[O SENTINDO DA VIDA, A DEFESA DA MORTE] CAPÍTULO 9
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— O quê? — sussurrou num chiado estranho, confuso.
Nariah a encarou mas não disse nada, não por alguns segundos. O clima ali pareceu ficar gélido e carregado e, por um instante, Haabel chegou a acreditar que havia escutado errado. Porque, não era possível, que Nariah houvesse dado a entender que um embrião qualquer, gerado como todos os outros, pudesse virar uma Rainha, um ser escolhido diretamente pelos astros do céu, diferente das inferiores operárias e única de um modo suficiente para trazer vida a toda colmeia. Ela só podia ter ouvido errado.
— Durante nosso pequeno embate eu percebi que falei demais sobre responsabilidade e como o sacrifício era o meio mediador para que tudo dentro da colmeia funcionasse de maneira efetiva — disse a Rainha cuidadosamente — No entanto, eu não expliquei suficientemente o porquê dele ser tão importante assim e, para fazer alguém como você entender, é preciso que eu conte a verdade por trás dele — ela levantou seus olhos para Haabel — por isso te trouxe aqui.
Haabel abanou a cabeça:
— Eu não estou entendendo, o que está querendo dizer com isso? Que o meu sacrifício tem a ver com a escolha da rainha? — a operaria riu com a loucura daquela insinuação.
Nariah sorriu:
— É isso mesmo. — ela ergueu o olhar parecendo pensar — Na verdade, não necessariamente com a escolha, mas sim com o desenvolvimento dela.
A operária a encarou como se estivesse procurando algum sinal em sua aparência esbelta que sinalizasse que Nariah estivesse brincando ou mentindo. No entanto, tudo que viu foi uma expressão irritantemente calma. Haabel cruzou os braços em um pedido silencioso de que Nariah se explicasse, a Rainha entendeu e assim o fez:
— Você me perguntou uma vez se a história de como eu havia me tornado a Rainha era verdadeira. Bem, não é. Eu não caí do céu e nem fui uma estrela. — ela riu levemente ao se lembrar daquela história — A princípio, eu fui gerada como qualquer operária, em meio as divisões de um único óvulo fecundado. Até que, por um mero acidente do destino, igual a esse que aconteceu com o embrião 134, eu fui escolhida para me tornar a futura Rainha. Não foi predestinação, foi só... Sorte, eu diria. — ela parou por alguns instantes para ter certeza que Haabel a acompanhava e, após isso, soltou, finalmente, a resposta caótica — Toda operária comum tem uma espécie de líquido abaixo da camada do estômago, ele é denominado de geleia Real e deriva de algumas partes reprodutivas que não se desenvolveram, esse líquido possui nutrientes capazes de transformar um embrião comum em uma Rainha, e é por isso que depois de escolher o embrião ele começa a ser nutrido apenas com geleia real para que consiga desenvolver partes que uma operaria comum não têm. O sacrifício da operária escolhida é o meio que existe para que se consiga essa geleia real uma vez que não é possível extraí-lo sem matar a operária no processo. A purificação é exatamente para desenvolver esse líquido e desintoxicá-lo.
Haabel sempre acreditou na colmeia como uma espécie de balança. Apesar de sempre estar se opondo ou questionando os preceitos do lugar, nunca acreditou em algum tipo de teoria da conspiração. A balança existia como um meio de dizer que tudo pendia ao equilíbrio, mesmo que, às vezes, coisa ou outra não parecesse fazer sentido. Ela não gostava do trabalho, mas sabia que ele era importante, não gostava de como as regras ali funcionavam, mas sabia que sem elas o caos reinaria. Era por isso que ela, apesar de vez ou outra, pigarrear suas insatisfações ao vento, não se rebelava. E apesar de tudo Haabel sempre esteve onde deveria estar, tudo isso porque acreditava no equilíbrio que, supostamente, existia. Mas, agora, depois da revelação, ela viu essa balança pender, e não era como se estivesse apenas se inclinando, essa balança mostrava claramente que havia alguém abaixo e alguém acima. Saber que a Rainha já tinha sido uma operária, por pouco tempo que fosse, fazia com que Haabel percebesse que a hierarquia não existia porque alguém era superior ou inferior, existia hierarquia porque alguém queria que existisse. E, pela primeira vez, Haabel percebeu que a Realeira não era só um uma divisão que privilegiava operárias que se desenvolvessem bem, ela era a parte que pendia pra cima sob o peso das operárias que estavam abaixo.
