- V -O RITUAL
O âncora do noticiário noturno anunciava:
— Você já pensou em viver em um corpo novo? Isso parece coisa de outro mundo, mas é o que o cientista Lino dos Santos pretende fazer. Lino declarou que adotará um novo nome após realizar o procedimento. Nossos repórteres foram às ruas perguntar o que as pessoas acham disso.
A repórter abriu um sorriso no rosto ao estender o microfone para duas moças.
— Eu acho uma loucura, ele pode morrer. Isso nunca foi feito antes. — Uma delas respondeu.
— Mesmo sabendo que o responsável é um especialista em biologia molecular?
— Mesmo assim, eu nunca faria isso! — ela respondeu em meio a risadas.
A repórter estava em outro local, ao lado de um senhor que aparentava ter por volta de setenta anos.
— O que você acha dessa decisão do Lino sobre a mudança de corpo?
Ela estendeu o microfone.
— Ah, minha filha. Se o rapaz quer, e tem coragem né. Tem que mudar mesmo. Até eu tô pensando em mudar de corpo também, pro corpo de um novinho de trinta anos, imagina se assim eu consigo viver mais um pouco?
A repórter não se conteve.
A matéria prosseguiu. Uma mulher dizia que isso é uma vantagem propiciada pelos avanços tecnológicos, portanto temos que celebrar.
Lino estava sentado na maca, ainda do lado de fora, ele segurava um papel em que leu sob orientação de Diego para decorar.
O artefato parecia uma espécie de máquina de ressonância cyberpunk. A cor predominante era o preto. Uma abertura permitia que a maca pudesse deslizar até o interior do aparelho, onde haviam dezenas de lâmpadas compridas como as de uma câmara de bronzeamento. Do lado de fora, tubulações prateadas desciam do teto e eram conectadas à máquina. Por elas, uma tênue camada de água se condensava e pingava vez ou outra. Desses mesmos tubos emanava uma neblina de temperatura gélida que umidificava o ambiente.
O hospedeiro de Drak Nazar usava um avental branco.
A cirurgia estava sendo transmitida ao vivo, existiam dois homens de duas emissoras que eram os únicos autorizados a entrar na sala.
— Isso me fez lembrar uma questão curiosa. — um dos biomédicos falou próximo aos dois repórteres, que se prontificaram a ouvir. — Nosso corpo nada mais é do que um aglomerado de células, da mesma forma que será o corpo de Lino, um aglomerado de microrganismos que serão programados para desempenhar cada função do corpo, e canalizar os poderes de Drak Nazar.
Os dois registraram a fala do médico.
Diego entrou, ele e Lino se cumprimentaram enquanto médicos e especialistas foram chegando, todos cumprimentavam Lino. Após algum tempo, eles formaram o círculo em que Lino e Diego estavam um ao lado do outro. Lino sentado sobre a beirada da maca.
Um tanque retangular contendo o corpo recém-criado foi posicionado ao lado da máquina de ressonância, tubulações foram conectadas. Um cabo de energia avantajado foi conectado, fazendo com que luzes vermelhas e verdes se alternassem iluminando o líquido e o ambiente ao redor do reservatório onde a figura de Drak Nazar estava adormecida.
Todos deram as mãos. Diego começou:
"A ti eu invoco, o Não Nascido.
Tu que criaste a Terra e os Céus:
Tu que criaste a Noite e o Dia.
Tu que criaste as Trevas e a Luz.
Eu invoco a ti, Terrível e Invisível Deus: que está presente em todo o lugar ocupado e todo espaço vazio.
Reunidos aqui, na presença de Drak Nazar, te invocamos.
Tu és o Senhor dos Deuses.
Tu, és o Senhor do Universo.
Tu és aquele que os ventos temem."
Diego apertou a mão de Lino, que prontamente prosseguiu com o ritual:
— Eu sou Ele! O Espírito Não nascido! Forte fogo imortal!
"Eu sou a Verdade!
Eu sou Ele de onde se origina todo o bem e todo o mal!
Eu sou Ele, relâmpago e trovão.
Eu sou Ele, de quem brota a vida na terra.
