[ O RITO DA ESCOLHIDA ] CAPÍTULO 5
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Ironicamente a manhã seguinte não havia sido boa, assim como Nariah havia insinuado que não seria. Quando acordou, Haabel mal teve tempo de pensar sobre o que havia acontecido pois, assim que abriu os olhos, ela sentiu a movimentação em seu estômago e saiu correndo até o banheiro para vomitar. Passou cinco minutos naquela tontura de ânsia expurgando toda a maldita bebida para fora. Depois, levantou e lavou a boca com um gemido sôfrego.
E, quando por fim as lembranças do dia passado chegaram à sua mente, ela, sem alternativa, desatou na cama completamente arrependida. Se mostrar indigna era uma coisa, desrespeitar a matriarca da colmeia era outra, completamente diferente. A bebida, ao invés de a deixar mais boba a deixou confiante, confiante o suficiente para falar o que não deveria. A operária não soube ao certo o quê esperar daquele dia, se daria continuidade aos afazeres da purificação ou se sairia dali direto para a prisão da Colmeia.
A resposta surgiu uma hora depois, quando a capitã entrou no quarto junto com uma outra operária, essa que abriu todas as janelas deixando a brisa matutina adentrar no cômodo. Haabel desolada só conseguiu tapar o rosto ao sentir a claridade irritante que fazia sua cabeça doer muito mais.
— O que tem a dizer? — Rebecca perguntou tempo depois parada sobre o pé da cama, a encarando.
Haabel grunhiu com a dor enquanto continuava a tapar o rosto.
— Que eu me arrependo? — disse roucamente.
Rebecca não se convenceu:
— Você vai se arrepender daqui a pouco, não agora — disse simplesmente — Levanta.
A operária ao ouvi-la tirou a mão do rosto e a encarou em um pedido de súplica, mas, antes que pudesse choramingar, a capitã se inclinou até ela, e puxou a sua mão forte o suficiente para que Haabel se levantasse, e, com o impulso , batesse no corpo de Rebecca. Haabel a encarou ressentida:
— Não sabe ser mais cuidadosa? — perguntou coçando os olhos.
Rebecca não disse nada e saiu do quarto, Haabel entendeu que era para que ela a seguisse e a operária obedeceu. Haabel não fazia ideia para onde estavam indo, depois de passar das alas principais ela saiu para a parte externa que dava entrada ao campo de cultivo da Realeira. Sentir a brisa do dia foi reconfortante, mas o que veio a seguir não. Ela caminhou junto a capitã até chegar a uma área onde não havia plantações, o solo já tinha sido limpo e preparado para que uma nova temporada de plantio chegasse e, por hora, estava vazio. A operária encarou aquela extensão verde sobre o sol que agora ardia muito mais à sua pele e aflorava a sua dor. A operária se virou para Rebecca, que estava um pouco mais distante dela, e perguntou confusa:
— O que estamos fazendo aqui?
— Estamos? — ela perguntou como se analisasse o significado da palavra — Você irá correr toda por toda essa extensão de terra até que o juízo volte para a sua cabeça ou que todo o álcool saia de seu corpo, você escolhe. Embora eu ache que a primeira opção é praticamente inviável.
— o quê? — perguntou desacreditada.
— O processo de purificação envolve um uma série de regras com o único intuito de limpar o seu corpo e aí, você resolve simplesmente tomar uma garrafa de vinho e sair demasiadamente bêbada desrespeitando a quem bem entender. Por causa disso, todo o processo de purificação inicial foi perdido — falou Rebecca, seu tom era como se estivesse muito cansada daquilo tudo — Não sei o que esperava com isso que fez mas... Não te ajudou nem um pouco.
Haabel se sentia culpada mas, ao mesmo tempo, incitada. Era como se a situação tivesse lhe cobrado aquilo e ela simplesmente agiu como o esperado. Ninguém poderia julgar.
— O que Rainha acha disso? — resolveu apelar, como sua única alternativa.
Rebecca riu de escárnio:
— Interessante você citar ela. — disse enquanto se afastava — porque foi Nariah mesmo que recomendou tudo isso.
Haabel suspirou desanimada, "experimenta amanhã," foi o que ela havia dito já maquinando o que faria no dia seguinte. Conformada com o seu destino, a operária obedeceu com resignação. Antes que pudesse perceber suas pernas já estavam se movimentando rumo ao campo à fora. Rebecca não estava mais lá, mas deixou uma guarda para que vigiasse caso tentasse burlar as regras.
Foi doloroso de todas as formas se movimentar, seja pelo sol escaldante, pela inércia do seu corpo devido à bebida ou a vida sedentária que ela tinha. seu ritmo era sôfrego enquanto sua respiração era ofegante o suficiente para que parecesse estar sem ar. Enquanto corria, Haabel deixou sua mente deslizar, ela não entendia como seu plano não havia dado certo. Uma vez que, feito ao extremo, quase tinha lhe deixado em maus lençóis. Era estranho mas parecia que, quanto mais indigna, Haabel tentasse ser mais Nariah parecia querer levar a ideia a fundo, o que era contraditório uma vez que, a operária escolhida deveria ser alguém digno.
A operária parou por um segundo ao sentir que ia desmaiar, ela abaixou o tronco enquanto descansava os braços sobre as pernas. Ela ficou algum tempo apenas respirando e tentando alinhar a sua mente para que esta não pirasse. Não fazia sentido, não fazia sua mente escorregava a cada respiração. Se o sacrifício era um ato simbólico não fazia sentido que Nariah quisesse a matar sabendo que tipo de operária ela era, a não ser, se quisesse que o mal recaísse sobre o reinado dela.
Ela voltou a correr tempo depois, embora aquilo fosse um ato de pura tortura Haabel, estranhamente, se sentiu bem. Como se seu corpo e mente fosse renovado. Ela se vislumbrou correndo dali, correndo de sua morte, do futuro mórbido que a esperava, das obrigações e censuras que tanto recebia. Conforme o vislumbre de liberdade chegava até a mente dela, a operária corria mais rapidamente. Só foi parar quando sentiu que realmente não dava mais, o suor escorria como líquido em sua testa e corpo e ela finalmente cessou as corridas. Haabel caminhou pesadamente até a guarda que a esperava e, quando foi dizer que não aguentava mais, esta lhe instruiu para que fosse até às fontes termais se banhar. Haabel obedeceu, mesmo que sôfregamente.
Deixar que o corpo exausto descansasse sobre as águas quentes das fontes foi um privilégio que ela agradeceu fielmente por ter. A operária passou um breve tempo apenas contemplando a sua existência e depois, finalmente, se trocou. Aquele seria o primeiro dia das aulas dos reinados anteriores, o que Haabel não via a mínima necessidade. Rebecca, após a operaria almoçar, a levou até uma das salas da biblioteca e deixou a garota sobre os cuidados de uma das conselheiras.
As conselheiras, assim como as dançarinas, viviam na Realeira, além de ajudarem na tomada de decisão, opinando, elas também eram as precursoras de pesquisas científicas e histórica dentro da Colmeia. Tal cargo era alcançado primeiro, trabalhando duro até o distrito da maioridade, depois elas eram enviadas para a Realeira e podiam optar por se tornarem guardas, servas, dançarinas ou conselheiras - se optassem pela última seriam induzidas a uma rotina maçante de estudos e pesquisa e só se tornariam de fato conselheiras reais se passarem no teste final. Era assim com todos os habitantes da colmeia que haviam chegado ali após saírem do distrito da maioridade.
A sala onde Haabel iria receber os ensinos não era tão grande mas confortável, havia uma pequena mesa de madeira escura com dois lugares onde as cadeiras acolchoadas estava. Uma delas estava ocupada por um operária que a esperava com um sorriso gentil, ela era um pouco mais velha e aparentava estar em sua centésima vigésima estação. Haabel se sentou aonde era esperado e a cumprimentou brevemente, tempo depois a conselheira abaixou o livro de suas mãos.
— É um prazer te conhecer, Haabel. — disse a encarando — Me chamo Stella e serei sua primeira educadora durante seus ensinamentos dos reinados anteriores. Sei que deve estar um pouco confusa com a quantidade de informações que vêm recebendo mas, prometo tentar fazer com que tudo pareça mais simples.
Haabel sorriu levemente e concordou enquanto continuava a ouvir, não tinha o que falar e, mesmo se tivesse, não valeria muito a pena.
— O objetivo dessa aula é relembrar alguns feitos históricos dos reinados anteriores e os liga-los aos seus respectivos sacrifícios. — a conselheira Stella lhe passou o livro no qual lia minutos atrás e deu leve batidinhas no conteúdo dele — Começaremos pela Esther. O que você se lembra do reinado dela?
Haabel baixou os olhos para a imagem do rosto jovial da Rainha recém-falecida, seu semblante era firme e enigmático, com um olhar azul carmim límpido capaz de refletir qualquer imagem. Esther havia falecido aos 80 anos, após viver 280 estações. Apenas duas semanas após sua morte, Nariah assumiu o trono. Lembrar dos feitos de Esther era fácil para Haabel, afinal, ela tinha sido a Rainha que lhe deu a vida, e a mais recente entre todas as outras. Apesar da rápida transição, o processo de luto já havia começado cerca de um ano antes. Ao contrário das operárias, as rainhas sabiam quando iriam morrer e, por isso, quando faltavam quatro estações para essa data chegar, ela anunciava a toda colmeia e, a partir disso, iniciava-se o processo de luto. Esse consistia na mudança das cores das roupas das operárias na grande fábrica, do laranja para o preto. O processo de luto também envolvia semanas de preparação para o enterro da matriarca, além das decorações de flores fúnebres por toda a colmeia. Assim, quando faltavam cinco meses para a data da morte chegar, os preparativos para a coroação começavam. No dia em que Esther finalmente faleceu, houve um ritual de silêncio durante o dia inteiro. Os maquinários pararam, assim como o trabalho e as operárias. O dia da morte era precedido por silêncio e jejum. No dia seguinte ao enterro da matriarca, tudo voltava ao normal. Era como se Esther nunca tivesse existido, e uma nova deusa assumisse o seu lugar. E era assim com todas as Rainhas, e também seria com Nariah. Na lembrança de Haabel o reinado de Esther havia sido como todo e qualquer outro, regado de trabalho duro, monotonia e nada de diversão. Todas as melhorias que foram feitas tiveram o único intuito de transformar o trabalho em algo mais complicado ou extenso , que ainda sim, não levou em conta o bem estar de quem prestaria esse serviço. Nesse caso, para Haabel, tinha sido um reinado comum e, portanto, difícil de achar algum fato notável.
— Extensão de alguns setores na grande fábrica...— foi o mais coeso que Haabel se lembrou.
Desde a subida de Esther ao trono a grande fábrica foi honrada como nunca antes, setores foram aumentados por todos os prédios, jornadas de trabalho mais extensas foram criadas como punição — Haabel sentiu na pele essa mudança — e medidas para uma melhor efetividade durante as horas de serviço, sem contar as mudanças que houveram no campo. A safra de grãos e frutos foi dobrada e, por consequência, houve aumento da área rural para além das matas. Quando a conselheira ouviu a operária ela sorriu com a resposta e continuou:
— Muito bem. Esther foi uma das forças que legitimou a soberania da grande fábrica — a parabenizou — E o que se lembra da Ex-Rainha luna? — Haabel pensou mas não teve resposta, ao ver que a outra não sabia a conselheira continuou — A ampliação da rede elétrica foi uma das obras que tiveram mais êxito no reinado de Luna.
Era verdade. Antes de Luna a eletricidade era uma tecnologia quase escassa, com prioridade na grande fábrica e no castelo — nem mesmo as operárias da Realeira desfrutavam desse privilégio. A energia da colmeia vinha por meio da usina de rede eólica dos campos que eram administradas na ala elétrica da grande fábrica. No entanto, tal energia sempre foi instável por causa da ambientação, nos verões áridos da Colmeia era quase impossível algum vento passar e, por isso, quedas de energia era algo muito recorrente, por conta disso a rainha e suas conselheiras passaram anos estudando meios e formas de converter tipos diferentes de energia em cinética, foi no terceiro ano que finalmente descobriram a tecnologia das placas solares e, essa, foi uma das maiores evoluções dentro da colmeia. Desde então, toda a grande fábrica era composta de painéis solares e sua energia advinha dali, a usina eólica abastecia os distrito e a realeira.
Haabel, ao se lembrar, acenou com a cabeça e se recostou na cadeira esperando o restante do ensinamento: O que se seguiu adiante foi uma longa passagem atemporal entre feitos dos últimos reinados anteriores, dez últimos. Passou por Elizabeth e sua aprimoração das tecnologias do Ninho, Até Victoria e seu investimento em agricultura e pesquisa para encabeçar a grande enciclopédia.
— Você deve estar se perguntando qual o motivo de toda essa recapitulação, não é? — disse Stella finalmente — fica a pergunta, o que todos esses grandes feitos tem em comum? Qual é a fórmula secreta para que um reinado seja grande e excelente em termos de desenvolvimento?
Haabel sabia onde ela queria chegar e apenas suspirou fingindo-se de boba:
— Não faço ideia.
A conselheira sorriu gentilmente e avançou o livro que havia os retratos das matriarcas até a última folha, chegando onde queria ela o empurrou de volta para Haabel. A operaria estreitou os olhos e se inclinou até ver uma página com alguns nomes e designações.
— Esses são os nomes de todas as operárias que, assim como você, foram escolhidas para o sacrifício, ao menos, todas as dez últimas.
Haabel, ao ouvi-la ergueu o olhar para a conselheira assustada.
— Elas foram o agente legitimador de todas essas obras. A pureza de uma vida digna tornou o sangue derramado um efetivador que, na mão da Rainha certa, deu o vislumbre dos reinados que foram citados aqui. A energia, colheita, clima e chuva tudo foi consequência desses sacrifícios.
Haabel não conseguia entender como. O sacrifício dentro da colmeia sempre foi mais que algo puramente simbólico. Desde que nasceu ela soube que ele era necessário, mas nunca explicaram de fato o porquê. Poderia mesmo um sangue derramado deter tanto poder quanto a conselheira mencionava? Um ato de heroísmo era capaz de tudo aquilo? Se fosse, Haabel sentia muito pelo que iria acontecer com a colmeia caso ela fosse sacrificada.