— Por que está me contando isso? — Haabel sussurrou finalmente.
A Rainha suspirou lentamente, sabia que a confissão teria algum efeito negativo em Haabel mas não esperava que esse efeito fosse capaz de desestrutura-la por completo. Nariah a olhou nos olhos quando disse, verdadeiramente:
— Porque não importa o quanto tente fugir disso, Haabel. — sua voz era baixa e cuidadosa, não era como se estivesse tendo prazer algum em falar aquilo — Seu caminho sempre estará traçado junto ao meu, você queira ou não.
O silêncio reinou após isso. Durante esse tempo, dois conflitos internos coexistiram entre elas. De um lado, Haabel tentava reprimir a vontade de fugir, de gritar e de chorar enquanto Nariah experimentava, pela primeira vez, a incerteza em suas falas. Talvez, o jogo ainda estivesse empatado.
[...]
A volta para a realeira foi seguida de um clima silencioso e pragmático entre Haabel e Nariah. Embora a Rainha quisesse falar algo, as palavras sempre morriam em sua boca. Não era como se tivesse uma fórmula secreta para curar a insatisfação de Haabel, uma vez que, nem ela, parecia curada. A operária permaneceu calada com os olhos presos na pequena fresta da janela o caminho inteiro. A última semana entre as duas foi tão leve e agradável que o silêncio agora parecia muito mais incomodo do que seria antes. Estranhamente, Haabel não sentia raiva de Nariah. Apesar das nuances, ela sabia que a Rainha nada mais era que um grande peão; importante mas, ainda sim, jogável, a colmeia e toda a sua estrutura era o grande problema. Sobre o vento da neblina noturna, Haabel percebeu, guiada por um breu obscuro, que não poderia mais viver daquele jeito.
Quando finalmente chegaram, Haabel se virou para perguntar para Nariah se podia se retirar, esta que concordou silenciosamente. Já era noite, e por conta disso o castelo estava muito silencioso, a volta da Rainha foi acompanhada de uma guarda mais relaxada, e, enquanto Haabel voltava parava ala noroeste, ela solenemente pensava em como poderia fugir. A princípio, na sua primeira semana de estadia no castelo, ela encarou essa possibilidade como algo excusável, até porque fugir levava como consequência uma vida de fugitiva, mas, depois de tudo que havia acabado de ouvir, ela percebeu tristemente que não havia escapatória. Não havia uma hipótese sequer que mostrasse que sua vida valeria o risco de uma colmeia sem Rainha. Nunca valeria, no fim das contas Nariah estava certa quando disse que os motivos para o sacrifício ocorrer eram superiores ao seu extinto de viver. Constatar isso, no entanto, não fazia com que ela se condenasse à morte. Nunca faria. Ser indigna não ajudou, defender sua sobrevivência também não. Foi por isso que a ideia de fugir se mostrou a melhor do momento
Quando finalmente chegou a ala noroeste, Haabel já estava decidida na decisão que havia tomado. Ela adentrou seu quarto com uma aparência sombria. A operária sabia que não podia escapar simplesmente pelas portas da frente, apesar da guarda estar mais relaxada, isso não significava que não estivessem presentes, então, o único caminho plausível era pelas janelas de seu quarto. Haabel havia passado tempo demais vagabundeando pelo castelo pra ter uma boa noção de localização. A ala noroeste ficava na retarguarda do castelo, se pulasse as janelas ela pousaria na pequena floresta que era caminho para as fontes termais, se Haabel não tivesse enganado, aquela hora não haveria guarda nenhuma naquele local. Depois de pular a janela Haabel só teria que se esconder entre as árvores até chegar nos estábulos onde encontraria uma saída que era utilizada por cuidadores de cavalos. Depois disso, ela pensaria melhor no que iria fazer. Voltar para o distrito ela não poderia, nem mesmo pra sua antiga vida, se refugiar entre os alpes e montanhas era a única alternativa que tinha. Ainda sim, Haabel não se importava.
A operária não tardou em começar os preparativos de sua fuga. Tirou todos os lençóis da cama e, um a um, os amarrou para formar uma espécie de corda grande o suficiente para poder passá-los pela janela e descer sobre eles. Quando amarrou o último lençol, Haabel pegou a sua ponta e a prendeu firmemente sobre os pés da enorme cama. Não tinha muita certeza se aquilo daria certo, mas se os lençóis conseguissem diminuir um pouco da altura para que ela não se machucasse ao cair, já estava de bom tamanho. Ao terminar a operária respirou um pouco e foi até a janela para olhar a altura que submeteria, o lampejo da queda que teria caso os lençóis se rompessem foi capaz de a fazer estremecer. Haabel respirou fundo e subiu na janela, talvez fosse por causa da adrenalina e medo que corria em suas veias, mas por um erro de cálculo ele se sentiu desequilibrar enquanto se posicionava para escalar os lençóis, ela teria caído se suas mãos não tivessem pegado a quina da janela na última hora. Ela limpou o suor e tentou se acalmar. Quando finalmente pegou no lençol para descer, a porta se abriu em um solavanco barulhento. Rebecca arregalou os olhos assim que viu onde Haabel estava:
— Mas que merda... — ela murmurou desacreditada — Você está fazendo?
A operaria, primeiro, se assustou com a entrada repentina, logo após ela suspirou pesadamente e continuou com as mãos sobre o lençol. Seu tom era de completa irritação quando disse:
— Você não consegue bater mesmo na porta, não é?
Rebecca, um pouco mais calma diante a voz mal educada da outra, pareceu suspirar e com apenas um movimento, sem tirar os olhos de Haabel, fechou a porta atrás de si. Ela fez menção de se mover, mas antes que pudesse fazer isso, Haabel a parou levantando os braços.
— Não se aproxime! Se você der mais um passo eu vou descer, e de mau jeito por causa da pressa — ela colocou uma boa dose de sarcasmo quando voltou a falar — Não vai ser nada bom pra você se eu quebrar alguma parte desse corpo que foi tão incansavelmente preparado para esse maldito sacrifício.
Rebecca estreitou os olhos diante da fala da operária. Ficou calada por alguns instantes, parecendo pensar e analisar a situação. Tempo depois ela sorriu, um sorriso enigmático o suficiente para fazer Haabel estremecer. A operária nunca havia visto isso acontecer.
— Finalmente pirou? — perguntou, seu tom era repleto de zombaria.
E, sem dar ouvidos ao que Haabel havia instruído, ela deu alguns passos em sua direção. A operária, ao ver isso, agarrou o lençol mais fortemente e se inclinou ainda mais para fora da janela em um aviso, Rebecca parou logo em seguida.
— Deixa eu adivinhar — Começou a capitã depois de olhar Haabel de cima a baixo — Você não gostou muito do que viu no ninho, não é? — adivinhou inclinando a cabeça e levando o olhar até o lençol preso sobre o pé da cama — É por isso que está tentando se matar? — arriscou.
Haabel estreitou os olhos:
— Eu não estou tentando me matar! Vou sair daqui e... — Haabel começou mas, ao perceber que Rebecca estava zombando da sua cara, ela a encarou com raiva — Ora, Me deixe em paz.
Rebecca abanou a cabeça lentamente, pensando que Haabel era muito mais idiota do que pensou que fosse. Se ela não tivesse entrado naquele quarto de última hora, era possível que Haabel estivesse agora agonizando no chão. Rebecca pensou por um instante e, após o veredito, ela voltou a falar:
— Ela te contou como as Rainhas são criadas, é isso? — perguntou solenemente dando mais um passo pra frente.
Talvez porque sua mente estava mais aberta ou mais aguçada durante a onda de adrenalina, mas Haabel notou pela primeira vez o tom que Rebecca havia usado para mencionar Nariah. Não era desrespeitoso, porém, nem de perto educado, beirava a ironia. E havia sido assim desde que ela tinha voltado da missão na fronteira. Ao ouvi-la, Haabel lhe lançou um olhar desentendido.
— Você sabia?
— Sim. — mais um passo.
Haabel riu com escárnio:
— É? E o que mais você sabe?
Rebecca a encarou por alguns instantes antes de responder:
— Sei da extração de geleia real. Sei que ela desenvolve os órgãos reprodutivos da Rainha e alguns receptores mais avançados. — mais um passo — Sei que toda operária comum poderia se desenvolver como uma Rainha, mas isso não acontece porque não é interessante que aconteça. Sei que a lei de unidade é uma mentira e que as operárias da Realeira têm muito mais privilégios do que as dos distritos — dois. três. — Sei que o conhecimento é restrito porque ele poderia quebrar a base dos parâmetros da colmeia, que toda as operárias dos distritos são submetidas a uma inibição por parte da Rainha e — quando ela enfim se aproximou de Haabel, que estava estática por causa da surpresa, pegou em suas mãos e a puxou para perto dela a afastando do lado de fora da janela — Sei também que você não vai pular daí.
Haabel ficou perplexa diante as palavras que estavam saindo da boca de Rebecca. Não entendeu muitas delas, principalmente a última parte, mas soube que o quer que tenha acontecido e, por mais casual que a capitã houvesse proferido tais confissões, aquilo não era uma simples atitude mal pensada que havia escapado, Rebecca sabia muito bem o que estava fazendo e porquê estava fazendo, e isso fez a operária se perguntar qual era a sua real intenção. Ela sequer fez menção de impedir que Rebecca a puxasse fazendo com que ela finalmente pousasse no chão.
— Da próxima vez que tentar fazer isso — começou Rebecca encarando a outra com repreensão — eu mesma vou te empurrar.
Haabel ergueu o olhar:
— o que quis dizer com inibição? — perguntou a operária ignorando a fala passada da outra.
Embora nunca tenha falado abertamente sobre isso, e nem se deixado pensar muito, Haabel sempre desconfiou de certas coisas que aconteciam ao seu redor, que não eram necessariamente com ela, mas com as operárias que viviam a sua volta. Notar, no entanto, não significava entender. Rebecca, ao ouvi-la, não fez muito a não ser um gesto de desinteresse com os ombros, como se aquilo não fosse importante no momento.
— Tudo isso é porque não quer participar do sacrifício? — perguntou casualmente apontando para os lençóis.
Haabel suspirou estarrecida e tirou a ponta do lençol que ainda estava na janela e o jogou no chão. Ser pega por Rebecca havia quebrado sua tentativa de fuga completamente. Mesmo que pulasse as janelas, a outra ainda colocaria as guardas para a perseguir e provavelmente pediria que as saídas fossem trancadas. E, mais uma vez, ela se viu na mira do sacrifício, parecia que quanto mais ela tentava fugir mais ainda se prendia naquela emaranhado de fios que se coincidiam com o seu destino mórbido. Quando ergueu o seu olhos para outra, estes estavam envenenados de pura irritação.
— Pode parecer estranho para você, mas eu não vejo felicidade alguma em caminhar rumo à morte. — Haabel ergueu os ombros ao responder — E sim, eu fiz isso apenas para escapar. Se quiser me punir ou contar para Nariah, fique à vontade.
A seguir, o que Haabel viu foi muito esclarecedor. Quando conheceu Rebecca ela sempre achou que a outra não era exatamente o que sua postura rígida e inflexível mostrava. Apesar da lealdade que tinha, ou que mostrava ter, ela esbanjava uma aura completamente diferente daquela que deveria ter como capitã da guarda. Durante sua estadia, Haabel percebeu que ela não agia conforme ela esperava que reagisse, quando falou com ela sobre o período de férias na grande fábrica Rebecca não a repreendeu, pelo contrário, ela a encarou como se, de uma forma bem esquisita, concordasse com ela. Na purificação ela havia usado ironia durante algumas explicações que Rainhas tinham dado à eventos naturais. E, muitas vezes, parecia desgostar de como as coisas funcionavam na colmeia. Haabel nunca havia dado importância a esses sinais mas, quando Rebecca a olhou depois do que havia dito ela percebeu que realmente ela não era aquilo que aparentava ser, que suas intenções eram ainda mais ambíguos. Seu olhar, diante da fala de Haabel, que por qualquer um seria considerado um ato de traição, foi um misto de alívio e apreciação.
— Considerando o nosso primeiro encontro eu achei que demoraria menos para finalmente confessar. — Comentou a encarando intensamente como se estivesse a muito tempo esperando por aquilo.
— Era tão óbvio assim? — a operária perguntou se sentindo uma idiota.