Eu sou Ele, de cuja boca saem labaredas.
Eu sou Ele! Sou a maior manifestação da Luz e das Trevas!
Eu sou Ele! A Graça do mundo!"
— OUÇA-ME! — Ouviu-se todos cantarem em uníssono.
E todos continuaram juntos:
"Vem tu e segue-me: Que todos os espíritos sujeitem-se a mim, para que cada espírito do firmamento e do éter: sobre a terra e sob a terra: em terra seca, ou na água: de ar rodopiante ou de impetuoso fogo: e todo feitiço e praga de Deus, sejam obedientes a mim!"
Lino estava deitado. Tubos foram conectados aos acessos em suas veias e haviam eletrodos por todo o seu corpo. Eles se afastaram, os responsáveis assumiram os computadores que controlariam o procedimento. A maca deslizou para dentro do equipamento cyberpunk.
Ao término do procedimento, os tubos foram desligados do hospedeiro, ele já não possuía mais vida; ela havia sido transferida.
Diego estava do lado de fora, observava o interior da sala através de um vidro. Os repórteres também saíram, ficaram apenas os principais responsáveis pela cirurgia.
Depois que todos saíram, uma plataforma elevou-se vagarosamente dentro do tanque e o corpo de Draknazar emergiu. O líquido que escorria pelas beiradas da plataforma, embora translúcido, tinha resquícios de sangue junto de algo viscoso preto como uma gosma.
Em cima da maca, sozinho na sala, a figura de sobretudo preto e vestes internas vermelhas. Drak ergueu seu tronco sentando-se na maca. Diego então, deixou um dos responsáveis pela cirurgia do lado de fora da sala. A entidade recém-nascida acompanhou Diego entrar na sala e caminhar até ele. A porta se fechou.
— Você sabe quem sou?
— Diego.
— Como está se sentindo?
— Bem. Muito bem... — ele falou e olhou para suas próprias mãos. Ergueu a cabeça e se admirou novamente no espelho ao canto da sala.
— Agora... eu acho que tem uma coisa que você precisa saber, afinal, eu não lhe disse seu verdadeiro nome.
Ele olhou fixamente nos olhos de Diego, mostrando estar preparado para ouvir.
"Seu nome é Drak. Drak... Nazar."
Ele abaixou a cabeça, sentiu percorrer-lhe um calafrio espinhal como se aquele corpo tivesse sido finalmente preenchido pela sua verdadeira alma.
— Agora que disse, você fez tudo se esclarecer. Eu me lembro... me lembro de estar sentado no chão, encostado na parede de um quarto escuro, vez ou outra eu acordava e uma porta se fechava. Eu costumava adormecer bruscamente como se eu fosse nocauteado.
"Me lembro de ver pela primeira vez a luz do dia, quando alguém que cuidava de mim e conversava comigo, alguém próximo por quem eu sentia afeto. Essa pessoa ateou fogo nos fundos da casa."
Diego se apavorou com o que ouviu Draknazar em carne e osso dizer diante dele.
"Minha pele derreteu, inflamou. Ardia na minha alma. A gasolina queimou e se espalhou por todo o meu corpo. Aquilo não acabava nunca. Até que certa hora tudo se apagou como costumava acontecer antes, quando eu era colocado para dormir. Mas a dor de ser ferido de forma tão brutal por alguém que eu tinha tanto afeto, e hoje não me recordo quem era, essa dor, ela permanece em mim como uma mágoa que carrego como a de um filho incendiado pelos pais."
— Você acha que conseguirá se lembrar quem foi essa pessoa?
— Eu ainda não consigo. Isso me causa dor. — Draknazar respondeu. — Você acha que essa memória pode ser um sonho que tive? Da forma que me lembro, era tudo tão estranho...
— Sim, Drak. Com certeza você sonhou com isso enquanto transferíamos sua consciência para seu corpo real. É um processo complexo esse pelo qual você passou. Talvez seja melhor nós apagarmos essas memórias. Você concorda?
— Não! Eu quero manter isso comigo. — Draknazar respondeu por fim.
Diego aceitou, derrotado.
— Em breve precisarei fazer ajustes pessoalmente na cúpula. — Diego disse. — Sim, a cúpula está pronta. — anunciou.
Draknazar viu a lua crescente no céu preto atrás da igreja da Candelária. O VLT partiu da estação onde o homem de cabelo prateado havia desembarcado. Ainda a uma certa distância, os dois fizeram um breve contato visual.
O homem começou a caminhar à frente dele. Abaixou a cabeça levemente e guinou na rua estreita entre os prédios. Ele fez o mesmo movimento. O homem o aguardava.
— Eles fugirão. Irão para um lugar seguro, longe daqui, onde ninguém possa os alcançar. — confessou o homem misterioso.
— Nem mesmo eu conseguirei alcançá-los? — Draknazar perguntou, de forma que sua versão não-nascida teria julgado pouquíssimo presunçosa.
— Ainda não tenho conhecimento de seus atuais poderes. Certamente Rolderklás estará mais apto a ajudar-lhe nessa tarefa.
— Não! — puniu verbalmente. — Ninguém mais pode saber. Jure!
— Juro pela minha vida. — disse, concedendo-lhe verdadeiramente sua alma.
— Não é só a sua vida. — Draknazar mostrou-lhe como aquelas palavras soaram insignificantes para ele. — É o meu propósito de estar aqui. É o destino das duas galáxias. Será que você consegue me entender?
O homem assentiu em silêncio, temia que qualquer mínima coisa que falasse ou até mesmo pensasse colocasse tudo a perder.
Eles seguiram em direções opostas.
Arthur foi aprovado no processo e recebia as primeiras instruções após sua entrada na AEB. Ele conversava com Brandon, um dos responsáveis pelas missões de envio para as estações de construção. Pediu a ele que tivesse um passe livre para ir à cúpula. O pedido foi imediatamente negado, e lhe foi dito que só seria enviado após cumprir todos os requisitos.
— Além disso, você sofreu um acidente muito grave, já está liberado pela divisão médica?
Arthur insistiu, disse ser seu maior objetivo.
— Eu não me importo. — Brandon deixou escapar.
Abriu uma pasta em sua mão, o exame de ressonância magnética de Arthur era um peso favorável para que recompensas fossem entregues a ele.
— Haha, está bem, vamos fazer assim: eu te dou passe livre e você trabalha exclusivamente comigo. Estamos acertados? — Brandon propôs.
Diego chegou na cúpula e verificou que o Comando Superior terráqueo estava tentando fazer contato. Deu a ordem para bloquear qualquer forma de comunicação externa à cúpula.
— O mecanismo de bloqueio ainda não está completamente instalado. — respondeu um astronauta que operava a sala de controle.
— Apenas faça o que estou mandando. Não importa se uma ou outra região ficar desprotegida.
Uma das primeiras ordens após a soltura de Drak, foi para ir escoltado a uma consulta no médico da Ordem que afastou Diego.
A consulta transcorria enquanto Draknazar tentava retirar informações do médico, até que ele percebeu que o homem não daria com a língua nos dentes. Ordenou que homens entrassem no consultório e levassem o médico à força.
Eles estavam no cativeiro isolado, uma construção antiga em um local inóspito.
Após a tentativa fracassada de entregar o pendrive contendo os áudios de Bernardo Théslert para Lino, Théo conseguiu contato com Thompson, propôs localidades estratégicas para que os opositores de Draknazar que haviam o encarcerado fossem isolados e deixassem de apresentar risco. Théo se apresentou como opositor de Teresa. Disse que tinha aliados que podiam cooperar na luta contra a chefe da Abin.
O médico estava sentado com as duas mãos nos braços de uma cadeira metálica. Théo assistia tentando disfarçar seu espanto enquanto Drak tinha orgasmos e ria ao assistir os parafusos serem rosqueados e subirem perfurando as mãos.
Caído no chão, ao canto do local fétido, estava o corpo do estudante que atacara Lino junto aos homens de vinho. A alguns metros, sem camisa, jogado tortamente, estava o corpo de Vinícius, com diversas marcas de tortura. Théo saiu da sala abalado. Drak reparou, mas não se incomodou.
Após breves minutos, Théo retornou.
"Drak, pare com isso, ou os dizimadores virão atrás de você." Draknazar ouviu dentro de sua cabeça a voz e a associou ao presidente da república, quem ele concluiu naquele instante ser o responsável pela sua prisão.
Ele acreditava que o presidente era quem estava dando ordens a Abin para prendê-lo.
Os escombros vieram abaixo quando o teto do gabinete cedeu e a laje deslizou se despedaçando ao tocar o chão. Um vendaval invadiu o lugar onde estava o presidente. Draknazar surgiu flutuando pelo grande rombo e aterrissou suavemente diante da mesa onde o presidente estava sentado.
... e disse:
— Você tem sido uma pedra no meu sapato.
— Eu não... eu não tive escolha... eu não ousaria mexer com você. — disse, atropelando-se, o presidente.
— Então, quem está dando as ordens? Senão você?
— Eu sinto muito, não posso... dizer...
— Ah, você sente? Vai sentir muito quando estiver morrendo.
— POR FAVOR, NÃO! — o presidente exclamou.
Drak apontou o braço direito.
— Eu imploro!
Drak pensou se aquela seria a melhor coisa a se fazer, se ele estivesse falando a verdade, não adiantaria matá-lo. Então, ele convocou aliados e mandou o presidente para o presídio que àquela altura era dominado pela ordem internacional. O grupo de países foi reunido com a articulação de Thompson durante a reunião em que foi decidido a libertação de Lino, e o desligamento do Brasil.
— Vamos, mostre... Mostre suas mãos a ele. — Drak ordenou.
O Presidente, ao ver o psiquiatra com buracos nas mãos, entrou em pânico.
— Tudo bem, tudo bem! Eu digo! — O Sr. Brasiliense descontrolou-se ao ver as feridas. — Teresa, a chefe da Abin. Ela mandou prendê-lo. Ela é a única responsável.
Draknazar ordenou que o governo do Estado do Rio de Janeiro emitisse uma nota declarando sua autonomia perante o Brasil, e que a partir de agora o estado constituiria um novo país.
"Somos um país autossuficiente." Concluía a nota.
Diego chamou Draknazar até o local onde era anteriormente a adidância carioca da Abin. Passou a ser sediado ali o novo centro de reuniões dos apoiadores de Drak.
Estavam apenas os dois na sala. Diego explicava o perigo que o cetro Dimfloat oferecia aos seres de fora da Via Láctea. Dizia que precisariam forjar uma arma que se equiparasse ao cetro, ou alguma forma de se proteger contra os feitiços disparados por ele.
☢
O professor Felipe via tudo aquilo que acontecia, decidiu contactar Diego indo até a antiga adidância da Abin no Rio.
— Nossa ideia sempre foi criar lealdade nos jovens, o segredo guardado por vocês poderia ser usado contra os governos que se opusessem ao nosso movimento. Assim, formaríamos uma armada com informações que os prejudicariam, neutralizaria a própria Ordem. — Felipe dizia. — Era um meio de segurança para garantir que existiria uma sociedade ciente da verdade.
— Nada disso importa mais. Nosso poder é maior que qualquer ameaça. Nenhuma informação é capaz de nos parar. — Diego disse a Felipe. — Saia já do prédio da Ordem! — ele o expulsou.
Draknazar entrou lentamente na sala quando Felipe deixava o lugar. Inclinou brevemente a cabeça, indicando que Diego fosse atrás de Felipe.
Diego aproximou-se de Drak.
— Foi ele quem me tornou um guardião. — Diego falou com o rosto próximo ao dele.
— Ele deve morrer. Mate-o.
Diego acenou positivamente com a cabeça uma única vez e foi atrás de seu professor. Diego viu que Felipe atravessava uma passarela sobre o lago no centro do pavimento em frente ao prédio da Abin. Mulheres vestidas formal e elegantemente, alguns homens de terno ou camisa social passavam por ali, alguns falavam ao telefone espalhados pela área externa.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro