[O SENTINDO DA VIDA, A DEFESA DA MORTE] CAPÍTULO 8
2/3
O final do outono, por ironia, não foi exatamente como Haabel imaginou que fosse. Quando chegou ao Castelo, ela soube instantaneamente que quanto mais a data de sua morte se aproximasse mais difícil iria ser para ela aguentar ficar ali, conhecendo como era ela, seria bem capaz que Haabel pensasse em fugir durante esse período, ou, pior, ficasse muito mais reativa e explosiva com todos ao seu redor, incluindo a Rainha. Mas, o que parecia ser uma semana caótica foi, na verdade, uma das melhores que ela já teve em sua vida. Talvez porque houvesse uma esperança pequena que fosse, de permanecer viva, ou, porque a companhia que teve durante o decorrer desta foi muito mais agradável do que pensou que fosse.
No início, a simples ideia de partilhar seus pensamentos com alguém tão importante como Nariah parecia intimidante e assustadora. Sua voz havia sido sufocada e reprimida durante tantas estações, obrigada a guardar para si todas as suas ideias, que agora a oportunidade de expressá-las, mesmo que em parte, parecia quase inacreditável. Nariah não era como qualquer operária, é de se esperar que uma Rainha como ela esteja acostumada a reter pensamentos, no entanto, ironicamente, ela fazia o contrário disso e esse fato deu a dose de coragem que Haabel precisava. E foi, por isso que os dias seguintes, depois do encontro que tiveram no jardim, foram mais fáceis de ter suas ideias libertas sem a apreensão de uma possível bronca.
A sensação de finalmente poder expressar seus sentimentos, graças à concessão especial da Rainha, era tão intoxicante que Haabel não perdeu tempo em agir. Após a primeira conversa em que Haabel e Nariah compartilharam suas ideias, seus encontros tornaram-se mais frequentes. Quando ela não estava ocupada com seus deveres de purificação, Haabel estava na biblioteca, buscando informações para embasar seus argumentos, ou ao lado de Nariah. Foi em uma dessas vezes na biblioteca que Haabel achou um livro um tanto... Peculiar. Ele estava em uma estante um pouco mais afastada em uma ala que não estava especificada. A operária procurava algo sobre orquídeas quando viu o título grande e curioso: " Preliminares e técnicas" escrito pela rainha Victória. Haabel teve um lampejo de curiosidade, largou os livros sobre flores e botânica e sentou-se no chão cruzando as pernas e abrindo o livro. Em meio a tantos capítulos com palavras e alegorias que ela nem mesmo entendia, um dos títulos lhe chamou a atenção:
O beijo e seu potencial terapêutico.
A princípio Haabel não entendeu muito bem o que aquilo significava, foi só lendo os primeiros parágrafos que ela entendeu que o beijo era o ato de pressionar os lábios sobre os de outra pessoa, e tinha dois tipos. O primeiro era apenas um roçar de leve entre as duas bocas, de acordo com o livro este era uma demonstração singela de respeito e carinho, estimulava impulsos de euforia e bom humor, o segundo tipo já era um pouco mais íntimo e contava com o contato da língua, Haabel nessa parte teve que parar e imaginar como aquilo seria, e, o papel daquele beijo, era estimular impulsos de prazer e bem-estar, ajudava também na melhoria do sistema imunológico, além é claro de fazer tudo o que o primeiro tipo fazia.As páginas seguintes descrevia os seus inúmeros benefícios, que ia desde melhor funcionalidade física até evolução emocional. Havia também outros tipos de beijos em partes diferentes do corpo, mas a autora pareceu não querer se especificar muito nessa parte.
Quando Haabel terminou de ler, ela se sentiu extasiada, era como ter um novo mundo se abrindo em sua mente. Era fácil imaginar que operárias não tinham contato físico entre si, Coisas como abraços e apertos de mãos, talvez, fossem o único gesto entre si que operárias compartilhariam em toda a sua vida, talvez nem isso. E como seres sem desejo sexual, ninguém via problema algum naquilo.
Naquela tarde, quando se encontrou pela segunda vez com Nariah naquela semana ela não conseguiu se concentrar em nada que havia preparado, as palavras do livro — que mais parecia um guia de instruções — ainda se embaralhavam em sua mente enquanto caminhava ao lado de Nariah. A Rainha havia lhe dito que queria lhe mostrar algo e era por isso que se encontravam andando pelos corredores de uma ala restrita qualquer. Foi em meio ao silêncio que percorria por todo o ambiente que a operária achou a deixa perfeita para comentar o que havia visto da biblioteca naquele dia.
— Eu li um livro hoje na biblioteca... — Disse ela casualmente.
— Qual livro? — perguntou Nariah sem encara-la.
— Na verdade , foi um capitulo de um livro, o beijo e seu efeito terapêutico — talvez fosse por ter lido e já saber o conteúdo deste, mas assim que mencionou o nome Haabel sentiu as bochechas ficarem vermelhas.
Nariah ao ouvi-la parou levemente de caminhar e a encarou, toda a sua antiga aura apática deu lugar a uma expressão surpresa e curiosa:
— Onde você encontrou esse livro?
— Na parte mais interna da biblioteca, foi por acaso...— Defendeu-se
A Rainha franziu o cenho e pareceu pensar por um segundo, tempo depois ela voltou sua atenção para a operária e riu levemente:
— Qual é a sua dúvida, Haabel? — Perguntou, seu tom era de puro divertimento
Haabel a encarou por alguns instantes, aquela foi a primeira vez que havia parado para ver Nariah sorrir, o som anasalado da risada era algo gostoso de se ouvir , sem contar que o sorriso que brincava nos lábios da matriarca atenuava e muito a boa aparência que ela tinha. Haabel foi pensar na pergunta que ela tinha feito logo em seguida; a questão era que a operária não tinha uma dúvida elaborada e sim resquícios de questões levantadas ao ler o livro.
— Será que é verdade tudo aquilo que está escrito? — Começou ela, seus ombros estavam abaixados enquanto se recusava a encarar diretamente a outra — Eu sei que foi a Rainha Victória que escreveu e que não devemos questionar, mas... Alguém já de fato provou se é verdade? Em uma das páginas ela menciona que o beijo pode ajudar a diminuir o cansaço, dar mais ânimo e combater a...