— Você desmaiou quando recebeu a notícia, Haabel— lembrou-a com um olhar maldoso — Bem, tenho algo a lhe propor. — comentou depois de alguns segundos calada, alcançando a expressão curiosa de Haabel, que estava tentando desamarrar os lençóis — O que você diria se eu dissesse que sei como acabar de uma vez por todas com as amarras que regem todos os parâmetros da colmeia? Que existe uma forma de dar fim ao trabalho pesado, à má qualidade de vida e à censura que todas nós somos submetidas e, com isso, te libertar do sacrifício?
Haabel largou o que estava fazendo assim que ouviu as palavras subversivas que vinha da boca da outra. Primeiro, ela sentiu-se como se estivesse em uma utopia, fora da realidade, logo em seguida, Haabel experimentou uma sensação completamente perigosa, era como se algo dentro de si, que estivera a muito tempo adormecido, enfim acordasse. O despertar do extinto desconhecido fez com que a operária sentisse cada célula do seu corpo ser renovada trazendo, estranhamente, alívio. Mesmo antes de sua vida dar aquela reviravolta, enquanto trabalhava na grande fábrica, Haabel sentia aquele fio tênue de insatisfação que mexia com algo intriscicamente ligado a ela. Depois do rito da escolhida, esse instinto desconhecido pareceu se triplicar dentro dela. A descoberta no ninho, junto com a proposta de Rebecca foi finalmente o ponto de ruptura que ela precisava para que enfim despertasse de um sono, que há muito tempo, a deixou inerte diante as injustiças na colmeia. Quando Haabel finalmente ergueu o seu olhar para a capitã, ela já estava decidida na resposta que daria:
—Eu pediria para que mostrasse como.
[...]
Depois da enxurrada de informações que havia recebido no último dia, Haabel decidiu que precisava espairecer, precisava de um tempo para colocar as ideias no lugar, e a partir disso decidir o que fazer. Rebecca também notou isso porque, depois do seu último encontro, ela havia pedido para que a operaria esperasse até que finalmente pudessem descutir sobre o plano subversivo que havia compartilhado com Haabel, para que assim dessem o primeiro passo — de seja lá o que for. Verdade era que Haabel não tinha entendido cem por cento do que Rebecca estava propondo, a mísera notícia de que havia uma alternativa de se ver livre do sacrifício, e com isso, também melhorar a qualidade de vida das operárias, foi suficiente para fazer com que ela concordasse de cara.
Durante todo esse período, apesar de estar incomodada, ela nunca havia ousado desafiar ou rebelar-se, embora de vez em quando desabafasse com Melissa ou com as "gêmeas" sobre as rotinas opressivas em que estavam envolvidas. A ideia de tomar qualquer atitude parecia ridícula em sua mente, afinal, alguém como ela jamais conseguiria liderar uma revolução sozinha. Por muito tempo, Haabel acreditou que era a única a questionar a situação e, por isso, concluiu que não valia a pena o esforço. No entanto, ao finalmente perceber que não estava sozinha e que até mesmo alguém tão importante como Rebecca compartilhava da mesma ideia, uma nova sensação começou a crescer dentro dela: a esperança. A ideia de que, além delas, outras operárias também desfrutavam de tal insatisfação mesmo que, em silêncio, fez ela acreditar veementemente que, talvez, as coisas pudessem mudar.
isso, já estava de bom tamanho.
Era noite na colmeia, o céu noturno encontrava-se repleto de estrelas brilhantes, a lua com seu brilho prateado realçava ainda mais a beleza noturna, quem visse de longe a paisagem bonita e silenciosa não imaginaria que as habitantes dali encontravam-se sofrendo devido ao cansaço extremo no qual eram submetidos, pelo menos sua maioria, a noite que deveria ser um tempo de aproveitarem as companhias uma das outras, era tida apenas como um bálsamo de descanso temporário para o corpo ferido de cansaço.
Haabel, que havia perdido o sono naquela Noite, estava no Jardim. Sentada com as pernas cruzadas em um dos bancos de observação, usando nada mais que uma calca larga e uma blusa alaranjada, seu pijama padrão, ela apenas se mantinha calada admirando a paisagem, enquanto sua mente se afogava em uma mar de confusão, ideia e sentimentos. As árvores, majestosas, estendiam seus galhos para o céu estrelado, como se buscassem tocar as estrelas. Suas folhas, iluminadas pelas luzes do céu, se movimentavam suavemente, sussurrando melodias em meio à quietude da noite. Enquanto observava a beleza da natureza, Haabel sentiu pouco a pouco o sentimento de afogamento e sufocante que crescia dentro dela se dissipar em forma de serenidade. A operária se manteve assim, silenciosa e pensativa, até que finalmente sentiu quando alguém lhe tocou levemente nos ombros, o toque era leve mais quente o suficiente para que Haabel sentisse seu estômago lhe fazer cócegas, ela sabia que era Nariah.
— Tem restrição de horário para ficar aqui? — Haabel perguntou baixo enquanto inclinava um pouco o seu pescoço para trás afim de ver a outra.
— Se tivesse, você iria obedecer? — Nariah devolveu a pergunta em um tom leve.
Haabel sorriu em resposta enquanto observava a outra sentar ao seu lado. Era a primeira vez que a operária a observava de forma tão descontraída. Seus cabelos prateados, soltos e rebeldes, caíam sobre os ombros, adornando-a com uma aura encantadora. Assim como Haabel, ela vestia apenas calças e uma blusa larga, porém, em um tom negro. Sua aparência parecia ainda mais graciosa naquele momento, seja pelos olhos afetuosos que se inclinavam em direção a Haabel ou pelo sorriso vermelho que brilhava em seus lábios. Cada detalhe contribuía para torná-la ainda mais fascinante aos olhos de Haabel, fazendo com que tudo ao seu redor se tornasse um devaneio inebriante.
— Como você está? — Nariah Perguntou gentilmente, estava claramente se referindo aos acontecimentos de ontem.
Haabel deixou que uma perna descesse para o chão enquanto a outra continuava cruzada e pensou na pergunta. Não estava bem, seria impossível que estivesse, mas, depois de conversar com Rebecca, ela percebeu que também não estava tão mal.
— Acho que voltei à estaca zero. — o que não era uma mentira, respondeu. finalmente.
Nariah a encarou por alguns instantes.
— Acha mesmo? — perguntou retóricamente, havia um tom escondido em suas palavras, mas que Haabel não havia notado. A Rainha ficou em silêncio até que finalmente fez a pergunta que há muito queria fazer — Por que lutar tanto, Haabel?
A operária a olhou estranhamente, não entendendo o que a outra havia perguntado. Nariah a explicou:
— Você viveu uma vida de trabalho intenso durante anos, nunca conheceu outros lugares a não ser o mesmo trajeto para a grande fábrica. Tudo o que vislumbrou foi repreensão e silenciamento e nem ao menos desfrutou momentos de socialização decentes — Nariah a encarava com uma urgência de resposta dolorosa — então, por que deseja tanto viver? Por que essa vida tão banal é importante para você? Por que morrer seria assim tão ruim? — antes de Haabel abrir a boca para responder Nariah a interrompeu — Não quero alegorias, nem interpretações bobas. Quero que seja sincera comigo.
Haabel parou por um instante. Desceu o olhar e estremeceu ao obter uma resposta que não queria:
— Eu não sei — disse francamente, Nariah permaneceu calada aguardando para que Haabel continuasse — na teoria a morte era pra ser uma ideia desejosa pra mim, assim como é para as outras operárias mas... — Haabel levantou o olhar para a outra — na prática eu simplesmente não a vejo como uma alternativa. A vida é... Estranha. Eu não consigo descreve-la nem explica-la, mas sei que ela arde inerentemente em tudo o que eu vejo. Talvez, essa seja a chave, mudar a perspectiva que está olhando. Você a vê como irrelevante, mas eu a vejo como um potencial a ser melhorado. Ela está lá quando eu acordo, sobre o vislumbre de um pássaro qualquer que sempre está cantando na minha janela, está enquanto caminho até a grande fábrica, nas árvores e flores que existem até lá, está nos pequenos momentos de conversa que tenho com algumas operárias. E, quando eu finalmente volto para o distrito, ela me segue junto com as estrelas. Então, porque é que tenho que a desprezar quando a vida está em tudo o que eu sou? — ironicamente, Haabel sentiu algo molhar seus olhos, fazia muito tempo em que ela não sentia a sensação das lágrimas escorrerem sobre o seu rosto — Talvez eu realmente devesse me condensar a ideia de morrer, mas, ainda sim, isso me parece um marco difícil de alcançar.
Haabel viu, pela primeira vez, a aparência tranquila e impenetrável da outra desmoronar diante das palavras que saíam de sua boca. A Rainha da colmeia, o poder que mantinha todos os outros princípios intactos, não só não tinha resposta, mas também, pela primeira vez em sua vida, começou a questionar lentamente se aquele modelo estava realmente tão correto quanto imaginara. Por um breve momento, tudo pareceu se turvar. O som dos grilos foi a única melodia que ecoou no ambiente. Após um tempo, Nariah estendeu seus dedos delicados e enxugou a única lágrima que escorria pela bochecha da Haabel.
— você não é, definitivamente, o que eu achei que seria — murmurou baixo enquanto desceu seus dedos lentamente até os pousar delicadamente sobre o queixo de Haabel.
A operaria estremeceu, e sentiu sua pele se arrepiar ao receber aquele toque. De todos que havia recebido, aquele era o mais íntimo e, o que mais fez com que algo esquisito dentro dela queresse que aquilo continuasse. Quando falou, seu tom era incerto:
— E o que esperava que eu fosse?
Nariah não respondeu, ao invés disso ela riu silenciosamente e desceu os dedos até o pescoço de Haabel a puxando lentamente para que se aproximassem, seus olhares se encontraram por uma fração de segundo, a respiração de Haabel pareceu parar diante a tantos sentimentos que a invadia, ela iria abrir a boca pra fazer algum comentário irônico para quebrar o gelo, mas antes que pudesse pensar no que falaria, Nariah a beijou. Não foi como o leve roçar de lábios que haviam dado quando Haabel questionou Nariah. Não era só o toque que foi diferente mas, o sentimento que o acompanhava. Primeiro, Nariah só encostou seus lábios, ficaram assim por meros segundos, como se a rainha quisesse que Haabel se acostumasse com a sensação, até que, finalmente, Nariah abriu lentamente a boca dela. Ao sentir o toque molhado e aveludado da língua da loira sobre a sua Haabel, se inclinou um pouco para longe, estranhando a sensação. Nariah, ao ver isso, não se afastou, pelo contrário, ela riu levemente contra os seus lábios e a puxou novamente para mais perto, tão perto que a operária conseguiu sentir o perfume doce e fresco das flores tão característico dela. Haabel deixou que suas línguas se encontrassem e trocassem contato, deixou também que as mãos de Nariah acariciasse seu pescoço e, pior ainda, deixou que um sentimento perigoso, que há muito tentou prender, se libertasse.
Era intrigante. Viver constantemente cercada por restrições, uma após a outra, transformava aquele momento em um dos mais curiosos e impressionantes de toda a vida de Haabel. Embora não houvesse proibições explícitas em relação ao toque e ao afeto entre as operárias, a desaprovação era clara. Por causa disso, Haabel passou toda a sua vida sem ter experimentado sequer um abraço, sem sentir a pele de outra pessoa se acolhendo contra a sua, sem experimentar o calor humano. A privação a transformou em uma pessoa fria, assim como muitas outras operárias. O contato físico não era uma necessidade vital, mas de alguma forma fazia as coisas parecerem mais significativas. Sentir o toque íntimo de Nariah fez com que Haabel percebesse o quão gelada havia sido toda a sua vida e, pela primeira vez, ela teve o privilégio de se aquecer. Foi como se um véu tivesse sido levantado, revelando um mundo de sensações e emoções que ela nem mesmo sabia que existiam. Sem perceber, a Rainha havia acabado de colocar mais um motivo na lista motivacional de Haabel. Por isso, quando a outra desgrudou seus lábios e fez menção de se afastar, a operária inconscientemente pegou em sua mão.
— Só... — sussurrou lentamente — fica comigo por mais alguns minutos? — perguntou sentindo-se boba.
Nariah sorriu e se aproximou dela novamente. Quando seus lábios voltaram a se encontrar, Haabel suspirou aliviada ao ter aquele calor sobre si novamente. O desejo se instalou em sua veia como um vício, perigoso e forte o suficiente para fazer com que ela deixasse de lado toda e qualquer ideia subalterna e se perdesse em meio aquela dependência que se instaurou em cada parte do seu ser.
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