— Mas... — começou a operária incerta — Se tudo isso é legitimado pela Integridade da operária escolhida, por suas obras, vida e trabalho prestado. O que acontece se a pessoa escolhida não for a certa para isso? Não for digna?
A conselheira sorriu, como se esperasse essa pergunta.
— É ai que está — disse ela em um tom sábio — não existe realmente uma operária certa ou algum tipo de ideal único que é desejado que elas tenham. Cada escolhida leva em conta o contexto da época em que seu sacrifício será validado, o tipo de operária que foi sacrificada a cem anos atrás não é o mesmo tipo da que está sendo agora ou a trinta anos atrás. É tudo uma questão de perspectiva, pra você não existe pessoa mais errada do que Haabel Quinn para ser sacrificada, mas, para nossa Rainha, que consegue ver muito além do detalhes superficiais, não existe ninguém mais correto, entende?
Haabel quis vomitar quando respondeu:
— Está dizendo que ela vê algum tipo de ideal suicida em mim?
A conselheira não pareceu se abalar quando disse:
— Estou dizendo que ela vê intensidade em você e sabe que, se dosada na quantidade certa, essa intensidade se transformará em um desejo. — A mulher encarou Haabel com muita seriedade quando disse — Se esse desejo será sinônimo de morte, bem é o que vamos ver.
Depois disso, Haabel teve que fazer uma recapitulação oral de tudo o que a conselheira havia lhe ensinado naquela tarde. Algumas coisas ela tinha decorado, outras ela inventou, se a operária percebeu ou não era um mistério. Haabel foi liberada então alguns minutos depois. Sua mente ainda jogava requiscios das palavras da outra em sua cabeça, mas a operária só decidiu ignorar. Ela sabia muito bem que aquela altura eles fariam de tudo para colocar um monte de ideia subversiva em sua cabeça afim de que ela concordasse com todo aquele absurdo.
Ignorar, no entanto, funcionou até ela terminar o dia. Quando por fim entrou em seu quarto, longe dos olhos minuciosos das guardas, ela pode finalmente desabar em sua cama. Estava cansada demais, a corrida matutina só serviu pra piorar uma situação que já estava ruim, porém, o que ela achou que seria um sono fácil se tornou o mais difícil que teve assim que percebeu o que tentava ignorar: se fazer de indigna não funcionaria mais. Pelas palavras da conselheira era tudo uma questão de perspectiva e, Nariah, detinha uma única: a sacrificar. E isso havia sido dito de muitas formas diferentes desde que havia chegado ao Castelo. Perceber que não havia alternativa foi doloroso, mas, empurrar o extinto adormecido de sobrevivência para o fundo de sua mente na tentativa de lidar com aquilo uma outra hora, foi mais.
O restante da semana não foi diferente da tortura do dia anterior, Haabel acordou todas as manhãs, tomou seu café e correu até seu corpo se indispor, e, depois precisou completar a segunda parte do ritual, que era a imersão após isso ela ficava perambulando sobre os olhos das guardas até almoçar e ficar livre novamente. Rebecca não mentiu quando disse que Haabel precisaria começar do zero todo o processo de purificação por causa do seu "deslize" com a bebida, a alimentação durante aquela semana ficou restrita a grãos e leguminosas, sem qualquer adição de açúcar, e antes de qualquer refeição ela era obrigada a ingerir um líquido verde feito com limão e folhas de couve - que parecia ser algum desintoxicante. Haabel precisou repetir até mesmo o processo de tosa e corte, seguido por uma massagem estranha que, de acordo com a operária que a ministrou, ajudava a desinchar as partes do corpo onde o álcool poderia ter se alojado.
A semana foi tão exaustiva que a operararia não teve tempo pra pensar no seu destino mórbido, e, quando pensava, ela sempre se contentava em empurra-lo para o canto prometendo lidar com aquilo uma outra hora. Quando o final da semana chegou, e junto a ele, o fim de sua tortura em forma de corrida matutina, Haabel não conseguiu deixar de agradecer a quem quer seja por não se prestar mais aquele tipo de trabalho físico. A última corrida havia acontecido como todas as outras, quando por fim seu corpo começou a se arrastar, Haabel parou, limpou o suor, e caminhou devagar até às fontes termais. As operárias que eram responsáveis por aquela parte do ritual fizeram seu trabalho um pouco mais rápido do que o normal e, quando terminaram, Haabel pôde finalmente voltar para seu quarto, ou, era o que esperava fazer, mas fora interceptada por Rebecca quando virava o corredor.
— Treinamento. — ela disse assim que a outra a encarou com uma expressão cansada.
— Está me confundindo com as suas colegas de prata.
Havia ironia em sua voz, pois ela sabia do que a outra estava falando. Antes da purificação Haabel havia lido no pergaminho a parte que citava o treinamento como parte do ritual e um dia atrás Rebecca havia lhe avisado que isso ia acontecer. Dava pra entender porque Haabel havia fingindo esquecer dessa parte pois, o treinamento nada mais era que uma encenação do dia do sacrifício, para que, quando chegasse a hora, nenhuma inconformidade acontecesse. O medo permeava cada parte de seu corpo enquanto Haabel caminhava. O sacrifício aconteceria no jardim central da Realeira, ao contrário da coroação que era no castelo, no dia, todas as operárias da Realeira compareceriam ao evento, e algumas operárias da grande fábrica escolhidas por suas chefes de departamento também teriam essa honra. O treinamento, no entanto, iria acontecer no jardim invernal.
Os jardins que eram dispostos por estações no castelo, assim como as próprias estações, tinham um período de uso e desuso. Na primavera, o jardim primaveril era o foco principal das jardineiras, decoradoras, apesar de que o cuidado era mantido para todos, o jardim da estação presente era sempre o que recebia mais atenção. No outono, o jardim outonal e, por lógica, acontecia o mesmo com as outras duas estações. Por conta disso, o Jardim invernal parecia levemente apagado, as folhas caídas das árvores formavam um tapete marrom no chão enquanto algumas flores, diferente das flores do jardim primaveril, estavam desalinhadas e com cores apagadas. Aquele jardim era um dos únicos na qual havia uma cúpula de vidro cobrindo uma parte de sua extensão, isso se dava porque muitas plantas e flores ali eram sensíveis ao tempo quente da primavera e verão e por isso a cúpula as protegia. A parte descoberta era composta por árvores, grama e um lago, não muito grande, no centro. A água era serena e cristalina e Haabel só conseguiu pensar no quão lindo ele ficava quando a camada de gelo do inverno o cobria. A brisa quente definitivamente não combinava com a paisagem.
Rebecca parou seus passos de frente para um quiosque que ficava ao lado do Rio, toda a sua estrutura era coberta por moreias que caiam como cascata e, a única coisa que havia disposta sobre o lugar era um banco e um pequeno pedestal que havia sido colocado ali recentemente. Sobre o banco estava uma operária franzina que mexia em uma coroa de flores, assim que as viu se aproximar ela se levantou.
— Olá Haabel. — ela disse com um pequeno sorriso e depois deu um aceno para Rebecca — Eu sou uma das organizadoras do processo de purificação, só vou terminar alguns ajustes no seu texto e logo após podemos começar.
Haabel estreitou os olhos enquanto via a operária se afastar e sentar-se pegando um papel na mão. Quando a morena voltou-se para Rebecca, havia desconfiança em seu olhar.
— Uma das organizadoras — repetiu Haabel — se tem tantas assim, porque é que você precisa estar comigo?
Rebecca não precisou sequer pensar quando respondeu:
— Deve ser porque você é muito boa em seguir as regras.
Haabel a encarou por alguns segundos, percebendo enfim o que havia por trás da sua voz repleta de ironia. Se Nariah havia pedido para a capitã da guarda ficar de olho nela desde o início, então, significava que ela sabia que Haabel não queria estar ali e, mesmo assim, a escolheu, aquilo além de contraditório era completamente assustador. Haabel suspirou estarrecida ao perceber que todo aquele teatro dela havia sido em vão. Algum tempo depois, a outra finalmente pareceu terminar, ela deu algumas pinceladas com a caneta corrigindo algumas partes do texto e finalmente se levantou encarando Haabel.
— Quero que leia a cena, aliás pode se posicionar no centro do nosso palco improvisado. — disse lhe entregando a folha.
Haabel a obedeceu com uma carranca inconformada, quando finalmente chegou ao lugar de destino ela depositou uma das mãos sobre a cintura enquanto lia o que estava escrito no papel. Enquanto a morena se assustava com as palavras escritas na folha em sua mão, a operária virou-se para Rebecca.
— A Rainha só participa do treinamento na penúltima semana antes do sacrifício — começou encarando o rosto entediado de Rebecca — você poderia...
— Não — Rebecca a interrompeu.
— Só por hoje! É o primeiro dia dela e isso pode a assustar um pouco. Se Haabel tiver uma companhia pra se apoiar as coisas serão mais fácil — explicou estendendo um outro papel, este que continha as falas de Nariah — Não precisa fazer tudo o que está aqui.
A capitã revirou os olhos pegando a folha e caminhando até Haabel. Esta que ainda mantinha os olhos sobre o papel sem nem piscar.
— Certo, o pequeno palanque que vocês estão ocupando, no dia da Coroação será muito maior, você estará de frente para toda a Realeira então é preciso ter uma noção de palco: esteja sempre no centro, e apesar de grande parte da cerimônia ocorrer como uma conversa entre você e a Rainha, não perca o foco da plateia, ela precisa saber que você sabe que ela está lá.
Como um show patético. Pensou Haabel enquanto tirava os olhos finalmente daquele tanto de bobagem, cada palavra escrita ali tinha o único intuito de transformar sua morte em um espetáculo para ser assistido e prestigiado. Como se ela não valesse nada. Além da raiva ela sentiu medo, medo por todo o emaranhado de problema na qual ela havia se metido.
— As falas que vocês dirão uma à outra será transferida para o público pelas dançarinas que estarão ao redor, então é preciso que você fale alto o suficiente para elas ouvirem. — comentou a operária com um sorriso enquanto andava pra lá e pra cá — primeiro haverá uma apresentação de música recontando o rito da escolhida mais uma vez, depois, você vai entrar com um sorriso no rosto e parar no centro do palco. A rainha entrará ao seu lado e depois vocês vão se olhar e dizer as falas que estão aqui. É importante que durante a "conversa" vocês demonstrem intimidade e amizade entre vocês. Certo?
Haabel fez uma careta e Rebecca bufou silenciosamente, a operária organizadora do evento suspirou e fez um gesto com as mãos para que elas começassem. Haabel ergueu a folha até seu rosto e falou monótonamente.
— Hoje finalmente é o grande dia. Sinto que eu deveria estar triste ou, de alguma forma, receosa mas, tudo que sinto é alegria. — Haabel fez uma pausa desacreditada com toda aquela bobagem — Alegria de enfim poder cumprir com o que foi destinado desde o meu nascimento. Sinto que não há honra maior pra mim, destino melhor e eu só posso — Haabel se virou para a outra operária — é sério isso?
A operária franziu os olhos e acenou com as mãos pedindo para ela continuar. Haabel riu com sarcasmo antes de dizer:
— Agradecer por sua bondade. —"bondade de me matar", quis acrescentar.
Na vez de Nariah, Rebecca leu com a voz entediada:
— Hoje não é apenas o dia em que você se tornará parte do meu reinado, é o dia em que você, Haabel, será o que dará sentido a ele. O sangue derramado hoje é o que legitimará o sucesso de amanhã, e é com imenso prazer que eu lhe convido para intergrar-se à uma parte de mim no dia de hoje.
Ironicamente, assim como Haabel, Rebecca não estava gostando nem um pouco de tudo aquilo e a outra operária que as assistia também percebeu. Ela esperou por um tempo para que Rebecca fizesse o que estava escrito na cena mas, ao ver que nenhuma das duas se mexiam a outra finalmente se pôs a falar:
— Essa é a parte que a Rainha vai estender a mão à você Haabel — contou ela — Assim que ela estender a mão você irá pegar, essa atitude demonstra a aceitação de tudo que acontecerá depois, entende? Tenha em mente que nenhuma operária comum tem a chance de ver de perto a Rainha quem dirá toca-lá, Esse simples gesto dirá a toda a colmeia que você não só está de acordo mas também se sente honrada com tudo aquilo, fazendo com que elas anseiem estar em seu lugar.
Haabel mantinha a expressão fechada ao ouvir tudo aquilo, ela se contentava em xingar mentalmente enquanto, por fora, apenas seus olhares descontentes eram lançado a cada gesto e palavra que era obrigada a falar. No fundo tudo aquilo não importava, nem as palavras, nem as cenas que pediam para ela demonstrar alegria, ela sabia que não importava o quanto treinasse, Haabel nunca, nunca mesmo, repetiria aquelas palavras sob nenhuma circunstância. Se o sacrifício fosse acontecer, mesmo contra a sua vontade, toda a colmeia iria saber daquilo. Ao ver que Haabel não continuou a cena, a outra operária fez um pigarrear levemente estarrecido e, só então, que Haabel foi ler a sua fala, que seria depois dela pegar na mão de Nariah.
— O prazer é todo meu, minha Rainha.
O que se estendia na cena depois era uma pausa para o coro de aplausos. Os detalhes escritos eram bem diretos ao dizer que Haabel teria que, a todo instante, demonstrar apreciação pelo momento e submissão a Rainha. Um bálsamo de um óleo essencial seria derramado sobre suas mãos e testa ao som límpido da orquestra. Depois, mais uma vez, Haabel e a Rainha teria seu momento de despedida. Rebecca pegou a coroa de flores simples das mãos da outra operária e caminhou até Haabel.
— É claro que no dia da cerimônia a tiara será mais ornamentada. — explicou ela e logo após se virou para Haabel com um sorriso animado —Depois me dê uma lista de suas flores favoritas.
Haabel olhou para ela com ódio e estava prestes a lançar um comentário irônico sobre alguma flor venenosa quando a capitã virou o rosto da operária para ela. O olhar de Rebecca era peculiar enquanto depositava a coroa de flores sob a cabeça da operária. Haabel ficou calada por alguns segundos apenas contemplando e tentando desvendar o que é que se passava na mente da capitã enquanto fazia aquele simples gesto, o olhar negro parecia cintilar de um sentimento que, a princípio, Haabel não soube desvendar o que era.
— Ajoelha. — Rebecca sussurrou quando viu que a outra permanecia parada a encarando.
Haabel piscou e voltou o olhar para a cena escrita em suas mãos, ao ver o que aconteceria em seguida ela engoliu em seco, experimentando um sentimento de puro enjôo invadir cada célula de seu corpo. Ela, lentamente, se ajoelhou enquanto tentava, a custo, se desprender da cena que ocorreria em questão de minutos.
— Essa cena é a mais importante e impactante de todas as outras, então preciso de puro foco. Hoje só quero que você decore cada fala, mas, a partir do segundo treino, que será com Nariah, preciso que você também incorpore os sentimentos propícios de cada palavra, ação e olhar e, Haabel — a chamou recebendo a atenção em questão de segundos — Eu sei que, apesar de tudo, a morte pode parecer dolorosa mas... Tente no dia, se possível, não demonstrar isso tão abertamente.
Haabel a encarava entorpecida, as palavras se perdiam no meio de um turbilhão que se formava em sua mente. Era como se o dia fosse hoje, como se a sua morte fosse ocorrer naquela mesma hora. Ela sentia os olhares de milhares de operárias sobre seu corpo, sentia a excitação e apreciação. Sentia como se cada célula se preparasse para entrar em processo de falência, como se sinais se ligassem aos seus respectivos receptores para dar o último adeus. Era tão ilusório que Haabel só conseguia se controlar para não sair do controle ali mesmo.
— Agora — a outra operária pareceu pensar — antigamente, a própria Rainha que ceifava a vida da escolhida, no entanto, nas últimas décadas o ato caiu em desuso e agora quem recebe tal responsabilidade é alguma guarda, ou a própria capitã. — depois ela se virou para a capitã que estava parada ao de Haabel — Rebecca, você sabe qual foi a decisão do conselho?
— Jugular. — respondeu batucando os dedos sobre a ponta da bainha.
A outra pareceu contemplar a escolha.
— Certo. É um bom lugar, já que será uma morte rápida. — Ela acenou positivamente e olhou para Haabel que estava pálida — o coração era o destino de antigamente, mas causava muita bagunça. — ela riu com a piada.
Rebecca olhou para a operaria quando disse, fingindo se importar com tudo aquilo:
— Acho que devemos fazer uma breve encenação de como será, para ela ter alguma noção do que a aguarda.
Falou Rebecca e logo após, em movimento rápido, a espada foi tirada da bainha em um som límpido do ferro tilintando. Haabel arregalou os olhos e se virou para ela desacreditada.
— Acho que não precisamos... — começou a outra operária um pouco incerta sobre a decisão da capitã.
Rebecca, no entanto, não deu ouvido a ela e guiou a espada perfeitamente até o pescoço de Haabel, ela pressionou a ponta do ferro sob uma parte específica da garganta dela quando disse:
— É aqui onde a veia Jugular se encontra, um golpe e tudo estará acabado. É um pouco desconfortável a sensação mas — ela sorriu levemente ao dizer — não se esqueça de não demonstrar tão abertamente o quanto desconfortável ela verdadeiramente é, você sabe, não queremos uma comoção assustada da plateia.
Após isso ela retirou a espada, como se nada tivesse acontecido, e a guardou novamente sob a bainha enquanto se afastava. Haabel permanecia estática, sem demonstrar qualquer reação. O silêncio foi interrompido por uma risada nervosa da operária da parte de baixo.
— Bem, é isso. — disse esfregando as mãos — No dia a Rainha vai apenas observar e quando por fim o sangue for derramado, sobre o pilar da Realeira, seu corpo vai ser colocado perfeitamente sobre a esquife, haverá orquestra...
O som da voz dela foi abafado por um barulho nada cortês que veio da operária que ainda estava sob joelhos. O líquido do estômago pareceu sair junto com a alma de Haabel quando ela finalmente não aguentou toda aquela tortura e vomitou. Seu corpo estava inclinado enquanto ela vomitava, vez após vez, até que finalmente não restasse nada em seu estômago. A cena era vista com completo horror pela outra operária enquanto que, Rebecca, apenas encarava tudo aquilo com o rosto inexpressivo.
O restante da tarde se passou com Haabel deitada na cama, nada bem. Uma operária curandeira tinha a visitado depois dela ser encaminhada para a ala noroeste, ela a examinou detalhadamente e, ao ver que não havia nada de errado, apenas recomendou que ela permanecesse em repouso repondo os líquidos que havia perdido. Deitada na cama, encarando o vazio, Haabel só conseguia pensar no quão péssima era a sua situação. Ela estava presa a tudo aquilo, sem qualquer perspectiva de saída. Sem nenhuma escapatória. O pior, era que tudo aquilo estava sendo mantindo firmemente guardado sobre um canto obscuro de sua mente onde, ela tentava de todas as formas se conter. Não ter uma companhia para desabafar, pequena que seja, era péssimo. Tudo se mantinha entalado enquanto ela, pouco a pouco, era sufocada. A operária permaneceu ali, quieta e pensativa, por tanto tempo que quando finalmente olhou para a janela aberta de seu quarto percebeu que já era noite. Ela suspirou e voltou seu olhar para a pintura do pássaro no teto, Haabel esperava voltar ao seu tupor até que dormisse mas, assim que começou a fechar os olhos a porta se abriu e ela olhou assustada para a direção do barulho. Ao receber o olhar abalado da operária Nariah lhe lançou um sorriso simpático.
— Como você está? — perguntou caminhando até ela.
Haabel, ao vê-la, tratou de se arrumar na cama e tentar parecer o mais apresentável possível, diante a aparência tão bem alinhada e vestida da outra. Nariah, ao contrário das ocasiões anteriores, vestia um deslumbrante vestido dourado que se adaptava perfeitamente ao seu corpo, conferindo-lhe uma aparência exuberante. Seus fios loiro-acobreados caíam graciosamente por cima de um coque solto, realçando sua fisionomia esbelta e gentil. A cena de uma pessoa como ela sentando em sua cama ao lado de uma pessoa como Haabel, a fez duvidar da realidade em que estava. Nariah, estava sentada do outro lado da cama de Haabel, sob a cabeceira, como ela.
— Bem. — respondeu Haabel enquanto desviava o olhar para algum canto vazio do quarto.
Nariah pareceu ponderar sobre o sentido daquelas palavras:
— Bem do tipo: vomitei todo meu desejum hoje cedo após treinar a cena da minha morte?
Haabel a olhou assustada e Nariah riu.
— Tá tudo bem, Haabel. Não precisa fingir que tudo isso não parece um pouco mais assustador do que realmente deveria ser. — Nariah se escorou na cama enquanto olhava para o mesmo local onde Haabel mantinha sua atenção minutos atrás — Qualquer operária, no seu lugar, também se assustaria. Apesar de... você sabe, desejarem tanto estar nele.
Haabel quis falar a verdade, naquele momento ela desejou veementemente virar-se para Nariah e despejar toda a sua insatisfação, por mais que ela desconfiasse que a outra já soubesse disso, mas, ainda sim, a coragem parecia chegar até a garganta da onde, não passava nem por qualquer esforço que fizesse. Então, ela só suspirou.
— A naturalidade com que lidam com isso te assusta, não é?
Haabel a encarou não sabendo o que dizer.
— "Seja mais emotiva quando falar disso com ela, não aja como se fosse tudo uma mera atuação" foi a ordem que dei para a operária que te guiou no treinamento — Nariah suspirou — Parece que ela não ouviu, no fim das contas.
A Rainha tinha razão, não só não havia ouvido, como tinha feito Haabel se assustar ainda mais. Talvez, se tudo fosse feito com mais decência, como se sua vida valesse alguma coisa, ela não tivesse tirado o estômago todo pra fora.
— Ela pediu pra mim, na hora que a espada passasse na minha garganta, não demonstrasse tanta dor. — contou finalmente se sentindo um pouco segura para falar sobre aquilo.
Não mencionando realmente quem havia falado.
Nariah riu, mas não era uma risada de diversão e sim de inconformidade. Tempo depois a Rainha se virou para Haabel e a encarou firmemente.
— A partir de agora vou me certificar de que tudo seja levado da maneira mais confortável para você, tudo bem? - dito isso Nariah afagou o cabelo da operária em um gesto afetuoso — Só prometa que não vai mais vomitar daquele jeito no meu jardim? — Perguntou em um tom de brincadeira.
Era estranho porque, Haabel pensou que se sentiria, de alguma forma, acuada diante a presença do agente causador de sua morte mas, de uma maneira bem peculiar, a presença de Nariah trouxe conforto de um jeito que ela pensou que nunca traria. Nas últimas vezes que tinha trocado palavra com ela a Rainha se mostrou mais rígida, no entanto, talvez depois de perceber o quanto assustada com a situação Haabel estava, ela pareceu muito mais cortês e, até mesmo, amistosa com a outra. Ao que parecia, a outra deveria ter momentos de bipolaridade de humor ou, Nariah era muito mais complicada do que parecia ser. Mesmo à revelia, Haabel gostou daquela sensação.
— Prometo.
No entanto, a promessa não duraria por tanto tempo.
[...]
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