indagou, com evidente irritação e inconformismo. — Meu Deus, eu não posso compreender por que você não o deixou! Ele maltratava você e as crianças, não demonstrava nenhuma consideração com a família e, mesmo assim, você ficou ao lado dele. O que houve com você, Della? Por que tamanha lealdade? Que tipo de fixação masoquista você tinha por aquele canalha maldito?
— Não era uma questão de fixação, Alessandro. Era sobrevivência. Eu fiz uma escolha ruim e pague com as consequências. — Ela apertou as mãos, tentando tirar força de dentro de si própria. — Mas não sei o que você tem de reviver essa parte de minha vida. Já não importa mais.
— Della, eu não sei lhe dizer por que, mas importa e muito. Toda essa história me incomoda; principalmente depois que eu vi Nádia tremendo daquele jeito. Que tipo de mãe era você para ficar quieta e permitir que sua própria filha sofresse esse tipo de violência emocional? Isso é um grande absurdo.
A dor de cabeça de Della intensificou-se e seu rosto ficou ainda mais pálido. Ela fechou os olhos, lutando contra uma onda de náusea. Alessandro a atingira no ponto fraco.
Aquela era uma pergunta que ela já se fizera milhares de vezes, sem ser capaz de encontrar a resposta satisfatória. Não sabia nem mesmo se havia uma resposta pra isso.
— O que há com você, Della? — Ele insistiu. — É uma pessoa inteligente e, no entanto, parece colocar viseiras quando o assunto é seu casamento. Chego a ficar com a impressão de que está escondendo alguma coisa.
— Não estou escondendo nada. Talvez esteja apenas tentando fingir que nunca existiu.
— O que nunca existiu? Ele? O casamento? Seus sentimentos por ele? Della seja honesta pelo menos consigo mesma! Nem sequer consegue me dar uma única boa razão para ter ficado com ele.
— O que acha que eu deveria ter feito? — Ela gritou; nervosa com a acusação. — Para onde deveria ir e como iria sustentar meus filhos?
— Isso é uma desculpa, Della! Se você quisesse mesmo deixá-lo, nada no mundo a teria detido. Esta é a verdade, por mais dura que possa parecer.
— Você não sabe o que está dizendo!
— Então me conte! Qual é a verdade?
Ela sustentou o olhar hostil de Alessandro por um momento e, então, virou-se de novo para a janela, com uma sensação próxima ao pânico. Por que ele não conseguia entender? Não havia uma resposta única. Havia dezenas.
Porém, uma voz interior lhe causou um repentino frio e interrompeu-lhe os pensamentos. No fundo, sabia que Alessandro estava certo. O que ela insistira em esconder com desculpas, finalmente se revelavam com nitidez. Havia uma única resposta honesta: ela ficara porque tivera medo de enfrentar a vida sozinha. Consentira em ser humilhada porque não tinha coragem de arcar com as consequências de uma outra escolha e caminhar com seus próprios pés. Era simplesmente isso.
A súbita constatação a fez estremecer. Della encostou a testa no vidro, tentando disciplinar a confusão de emoções que lhe oprimia o peito. Durante toda a sua vida de casada ela se apoiara em desculpas: nenhum lugar para ir, falta de experiência profissional, pouco dinheiro, ninguém a quem recorrer. Tudo acabara levando a uma única consequência.
Escolhera a saída mais fácil. Ficara com o marido porque não tivera coragem para fazer mais nada. Agora, sob a perspectiva proporcionada pela morte dele, podia enxergar o terrível engano que cometera ao ficar com Estevão por tanto tempo, porém, na ocasião, encontrava-se tão desesperada que não conseguira encontrar outro caminho. Se houvesse tido a coragem de ir embora, de tentar construir uma nova vida sozinha, as crianças não estariam carregando cicatrizes emocionais tão sérias. E existiam condições para ela ter tomado tal atitude. Afinal, não era isso que estava fazendo agora? Refazendo sua vida com o próprio esforço? Mas precisara encontrar-se numa situação sem saída para agir. Alessandro parecia perceber tudo isso.
As badaladas do antigo relógio de sua avó ecoaram no silêncio. Ela apertou os braços como se sentisse frio e continuou fitando a escuridão, com uma expressão derrotada.
— Não vai dizer nada? — Alessandro indagou, cortando-lhe os pensamentos.
Ela apenas sacudiu a cabeça num gesto negativo. Alessandro a fitou por mais um segundo e, depois, vestiu o casaco. — Se é assim, eu vou para casa.
Della percebia a situação tensa que seu silêncio provocava, mas não tinha nada a dizer no momento. Encontrava-se tão carregada de autocensura que não se sentia em condições de enfrentá-lo. Pela primeira vez fora forçada a ver sua própria vida sem distorções e ser honesta consigo mesma. A verdade não era fácil de ser assumida: ela se tornara vítima porque aceitara a situação.
Essa constatação a deixara completamente arrasada.
Ela mal percebeu a porta se fechando. Continuou olhando pela janela, sabendo que merecia o desprezo de Alessandro.
1823 Palavras
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