Tudo aconteceu rápido demais. Em um momento, Haabel estava tagarelando sobre efeitos benéficos e, no outro, sem mais nem menos não conseguiu mais falar. Seus olhos se arregalaram levemente quando sentiu um leve toque em seus lábios, era algo macio o suficiente para lhe arrancar cócegas. Nariah pressionou sua boca um pouco mais contra a da operária e depois se afastou rindo. Haabel a encarou boquiaberta.
— E então, O que acha? O livro está certo ou não? — Perguntou enquanto empurrava um mexa de cabelo para trás da orelha de Haabel.
— Eu... — Começou incerta — Eu não sei... Por que você...?
Nariah riu ainda mais e pareceu procurar algo em sua mente:
— Em uma das páginas ela fala que esse simples beijo pode dar mais vitalidade e energia. O que acha Haabel? Se eu te colocasse pra trabalhar na grande fábrica agora mesmo você aguentaria mais do que aguentava antes?
Ela não precisava nem pensar:
— Não. — respondeu sem rodeios.
—Logo, ele não é cem por cento correto — concluiu e em seguida acrescentou com um sorriso indecifrável — a propósito esse livro estava perdido, ele é da sessão de práticas para vôo nupcial.
Haabel arregalou os olhos. Estava parada ainda absorta na revelação que acabaram de receber. A rainha, que já havia voltado a caminhar, se virou levemente e fez um gesto pedindo que Haabel se apresasse e a seguisse. A operaria coçou a cabeça e correu brevemente para alcança-la.
— Vôo Nupcial? — perguntou boquiaberta, depois de se recompor — Mas... Não é errado?
— O que é errado? — perguntou Nariah com falsa inocência.
— Fazer isso comigo... — murmurou Haabel ainda sem entender — Quer dizer, esse ato não deve ser exclusivo entre você e os zangs?
Nariah, parou os passos assim que percebeu que havia chegado aonde queria. Ela, colocou a mão na maçaneta gélida de aço e virou o corpo para Haabel, sua expressão estava descontraída quando disse:
— Exclusivo? — ponderou — Não é.
Haabel Franziu o cenho se sentindo irritada. Nariah sabia onde ela queria chegar mas, estranhamente, parecia querer que Haabel se explicasse ainda mais, como se esperasse desvendar algum aspecto obscuro sobre a operária. Haabel entendeu isso, e se sentiu sem paciência.
— Então porque não é permitido que operárias façam isso? — Haabel parou por um momento e pareceu pensar, estava buscando algo em sua memória. Quando voltou a falar, seu tom era decidido — Ao menos nunca vi ninguém se beijando por aí...
— Aí é que está. Você não vê, mas não é algo proibido. — Nariah disse enquanto batia os dedos na maçaneta — Nenhuma Rainha nunca postulou proibições sobre contato físico.
E ainda sim nenhuma operária nunca sentiu necessidade de que ele ocorresse. Haabel completou mentalmente. A operária coçou a cabeça enquanto pensava se ela mesmo alguma vez já havia sentido aquela vontade. Era uma questão sinuosa, até porque contatos físicos envolviam diretamente intimidade e, ela, nunca havia compartilhado tal sentimento com ninguém. A resposta então, era clara. Ao ver que as dúvidas de Haabel haviam sido sanadas, a loira puxou a maçaneta e entrou no cômodo.
Instantaneamente, ao entrar, Haabel foi recebida por uma atmosfera completamente diferente. A sala era ampla, porém pouco decorada, com paredes opacas e sem graça. Poderia parecer um cômodo comum se não fosse pelos objetos e mesas que o denunciavam. No centro, havia uma mesa ricamente polida, onde uma variedade de jogos estava disposta, e Haabel só conseguiu identificá-los quando Nariah lhe disse. Havia cartas, bastões, pinos e quadros, mas o jogo preparado pela Rainha não era nenhum desses, era o Xadrez. No centro da mesa, havia um tabuleiro grande feito de uma madeira extremamente brilhante, com as peças já organizadas. Então, Nariah pediu que Haabel sentasse em uma das cadeiras estofadas. Como a operária não conhecia o jogo, Nariah teve que explicá-lo pacientemente. O Xadrez era jogado com seis diferentes peças: Rainha, Rei, Bispo, Cavalo, Torre e peões. Cada peça tinha uma função de movimento diferente, mas todas tinham em comum a função de proteger sua Rainha e tentar capturar a do oponente. O objetivo era dar Xeque-mate na Rainha do oponente¹, ou seja, ameaçar a Rainha de ser capturada sem que ela tivesse para onde se mover sem estar sob ataque. Haabel entendeu instantaneamente o que Nariah quis transmitir nas entrelinhas do jogo: as peças representavam as operárias, que, apesar de exercerem funções e carreiras diferentes, tinham em comum a responsabilidade de proteger a Rainha. Quando a matriarca caía, todos caíam junto, e por isso os peões e as outras peças escolhiam se sacrificar para manter sua segurança. Embora pudesse sentir-se levemente incomodada com essa ideia, o jogo parecia tão animador que Haabel não teve tempo para pensar no verdadeiro significado por trás de tudo aquilo. Elas jogaram cinco partidas no total, sendo que Nariah venceu quatro e elas empataram na última. A Rainha ficou orgulhosa do desenvolvimento de Haabel e, por um instante, puderam desfrutar de uma aura de distração sem o peso do sacrifício iminente.
¹ [ a função de Rainha e rei foi trocada em ração do segmento do enredo da história]
A última semana então se passou com inúmeras tentativas de Haabel tentando explicar e defender a sua sobrevivência e, frequentemente, terminava com Nariah quebrando todos os seus argumentos. Ela procurava explicações nas coisas mais simples e impensáveis que se podia encontrar. Certa vez, ela pegou a enciclopédia e abriu no capítulo introdutório, este que resumia o ciclo de uma operária, desde o ninho até o distrito Dezesseis, o último distrito da colmeia. Ela o empurrou sob a mesa, e Nariah, que estava sentada, passou um olhar preguiçoso sobre as linhas de palavras.
— Tudo tem um ciclo e obedece a ele, a vida não é diferente. Um operária comum tem um tempo estimado de vida, isso lhe é dado antes de nascer. Nesse caso, é mais que certo que eu deva obedecer a esse ciclo. Você mesma disse que os preceitos da colmeia não devem ser quebrados então, porque tem que haver uma exceção?
Nariah levantou seu olhar lentamente para Haabel.
— Você é o que legitima esse ciclo, Haabel. O seu sacrifício é o que garante que ele exista.
Haabel, ao ouvi-la, fechou a enciclopédia com um suspiro irritado. No dia seguinte ela havia usado o pôr do sol como exemplo. Quando Nariah encontrou Haabel a operária estava sentada sobre o batente da janela despreocupadamente, e ao vê-la, Haabel se inclinou sob a janela encarando o brilho do gigante amarelo que se punha lentamente perpendicular à direção que havia nascido e começou o seu discurso:
— O sol tem um trajeto bem delineado. O seu nascer e seu se pôr significa uma trajetória e ela é importante o suficiente para que ele se torne o que é, a sua importância vem por causa disso, de saber quando é a hora de ir. Se ele não nascesse, as plantações morreriam sem obter a energia necessária, em contra partida, se ela não se pusesse e continuasse o dia inteiro a brilhar essas mesmas plantas também morreriam queimadas. — a operária balançou as pernas levemente enquanto terminava filosoficamente a sua alusão — Eu não acho que é minha hora de ir, no entanto sei que um dia isso acontecerá, mas não agora. E se meu trajeto for interrompido, talvez, eu nunca tenha a chance de viver uma outra vida depois dessa.
Nariah encarou por alguns instantes antes de se aproximar, ela passou a mão sobre a cintura de Haabel e a empurrou para que descesse do batente. Quando os pés da operária bateram no chão, Nariah se afastou.
— Como vai viver uma outra vida se não quer cumprir com o objetivo dessa aqui? — disse empertigando os ombros preguiçosamente — a propósito não fique se pendurando por aí, se quebrar seu ossos vamos ter que retirar o membro danificado.
Haabel lançou um olhar assustado para a outra, este que foi recebido com um sorriso, que não era caloroso o suficiente para dizer se aquilo era brincadeira ou não. Em algumas vezes as alegorias de Haabel eram tão absurdas que fazia com que a Rainha não fizesse nada além de balançar a cabeça, como se não acreditasse no quão maluca a mente dela era.
— Você está tentando me dizer que o fato de haver uma estrela próxima à lua esta noite pode ser uma espécie de sinal? — zombou Nariah com os braços cruzados.
Haabel acenou:
— e porque não seria?
— Ah, Haabel. — Nariah riu enquanto se afastava.
Seja como for, Haabel tentou de todas as formas possíveis. Não houve um dia sequer que ela não havia procurado uma maneira de defender o bem mais estimado que ela tinha. Usou alegorias, livros e até mesmo coisas sem sentindos que vinham como um lapso em sua mente, apesar disso, não parecia que estava tendo nenhum progresso com Nariah. A Rainha sempre parecia saber a maneira certa de retrucar qualquer narrativa que ela pudesse usar. E isso era frustrante. Não tinha como saber se a outra realmente, alguma vez, cogitou a possibilidade de a libertar do sacrifício, e, se tivesse feito, nunca deixou transparecer nada. Porém, uma coisa que Haabel havia notado, era que Nariah estava muito mais afetada do que antes, apesar da ironia várias vezes usada, ela realmente ouvia e absorvia tudo que Haabel falava. E quando terminou a semana, Nariah parecia entender muito mais Haabel e como funcionava sua linha de raciocínio, por conta disso, Haabel acreditou veementemente que ela e Nariah estavam empatadas, e, talvez, o jogo só foi virar de fato no início da semana seguinte, quando Nariah a levou para visitar o Ninho da colmeia.
A promessa da visita havia surgido depois do último encontro delas, após ouvir mais uma vez as alegorias de Haabel — daquela vez sobre como as estações se uniam para transformar e trazer renovação — a Rainha, que nem se deu ao trabalho de retrucar, a avisou que ficaria fora durante o final de semana mas que retornaria na terça e a levaria para conhecer o Ninho. Obviamente a operária quis fazer muitas perguntas, no entanto, a Rainha se limitou a responder que ela guardasse esses questionamentos para o dia da visita. Sem ter pra onde recorrer Haabel apenas obedeceu.
O final de semana passou tão rápido que Haabel mal teve tempo de se sentir entendiada. Havia passado os dias intercalando entre a purificação e os encontros infortúnios com Rebecca. Apesar de estar ocupada vez ou outra ela, ainda sim, cumpria a promessa que havia feito para Haabel. Quando não podia obriga-la pessoalmente para os afazeres da purificação ela mandava uma operária guardiã que ficava com ela durante todo o ritual. Foi uma dessas vezes, inclusive, quando Haabel tentou burlar as aulas de Elisa, que uma dessas guardas adentrou seu quarto e, praticamente, a obrigou para que comparecesse à sala da conselheira, por conta disso, Haabel foi obrigada a passar horas ouvindo sobre fisiologia e em como seu corpo era inteiramente funcional para a execução do sacrifício. Elisa também parecia gostar de incitar e, a todo instante, usava sua futura morte como exemplo, estranhamente era como se quisesse que Haabel sentisse medo de todo aquele destino.
Em questão de dias ela recuperou novamente os hábitos que havia ganhado no início da estadia ali no castelo, estava sempre banhada, alimentada, instruída — aquela altura já sabia de cor todos os reinados das rainhas do último século — e bem tosada. Rebecca detinha um tipo de poder tão forte que poderia fazer que até uma operária como Haabel entrasse na linha. Se a capitã estivesse na liderança da grande fábrica, a morena tinha certeza que se tornaria uma das trabalhadoras mais aplicadas.
Isso poderia assustar Haabel, se, Rebecca realmente quisesse fazer isso. A operária, durante esses dias, havia percebido que a capitã era uma das únicas operárias que parecia não querer a conter e, entranhamente, ela mesmo incitava Haabel para que esta levantasse questionamentos. Até mesmo Nariah procurava, de alguma forma, mudar o pensamento da operária. Se não fosse absurdo Haabel poderia jurar que, talvez, Rebecca compartilhasse das mesmas dúvidas e opiniões que ela.
Quando o dia da visita finalmente chegou Haabel se sentiu estranhamente animada, talvez a ideia de sair do castelo fosse tão animadora que ela sequer teve tempo de se perguntar qual era o plano sórdido que Nariah havia armado para aquela saída. Ela se levantou assim que sentiu os pequenos sinais do nascer do sol, se banhou rapidamente, abriu a janela e se sentou na beirada do batente com as pernas cruzadas enquanto observava o nascer do Sol. De alguma forma, ela sentiu alguma semelhança com a sua rotina em seu distrito. Ela sempre acordava no raiar do sol, se lavava enquanto ouvia os pigarreios de Melissa para ela ir rápido, e, antes de sair rumo a grande fábrica junto a trilha de operárias, ela parava pra ouvir o canto do canário que sempre aparecia em sua janela pronto para cumprir com seu expediente, assim como ela.
Era estranho pensar que antes aquela foi a sua rotina durante muitas estações, pensar que havia trabalhado tanto sendo incentivada pela promessa, que havia feito a si mesma, de que um dia finalmente escaparia daquela vida. Agora, pensando bem nessa sua fantasia, Haabel se deu conta que nunca escaparia dali de fato. Imaginar-se vivendo uma vida ociosa e libertina, longe de todo o trabalho e cheia de aventura colmeia a fora — se é que existia algo fora dali — nada mais era que uma porta de escape. Era uma fantasia boa o suficiente para fazê-la não pirar com a rotina pesada que tinha. Enquanto observava o sol já quase alinhado no céu Haabel se perguntou retóricamente se as demais operárias também desfrutavam de uma escapatória ou algum refúgio mental a qual recorrer quando a situação pedia. Se tivessem, o jardim secreto de Melissa seria, provavelmente, um lugar repleto dos mais variados trajes, ornamentos e penteados espalhafatosos de cabelo. Haabel não deixou de rir silenciosamente.
Assim que a operária entrou trazendo o desejum esperado Haabel desceu da janela e comeu lentamente enquanto uma das guardas enviadas por Rebecca a fazia companhia. Quando Haabel finalmente terminou, a operária a pediu que a seguisse até a entrada do castelo da Realeira. E, ao chegar, ela avistou, parada sobre a estrada principal, a carruagem da Rainha. A estrutura cuidadosamente esculpida do veículo era feita com madeira de alta qualidade, semelhante ao mogno, suficientemente ampla para abrigar de cinco a seis pessoas. Se dividia em duas partes: a dianteira destinada à cocheira e a principal para as passageiras. Ao se aproximar, Haabel pôde admirar os intrincados detalhes de folhas, flores e ornamentos nos painéis laterais habilmente criados à mão. Além disso, a carruagem era puxada por cavalos bem treinados, com arreios reluzentes de cor dourada. Animais de grande porte dentro da colmeia eram escassos, os que viviam ali eram usados exclusivamente para assuntos importantes, ou destinados à Rainha — Como os cavalos para transportar a carruagem e fazer o transporte de cargas em lugares que os trilhos da locomotiva a vapor não chegavam — ou para exercer tipos específicos de trabalho, como os jumentos que ajudavam carregar a carga de colheita dos Campos. Existiam poucos animais silvestres, este que viviam nos picos isolados dos vales da colmeia, como coelhos, micos e raposas, no entanto aves e insetos eram muito mais abundantes que estes. Dado que operárias detinham uma dieta completamente vegana, nenhum animal era usado para alimentação.
Quando a operária viu os cavalos, pela primeira vez, parados e presos às correntes do veículo, ela não deixou de se admirar com o porte imponente do animal, teria se aproximado um pouco mais para vê-los melhor se Rebecca não aparecesse na sua frente e a empurrasse para que entrasse no veículo. A capitã parecia dar breve instruções para as tropas, de cerca de vinte operárias, que fariam a guarda da Rainha durante o trajeto, dez delas ficariam na frente junto às duas que seriam as cocheiras e a outra metade faria a segurança da retaguarda, ao que indicava Rebecca ficaria tonando conta do castelo.
Ao adentrar, Haabel não pôde deixar de se encantar com a deslumbrante beleza interna, quase tão impressionante quanto a externa. O teto era decorado com uma requintada cornija ornamentada com renda clara. Ao lado, as cortinas de veludo vermelho pendiam, podendo ser abertas ou fechadas a qualquer momento, para permitir que os passageiros desfrutassem da vista pela janela. Os assentos, dispostos sobre várias almofadas, eram todos estofados para proporcionar máximo conforto. Ao entrar, Haabel percebeu finalmente que Nariah já estava lá dentro, estava vestida com um vestido de linho verde que acentuava ainda mais sua pele leitosa e o brilho dos fios dourados presos sobre presilha de prata, a coroa pendia casualmente sobre sua cabeça como se nunca houvesse sido tirada desde do dia da coroação, embora, na verdade, nunca tivesse sido colocada novamente até aquele momento. A Rainha ao ver Haabel parou de escrever o que quer que havia naquele pergaminho e deu um leve aceno para ela.
A operária sorriu levemente para ela e se recostou no assento acolchoado. Depois que entrou demorou cerca de alguns segundos até que as guardas se alinhassem em suas posições e finalmente o veículo começasse a se locomover. Era estranho estar ali dentro, operárias caminhavam sempre que possível, a clara exceção era o uso da locomotiva durante o trajeto para o trabalho. Ela só foi se acostumar com os pequenos solavancos e puxões após cerca de vinte minutos de viagem.
O Ninho da colmeia se encontrava a dois quilômetros depois da realeira. Em um local mais afastado dos distritos barulhentos e da grande fábrica. Haabel não sabia dizer como foi que as operária da Realeira souberam que a Rainha sairia do castelo mas, assim que a carruagem se aproximou dos centro movimentado da Realeira muitas operárias já estavam a posto ao lado da trilha esperando para que ela passasse. Muitas riam e acenavam, outras espiavam quietas mas curiosas. Nariah, porém, não havia feito nem menção de respondê-las, ainda continuava a ler e anotar com a tinta da caneta sobre o pergaminho. Haabel se aproximou da janela e espiou curiosamente a locomoção lá fora.
— Não se aproxime tanto. — avisou Nariah sem tirar os olhos do papel — Algumas operárias da Realeira não gostaram muito da escolha que fiz para o sacrifício.
Se alguma operária, por puro acaso, resolvesse catalogar todas as escolhidas para o sacrifício durante os últimos cem anos em localização ou profissão, ao terminar a lista notaria, sem muito esforço, que a maioria destas advinham de dentro da Realeira. Talvez tal índice estivesse ligado ao fato de que; operárias de dentro da Realeira estavam mais aptas — em termos de honra e bom comportamento — a serem escolhidas para o sacrifício, uma vez que a escolha estava ligada inerentemente ao fato de que a operária deveria ser alguém de obras insignes, com uma trajetória trabalhista e, vez ou outra, detentora de algum cargo considerado importante. Embora não houvesse nenhum acordo comumente assinado, as operárias dentro da Realeira esperavam que alguém de dentro fosse escolhida — assim como a presença de nuvens não significa necessariamente chuva, mas todos a aguardam. Haabel, estando presa dentro dos muros do castelo não havia notado a intensa insatisfação gerada quando seu nome, dentre tantos melhores, foi escolhido. Nariah, porém, tendo noção de tudo o que acontecia dentro e fora da Realeira, notou.
Haabel, ao ouvi-la, voltou para o seu lugar:
— Bem, elas não são as únicas.
Finalmente a Rainha tirou os olhos do pergaminho e encarou a operária com uma expressão zombeteira:
— Que bom que finalmente chegamos ao nível de relacionamento aonde você não esconde a sua petulância.
Haabel desceu os ombros e suspirou. Enquanto a Rainha se mantinha atenta ao que quer estivesse fazendo, a operaria não deixou de notar a postura da outra — havia passado tanto tempo ao lado de Nariah nas últimas semanas que começou a perceber detalhes de suas características e humor: apesar de estar sempre sorrindo, ela não fazia isso verdadeiramente — pelo menos não sempre, sua postura era bastante relaxada quando estavam a sós, era como se não precisasse esconder nada de Haabel, ela era muito boa em usar as palavras, seu humor era bastante bipolar e inconstante, podia estar rindo e brincando em um segundo e, no outro, fechar a cara. Sempre que estava curiosa ou atenta em algo ela brincava com os lábios. E, ela tratava Haabel muito diferente do que o restante de seus subordinado. Enquanto passavam pela multidão alucinada a operária percebeu que Nariah mantinha a expressão dura, suas postura era rígida e ela sequer fazia questão de prestar a atenção em quem estava lá fora. Haabel pensou por um tempo, e, quando teve seu veredito, ela o deixou escapar alto:
— Você não gosta de multidões! — exclamou surpresa com o que havia constatado.
Nariah levantou a cabeça ao ouvi-la:
— O quê? — perguntou confusa.
Haabel repetiu:
— Você não gosta de multidões. É por isso que sempre que vê uma fica tensa. — comentou se lembrando do momento da coroação, quando os olhos da outra pareceram se perder por um momento.
A Rainha se ajeitou na almofada e enfim deu atenção para a operária, quando seus olhos se encontraram a aparência de Nariah pareceu muito mais distante do que estava.
— Eu não estou tensa. — foi tudo o que disse.
— É claro que está! — Haabel disse como se a mentira de Nariah fosse boba suficiente para fazê-la rir. Logo após a operaria, se esquecendo temporariamente de quem Nariah era, se moveu e se sentou ao lado da outra — Seus ombros geralmente ficam mais levantados e mais relaxados do que estão agora — dito isso ela ergueu o braço e colocou a mão no ombro de Nariah e empurrou para baixo sutilmente como se quisesse mostrar o que estava falando.
A loira a encarou surpresa e nada disse por um longo tempo. Haabel, finalmente, ao perceber o que havia feito arregalou os olhos e abaixou sua mão. Estava prestes a se desculpar quando Nariah colocou a mão sobre sua boca e a fechou com uma delicadeza estranha. Por um momento seus olhos apenas se encontraram em um mar de sentimentos, momentaneamente, estranho.
— Nunca gostei de multidões. — confessou depois de um tempo de silêncio — O que é estranho para alguém que tem um futuro igual ao meu. As operárias geralmente prestam mais atenção no que está acima da cabeça do que no que existe abaixo dela, sabia? — Nariah tamborilhou o indicador sobre os lábios de Haabel — Me espanta você ter notado isso, sendo tão tapada do jeito que é.
Nariah tirou sua mão da boca da outra logo em seguida. Haabel, primeiro fechou a expressão ao receber o insulto, no entanto estava tão curiosa pela revelação que deixou aquilo de lado para perguntar:
— Como você se sente?
— Sufocada. — Foi tudo o quê a rainha disse.
Quando a carruagem finalmente parou, Haabel inclinou seu corpo e abriu as cortinas para enchergar o seu destino. A princípio, o lugar parecia como qualquer paisagem arborizada que existia ao redor da colmeia, no entanto, a enorme placa que surgia acima do lugar sinalizando os limites entre colmeia e Ninho e o grande número de guardas, fazendo a segurança do local na entrada, era o diferencial. Por causa do barulho que a carruagem trazia o mais coeso foi que continuassem o caminho a pé. Elas caminharam por uma paisagem longa de grama verdejante, as árvores eram poucas e por isso grande parte dos hectares, no início do trajeto, era vazio. Depois de alguns minutos andando, Haabel viu surgindo no horizonte a primeira cúpula branca e, depois disso, a paisagem foi tomada por cúpulas e prédios de vários tamanhos. O Ninho era dividido por faixa etária, ironicamente iguais ao distrito. As cúpulas brancas enormes espalhadas por todo o território eram ocupadas por embriões que eram nutridos e aconchegados até que finalmente se desenvolvessem por completo. Os berçários, era uma estrutura que se assemelhava a grande fábrica, era uma construção grande alaranjada, Horizontal, sem andares, que se estendia longamente por vários hectares e subdivisões. A última divisão era, o jardim de infância, que era subdividido em estruturas espalhadas pelo Ninho, tais estruturas eram: dormitórios, educandário, onde as crianças eram alfabetizadas, e refeitório. ele abrigava crianças do um ao dez anos de idade, todos divididos nos dormitórios de sua idade específica
Nenhuma operária, exceto aquelas que foram escolhidas para ser Amas e cuidadoras, podiam ter acesso ao Ninho depois de completarem a idade limite, o acesso era tão restrito que as amas moravam dentro do ninho — seus dormitórios era um pouco mais afastados do centro — até mesmo a guarda que fazia a ronda do local e da Rainha era escolhida a dedo.
Haabel foi atingida instantaneamente por uma onda de nostalgia, que não eram necessariamente boas, assim que teve o vislumbre dos prédios e paisagem. Não se lembrava de muita coisa, suas lembranças eram lapsos de memórias entre os prédios do jardim de infância: dormitório e o educandário. Berçário e a cúpula eram territórios onde ela não tinha lembrança afetiva nenhuma mas que ainda sim sabia que eles existiam. Conforme se aproximavam do que, poderia ser chamado de centro territorial, Haabel conseguiu ver filas de crianças indo de um ponto a outro acompanhadas por sua cuidadora, algumas voltavam do educandário, ou iam para lá, outras iam para o refeitório ou voltavam pro dormitório. Seja como for, todas seguiam a fila e a sua cuidadora. Desde cedo, o conceito de unidade já estavam sendo enraizados profundamente nelas.
Estas crianças, ao notarem os visitantes paravam de andar rapidamente e apontavam, outras apenas fingiam que não os via. As maiores, que tinham idade entre oito a nove anos pareciam saber instantaneamente que era aquela pessoa acompanhada por guardas ao redor e, ao vê-la, batiam palmas e acenavam. Estranhamente, ao contrário do que fez com as operárias da Realeira, Nariah acenava de volta para as crianças. Sua aura era completamente diferente da de momentos atrás. Haabel que observava tudo atentamente, ao ver um grupo de crianças se aproximando, parou duramente os passos. Quando o grupo pequeno se aproximou, Nariah fez questão de cumprimentar cada uma daquelas crianças, a aparência Gentil de genuína simpatia foi algo novo para Haabel e ela fez questão de a observar curiosamente por algum tempo até que sentiu alguém cutucar seu macacão irritantemente. A operária desceu os olhos até encontrar uma criança, que aparentava ter entre seis a oito anos. Ao vê-la, Haabel apertou os olhos.
— Que foi? — perguntou tirando as mãos da outra de seu macacão.
— Você não parece a Rainha! — a menina murmurou com voz doce melodiosa enquanto tombava a cabeça para o lado.
Haabel deu um sorriso de escárnio:
— Se eu fosse, você seria a primeira a ser punida por me desrespeitar e... — Haabel foi interrompida por um um aperto em seu ombro, ela sabia que era Nariah mas não ligou e, ao invés disso, se desvencilhou do toque.
A cuidadora daquele grupo encarou Haabel com espanto por causa daquela atitude, a menina ainda estava com olhos levemente surpresos diante a fala da operária, ela só foi de fato ficar menos assustada quando Nariah se abaixou e sussurrou algumas palavras para ela, a menina olhou para Haabel e riu acenando para Nariah. Haabel cruzou os braços e deu de ombros diante aquela afronta. Quando o grupo se dissipou a Rainha voltou-se para Haabel com um olhar repreenssivo.
— O que foi aquilo?
— Ela que começou. — disse simplesmente, logo após Haabel a olhou com curiosidade — O que disse de mim?
— Falei pra ela não ligar, porque entre as duas você era a mais infantil. — respondeu Nariah voltando a caminhar.
Haabel Franziu o cenho com irritação mas nada disse. Demorou, mas quando a memória chegou a sua mente, Haabel constatou que não gostava daquele lugar. A visita dentro do ninho foi constituída de: Nariah visitando várias alas do berçário e do setor infantil e em Haabel torcendo o nariz toda vez que uma criança se aproximava dela. A Rainha continuava solícita e tratava todos muito bem, mas para Haabel aquilo não passava de uma tortura. A pior parte foi quando, no berçário, a cuidadora pediu para que Haabel segurasse o bebê por um momento para que ela pegasse alguns documentos para Nariah, a operária fez várias caretas quando o pegou e, passado dois segundos, ela empurrou a criança para Nariah com um gemido sôfrego. A Rainha, durante essas atitudes, nada fazia a não ser encarar a outra estranhamente. Para Haabel duas horas haviam se passado se arrastando, ao que parecia Nariah estava fazendo uma visita de inspeção, a operaria só não entendeu o porquê dela tê-la trazido junto. Foi depois do almoço que Nariah pareceu lembrar que a operária ainda estava ao seu lado e finalmente dispensou as guardas para que fossem até a cúpula branca mais próximas sozinhas. Enquanto caminhavam, Nariah não esperou muito para fazer a pergunta que havia contido até estarem a sós:
— Quer me contar porque não gosta de crianças?
Haabel foi direta quando respondeu:
— Elas que não gostam de mim.
A Rainha sorriu ironicamente e abanou a cabeça:
— Que injusto, não é? Logo você que faz de tudo para que isso não aconteça.
Haabel não achou graça. A nostalgia trouxe ao seu encalço lembranças que estavam enterradas e que Haabel não gostou nem um pouco de vê-las emergindo. Quando o convite fora lhe feito Haabel, que estava afoita para sair da Realeira, nem deixou que tais sentimentos saíssem da pequena caixinha que lhes foram confinados. No entanto, estar ali, era como reviver os acontecimentos.
— Nunca gostaram. — disse solenemente — Assim que nasci, por qualquer que seja o motivo, eu fui afastada do convívio comum com os demais bebês da maternidade. Vivi isolada até completar meus dois anos, e, quando finalmente fui alocada no dormitório com as demais crianças, elas não me receberam, como é de se esperar— Haabel deu de ombros enquanto sentia uma sensação de aperto crescendo sobre o seu peito — E desde então tem sido assim. É meio irônico pensar que, vivo em um lugar onde um dos maiores valores é crescer em sociedade, mas, logo quando nasci, fui privada disso.
Haabel nunca havia contado aquele aspecto de sua infância para ninguém, talvez porque nunca teve a chance ou porque, de alguma forma bem estranha, acreditava que Nariah fosse a única que poderia entende-la. Apesar das nuances, ela também havia sido criada solitária no ninho da Realeira feito exclusivamente para a futura Rainha.
Aquela altura não havia mais um sorriso no rosto de Nariah, pelo contrário. Sua aparência era séria enquanto ouvia a confissão da outra. Devido a compatibilidade de suas infâncias uma espécie de confidencia nasceu naquele momento entre elas.
— Ainda sim, isso não explica efetivamente a sua aversão — Nariah constatou tempo depois.
Talvez, Haabel também não gostasse das pequenas operárias porque via, de uma certa forma, familiaridade nelas. Dentro da colmeia, o ninho era um dos únicos setores onde a influência da Rainha era restrita, e quando duas mentes libertas se encontravam havia conflito. Isso, no entanto, não foi dito. O assunto teve de fato seu fim quando elas entraram na enorme cúpula Branca.
Assim que passaram pelas operárias que faziam a guarda externa, Haabel foi envolvida pela brisa gélida que permeava o local. O branco predominante transmitia uma sensação de extrema limpeza, não havia sequer uma única mancha de sujeira na vastidão alva que se estendia à frente. A estrutura oval era dividida em dois setores: o primeiro setor era o hall de entrada, um local de desintoxicação e troca de expediente para as Amas, enquanto o segundo setor, escondido por uma segunda porta após a entrada, abrigava os embriões. Em seguida, operárias se aproximaram das duas, e Haabel e Nariah tiveram que vestir capas feitas de um tecido fino. Assim que estavam devidamente vestidas, foram guiadas até uma enorme pia de aço, onde tiveram que lavar as mãos. Por fim, quando estavam prontas, a porta da cúpula foi aberta e elas finalmente adentraram seu interior.
Haabel foi envolvida por uma atmosfera completamente diferente e nova assim que seus pés pisaram ali pela primeira vez. A temperatura do local era muito diferente de sua entrada, era mais controlada e levemente calorosa. A primeira coisa que os olhos curiosos da operária captaram foi a disposição de berços, estes que nada mais eram que estruturas de vidro que permitiam a visibilidade do embrião, todos eles estavam dispostos em prateleiras que formavam filas que se estendia por toda a extensão do local que era iluminado suavemente e com luz difusa, fornecendo a iluminação adequada para o crescimento dos embriões, ao mesmo tempo em que garantia sua privacidade. Haabel caminhou em direção ao berço mais próximo e inclinou a cabeça curiosamente, desejando ver o que havia dentro. Ela esperava encontrar uma espécie de mini bebê, mas ficou assustada e confusa com o que viu. Era um emaranhado de células sem cor, envolvido por uma camada avermelhada de proteção conhecida como casca, responsável por manter o embrião seguro contra eventos externos e pela manutenção do calor necessário. O embrião com a casca era chamado de ovo. Observando com atenção, era possível notar pequenos poros ao redor da cúpula, que funcionavam como filtros para a nutrição. Essa nutrição era fornecida por meio de uma solução nutritiva e esterilizada na qual o ovo estava submerso. Um dos trabalhos das Amas na cúpula de desenvolvimento I era exatamente de fazer a troca desse líquido periodicamente.
— Essa é a primeira fase do desenvolvimento. São meras células que ainda não se alinharam, por isso parecem tão esquisitas. — comentou Nariah instrutivamente afim de sanar as dúvidas de Haabel, depois, ao ver o olhar questionador de Haabel, ela finalmente contou o motivo de estarem ali: — Achei que seria irônico demais falarmos tanto do conceito de vida sem visitarmos o meio gerador dela.
A operária não podia deixar de concordar com Nariah. A aura que permeava aquele lugar era insuportavelmente palpável. Apesar de ser apenas um berçário, onde as sementes da vida começavam a florescer, Haabel conseguia sentir intensamente toda a energia vital que emanava daquele ambiente. Era como se cada parede gritasse pela existência dos pequeninos seres que ali cresciam. Outra coisa que Haabel havia notado era que abaixo de cada berço havia uma identificação numérica, aquele especialmente a qual ela observava era o número trezentos e quarenta.
A dinâmica de nomes na Colmeia era feita de maneira nada habitual, quando nasciam as operárias recebiam numerações que a especificavam, durante a estadia no berçário suas designações eram trocadas pois outros embriões receberiam tais números e assim, as amas embaralhavam palavras e as nomeavam ou dependendo da características da operária formavam nomes a partir disso. Se o nome fosse muito comum, ou se já fosse utilizado recentemente, as amas os acoplavam com algum sobrenome para que não tivesse erro durante as diferenciações no distrito. O nome de Haabel era o resultado de um anagrama de palavras que ela nunca se deu ao trabalho de desvendar.
— Quantos ovos existem aqui? — perguntou a operaria passando a mão no número que vira.
— Dois Mil. — respondeu Nariah sem hesitar — Toda Rainha, após o seu primeiro vôo nupcial, gera essa quantidade de embriões.
Haabel a encarou com genuína curiosidade. Era de se esperar que assuntos relacionados a procriação eram restritos a uma pequena parcela de operárias — sendo a grande maioria as que viviam no ninho. Tudo o que uma operária comum sabia era que: Somente a Rainha poderia gerar novas vidas, ela era o grande meio efetivador de todo este processo, os Zangs era um mediador subalterno que nada mais fazia que oferecer o meio necessário para que os óvulos da Rainha fossem fertilizados. O voo Nupcial era o momento que isso acontecia entre eles. Uma Rainha, governava majoritariamente para os descendentes das Rainha passada, e por isso, levando em conta o período de tempo desde a fecundação até a criança sair do ninho e virar uma operária — Mais ou menos dez anos, sendo que o ovo levava um um ano para chegar a condição de feto e mais nove anos dentro dos berçários e Jardim de infância — grande parte dos descendentes dessa matriarca seriam governados pela Rainha subjacente.
Os zangs, membros da classe inferior, tinham um processo de nascimento diferente embora ainda fosse mediado pela Rainha, ao contrário do nascimento das operárias, o óvulo que daria origem ao embrião masculino não era fecundado, e portanto podia nascer sem uma cúpula, A rainha gerava apenas um pequeno grupo de embriões masculinos, uma única vez — já que o tempo estimado de vida deles era longo — para que servissem a próxima geração de Rainhas, dessa forma a indução do nascimento deles era a efetivação de todo aquele ciclo.
— Seria invasivo da minha parte se eu te perguntasse como isso acontece? — perguntou Haabel educadamente, estava ávida por uma resposta e curiosa o suficiente para usar aquele tom na esperança de não aborrecer a Rainha.
Nariah riu e quando as palavras começaram a sair de sua boca, Haabel precisou prestar toda a sua atenção para não perder nada. De tudo o que ouviu, isso foi tudo que entendeu: ao que parecia o voo nupcial era onde a princesa virava efetivamente a rainha, e ele acontecia antes da Coroação. O processo de fertilização leva em média três semanas e durante esse tempo a princesa ficava reclusa com seus companheiros. Em síntese, eles cupulavam com ela até que finalmente seu óvulo recebesse uma quantidade muito grande de espermatozóides, que além de fertilização contribuíam para a variabilidade genética. Depois que isso acontecia, a Rainha entrava em uma hibernação de três dias, quando acordava o óvulo que havia sido fecundado já havia sido expelido e era levado para a primeira cúpula branca, que era responsável pela fase de divisão, nessa fase o óvulo se dividia em vários outros com variabilidade genéticas diferentes, ao todo, como ela havia dito, dois mil óvulos eram criados a partir da divisão e levados para a cúpula da fase um de desenvolvimento — ou cúpula de iniciação — aquela justamente em que Haabel estava. Conforme o tempo passava e o embrião crescia, ele era transferido para outras cúpulas até que finalmente, ele era transferido para o berçário. O voo Nupcial acontecia uma vez a cada dez anos, que era o tempo necessário para que todas as divisões do ninho ficassem vazias novamente. A Rainha usava termos bastante técnicos a todo momento, alguns Haabel entendeu, outros não.
— O quê é "copular"? — foi tudo o que disse depois de ouvir a explicação de Nariah. Aquela parecia ser uma ação importante já que dava início a todo o processo.
Nariah parou lentamente, parecia pensar se deveria ou não compartilhar aquele tipo de informação. Ao finalmente se decidir ela abanou a cabeça e explicou, tentando ser o mais coesa possível. Haabel ouviu tudo com a boca aberta, completamente apavorada e curiosa — muitos curiosa. De repente, depois de ouvi-la, muita coisa e aspectos começaram a fazer sentido, a cena do zang, e do que havia debaixo de suas pernas na coroação, aspectos fisiológicos e anatômicos que ela mesmo tinha começaram a despencar como uma corrente de informações turbulentas.
— Isso... não te machuca? — Haabel perguntou lentamente. Embora tivesse muito mais dúvidas do que aquela, esta foi a primeira a se revelar.
— Não.
— Qual é a sensação?
— Complexa o suficiente para eu não conseguir te explicar.
— Outras operárias...
Nariah a interrompeu:
— Não. Todas são estéreis.
— Então não é nada além de uma obrigação para a procriação? Não existe nada além disso? — Haabel, por algum motivo não estava convencida.
— Quer algum tipo de amostra, Haabel?
Haabel disse sem rodeios:
— como você poderia me dar uma?
Nariah riu enigmaticamente mas nada disse. Haabel continuou olhando para os berços calada. Sua mente naquele instante enfrentava um turbilhão de questionamentos e insatisfações. Descobrir aquele tipo de coisa não era só impactante, mas também revoltante, saber que existia tantas coisas ainda que ela, uma mera operária, não conhecia ou não sabia era assustador. Estava a apenas um mês inserida naquela nova rotina para o sacrifício e já tinha descoberto tantas coisas que em, anos vivendo nos distritos ela sequer sabia que existia. Mais amedrontador que isso, pensou ela, era saber que só estavam lhe contando essas coisas porque sabiam que ela morreria no final da primavera. Algum Tempo depois, Nariah e Haabel deram mais uma volta ao redor da cúpula de iniciação, a Rainha fazia questão que Haabel olhasse a maioria dos embriões, e, quando teve certeza que já haviam visto tudo que dava pra ver ela se virou para Haabel com uma expressão relaxada.
— Quero que escolha um desses embriões — disse Nariah casualmente.
Haabel fez uma expressão confusa:
— Por quê?
A Rainha riu e pensou alto:
— Perderia toda a graça da seletividade se eu te contasse o motivo.
Haabel coçou a cabeça e se virou olhando alguns berços, eles eram todos iguais, apenas um apunhado de células compactadas, por conta disso Haabel não pensou muito quando disse:
— Número 134.
Nariah parou um segundo e contemplou a escolha de Haabel, apesar da operária não achar diferença nenhuma naqueles embriões a rainha, no entanto, sabia muito bem diferencia-los.
— Ótima escolha. — disse finalmente.
Haabel Franziu os olhos ao contemplar a expressão engmatica da outra. A operária a seguiu quando Nariah caminhou até o berço que ela havia citado. A Rainha passou delicadamente a ponta dos dedos sobre a caixa de vidro enquanto seus olhos pareciam fixados no ovo que ali continha. Haabel olhou novamente para o embrião, na esperança de tentar enchergar o que a outra via, mas, assim que não viu nada demais, ela perguntou confusa:
— Que escolha eu fiz exatamente?
Nariah se voltou para ela e pronunciou de forma banal, como se as palavras que escaparam de seus lábios não tivessem culpa por quebrar de uma vez por todas o mantra ao qual Haabel esteve ligada por tanto tempo:
— Você acabou de escolher a futura Rainha da colmeia.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro