[O RITO DA ESCOLHIDA] CAPITULO 1
A ORDEM
1. Lealdade
2. Unidade
3. Trabalho
[...]
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Existia uma crença, difundida por toda a colmeia, de que a morte era uma Ascensão, representando o fim de uma jornada no mundo atual e o início de uma nova missão. A morte também era vista como uma transição, que além de guiar a pessoa escolhida para um novo caminho também permitia que uma nova pessoa se incubisse de tomar o lugar que um dia pertenceu a esse outro alguém. Quando uma operária partia, outra já estava pronta para ocupar seu papel. Essa perspectiva se aplicava também à Rainha. A morte da Rainha Esther trouxe não apenas luto, mas esperança. Pois, independentemente do trono estar vago ou não, todos sabiam que uma nova Rainha estava destinada a assumir o cargo em breve.
E, quando esse dia finalmente chegou o sol resplandeceu diferente na colméia. De fato, não havia nada de incomum no grande astro do universo, a diferença estava em como sua presença era vista sob os olhos dos habitantes do lugar. No primeiro raiar fosco e tímido fora possível notar janelas se abrindo e suspiros ansiosos advindo de muitos lugares e quando por fim a estrela finalmente se ergueu forte e prepotente, todos ali já estavam de pé. Se por perspectiva a noite passada pareceu fria e cinzenta, fruto de toda a ansiedade generalizada, o dia, como uma retratação, havia raiado brilhoso e acalorado. O céu azul era límpido apesar da tênue camada hexagonal que se sobrepunha á ele, como uma espécie de vidro que só podia ser notado por causa do leve reflexo que este emitia.
Aquele era um dia especial, único para alguns e raros para outros. Era um dia digno de ser aproveitado até seus últimos minutos. E foi por isso que ao primeiro sinal do raiar do Sol a Colméia despertou. A locomotiva que ligava os distritos à grande fábrica e Realeira trabalhava a todo vapor transportando os trajes e os passes de entrada e que , posteriormente, levaria os membros dos distritos, exceto os do campo, até a Realeira. Operárias transitavam de um lado pro outro, privilegiadas com a folga do dia da coroação — uma das únicas que existiam — elas apenas fofocavam com outras de seu Distrito, ansiosas e felizes não paravam de especular em como a cerimônia seria e suspiravam com ardor ao pensar nas deliciosas sobremesas que estariam ao seu dispor após a coroação, outras menos afortunadas trabalhavam avidamente, sem reclamar com a escalação aquelas operárias iam de um lado a outro realizando tarefas pertinentes ao dia, umas se preocupavam com a manutenção dos passes de seus distritos — o que garantiria a entrada das operárias na Realeira — outras ficavam a cargo do fechamento da Grande Fábrica, aquele dia nenhum trabalhador iria ficar a mercê dos maquinários ferozes do lugar, outro motivo para a data ser tão especial.
A grande Fábrica, operava como um ser onipresente, funcionava todos os dias e em qualquer horário, dividos em turnos maçantes e pesados os trabalhadores, embora não reclamassem, nutria uma certa rivalidade com a fábrica, era como se a grande estrutura amarelada fosse uma espécie de vilã na qual teriam que enfrentar todos os dias, a coroação para elas, era o símbolo da Vitória, o dia que até uma estrutura tão essencial e importante quanto aquela se curvava ao poder da Mais nova Rainha. Sua estrutura era ornada de hexágonos simetricamente desenhados e o tom de sua cor se mesclava entre um amarelo brilhoso e um laranja tênue, a grande fábrica era dividida em várias estruturas que se estendia ao redor do prédio principal que tinha uma altura de aproximadamente cem metros, os demais prédios tinham uma altura inferior se comparado a este e se dividiam de acordo com o trabalho prestado; Artesanato e confecção, costura de trajes para a realeira e distrito, elétrica ( onde era produzido muito dos maquinários da grande fábrica e rede de iluminação) e diversos outros ramos de trabalho manufaturado ou de prestação de serviço, como o centro hospitalar, refeitório e distribuição dos itens necessários. Era de fato a 'maior' construção da Colméia, nem a Realeira, distrito real onde a rainha e seus subordinados íntimos viviam, se comparava á sua altura, porém, em questão de largura e Hectares, a outra ganhava em disparada, é claro.
Mal havia começado o dia e tudo funcionava perfeitamente, assim como as tradições delineavam. As receitas típicas a base de mel e pólen já haviam sido preparadas e agora eram armazenadas na grande despensa da realeira, os traJes especiais das operárias já estavam limpos e aguardando seus respectivos donos nos prédios do centro de cada Distrito , nenhuma operária comum podia adentrar a realeira sem tal vestimenta, esta que consistia em um sofisticado macacão dourado ornado de pequenas flores silvestres justo ao corpo. Apesar deles serem todos iguais, as operárias, principalmente as mais jovens, morriam de amores pelo vestuário. As dançarinas da cerimônia ensaiavam insesantemente cada passo buscando a perfeição enquanto muitas operárias trabalhavam avidamente limpando e enfeitando milimetricamente cada canto do Salão. Em cada parte que se olhasse poderia ser visto alguém trabalhando, rindo e especulando.
A coroação não era só um evento de porte político que marcava a chegada de alguém ao poder, dentro da colmeia ela era vista como um marco. A vida de uma Rainha equivalia ao dobro, até o triplo, do tempo de vida de uma operária comum, nesse caso, a sucessão de uma nova matriarca era algo que apenas poucas operárias poderiam ver, e essa seria a única que de fato veriam. Além disso, em dias comuns nenhuma operária residente dos distritos tinham a chance de ter um contato com a Rainha, nem mesmo visual, a coroação era o único dia em que poderiam ver sua matriarca antes de esta se isolar sob os muros da realeira — e, se tivessem sorte ela apareceria em algum evento anual.
Era por isso que todos ali esperavam algo daquele dia, todos esbanjavam otimismo e genuína alegria, em toda colmeia não havia uma única operária, sejam elas de distritos comuns ou da realeira, que não almejasse presenciar a tão famigerada Coroação. A única exceção estava no Distrito vinte e dois, dentro de um dormitório abafado, dormindo.
Haabel, como era conhecida pelas operárias de seu distrito, desfrutava de um sono profundo e tranquilo em sua pequena cama, apesar do calor e de já ser tarde seu sono ainda sim parecia não estar sendo abalado, enquanto dormia soltava vez ou outra pequenos pigarreios, se mexia um pouco e logo depois voltava a ficar estática, como um defunto. Se alguém acompanhasse de longe seu sono notaria que tais comportamentos eram corriqueiros e de vez em quando vinham acompanhado de um balbuciar rouco, típico dela. Diferente das outras operárias, Haabel via naquele dia uma escapatória para poder agir conforme seus gostos. Ou seja, seu gosto de ser preguiçosa.
Como uma operária comum Haabel trabalhava demais. Vítima das garras da grande fábrica, vivia especialmente para exercer sua função, uma função, de acordo com ela, tosca e sem sentido. Ela era da linha de produção de alimentos, ou seja, passava horas a fio fazendo o repetitivo trabalho de, veja bem, separar e armazenar os grãos que vinham transportados dos campos de cultivos e, Nada mais.
"Uma grande inutilidade" foram suas palavras quando sua supervisora lhe perguntou sobre a importância de seu trabalho para o funcionamento da Colméia.
Haabel, é claro levou uma bronca e como castigo foi obrigada a limpar o maquinário após o expediente. Depois disso, sempre que lhe voltavam com aquela pergunta idiota ela repetia aborrecida o slogan padrão da Grande Fábrica: " Todo trabalho é importante para o funcionamento da nossa colméia, inclusive o meu". Odiava dizer aquilo e sempre que podia colocava uma pitada de deboche em sua fala.
Haabel não passava de uma simples operária que apesar de não demonstrar abertamente se importava bastante com a sua colméia e consequentemente com os eventos que a caracterizavam, isso obviamente englobava a tão famigerada Cerimônia de Coroação, a questão era que esse evento não havia começado a ser preparado hoje ou semana passada. Os preparativos haviam sido iniciados há cinco meses atrás, ou seja, ela estava trabalhando e ouvindo sobre aquele assunto há muito tempo, tempo o suficiente para tudo aquilo se saturar. E, de todo modo, dormir algumas horas a mais não faria com que perdesse a cerimônia.
Por perspectiva, Haabel desfrutava de um sono pesado. Imersa em um sonho qualquer, seu corpo se mantinha relaxado e a respiração tranquila. Enquanto dormia, seu subconsciente captava o som de algo escorrendo de forma distante, como se fosse um eco. Gradualmente o som parecia se aproximar até que finalmente foi possível distinguir o barulho da água respingando.
Haabel estava tão entorpecida que só foi perceber o jato de água fria jogado em seu rosto quando o líquido afogou suas respirações. Tossir foi inevitável. A operária, já acordada, sentou-se na cama com um solavanco e, por um momento, só se concentrou em trazer o ar de volta aos seus pulmões. Tempo depois, quando já havia voltado a respirar normalmente, ela levantou o seu olhar irritado para a pessoa à sua frente.
— Que diabos? — murmurou secando os respingos de água que ainda corriam pelo seu rosto — por que fez isso?
A operária Melissa, que era sua colega de quarto, ao vê-la finalmente acordada depositou o copo, que uma vez esteve cheio, sob o criado mudo e apenas deu de ombros ao escutar a pergunta da outra.
— A supervisora dos dormitórios veio duas vezes te chamar e, quando você não respondeu a nenhum desses chamados, ela me recomendou a fazer isso. — Seu tom era duro, como se tivesse a repreendendo.
Haabel arqueou a sobrancelhas e inclinou levemente a cabeça para a janela que se estendia a sua frente, ao ver o Cel azul límpido e o sol brilhando a leste, ela voltou seu olhar para a colega de quarto com uma careta.
— Ora, mas está cedo!
— Não, não está. E, mesmo se estivesse, a gente ainda precisa ir até o centro do distrito para pegar os nossos passes e trajes.
Haabel fez um "oh" com a boca, havia se esquecido desse detalhe. Sem os passes de ingresso, ela não conseguiria entrar na Realeira. Então, com um aceno consternado, ela enfim retirou os lençóis de seu corpo e bocejou levemente. Melissa estava parada de frente a um pequeno objeto de vidro pendurado na parede, que havia colocado ali exclusivamente para ela ver o seu reflexo. Haabel, como se notasse a presença dela pela primeira vez, levou seu olhar curioso até a operária, mais precisamente até o cabelo dela.
— Mas... — murmurou tombando a cabeça na tentativa de fazer aquele penteado fazer algum sentido — o que é isso no seu cabelo?
Melissa, ao ouvir a menção às suas madeixas, se virou para a operária rapidamente com um olhar de entusiasmo.
— Gostou? — disse tocando levemente nos fios loiros — Eu ouvi dizer que a nova Rainha gosta de girassóis, então resolvi homenagea-la. Foi muito difícil achar prendedores que serviam para ser usados, tive que usar alguns dos elásticos da grande fábrica... — Ela, ao ver que tinha falado demais, terminou o assunto no meio da frase em um tom baixo.
Haabel, ao ouvi-la, voltou seu olhar para o penteado e percebeu que, se olhado atentamente, era possível notar alguma semelhança com a flor. Os fios loiros de Melissa ajudavam, é claro, dois coques, que representavam o girassol, eram feitos no alto da sua cabeça, presos estrategicamente para que deixassem alguns fios levemente soltos, formando as pétalas, e no meio, onde deveria se o miolo do girassol, havia inúmeras sementes presas, de um fruto qualquer. Era algo extravagante, de fato, mas que tinha um pouco de beleza, apenas se levasse em conta o contexto.
— É... Diferente.— foi tudo que Haabel disse ao se levantar.
Melissa apenas bufou e dispensou o comentário da outra com um aceno de mãos. Ela, ao terminar finalmente de prender as últimas sementes em seu cabelo, olhou de soslaio para a aparência derrotada de Haabel que vestia a custo o seu macacão alaranjado característico.
— E você, o que vai fazer para demonstrar o seu amor à rainha? — perguntou se virando para ela com as mãos sob a cintura.
Haabel subiu o zíper da roupa e deu de ombros com um bocejar preguiçoso:
— Vou à coroação dela.
[..]
A Colméia tinha no total dezesseis distritos, apesar da divisão ser elaborada e permanente, ainda sim não havia um fator tão mirabolante que explicasse tal divisão, a não ser é claro a estratificação por período. O período era o tempo estimado de vida de cada operária, porém esse tempo levava como escala de contagem as estações do ano, sendo assim, a cada estação que se passava o período de vida dessa operária, consequentemente, aumentava, sejam elas inverno, outono, primavera ou verão, em palavras coloquiais, era a idade de cada uma delas, quatro estações equivaliam a um ano. Do menor ao maior, os distritos abrangiam idades equivalentes às suas normas. O distrito número 1 abrigava operárias dos 10 até os 13 anos, ou seja,
Do período 40 ao 52 — esse era o primeiro distrito depois do ninho, todas as operárias saiam do ninho com 10 anos, equivalente a 40 estações — o distrito um era também conhecido como o período de iniciação, onde abririam mão de suas vidas como criança para começar a jornada de trabalho na colmeia. O segundo distrito abrangia as idades entre 14 e 16 ( 56 e 64 estações )e assim, por lógica, cada distrito seguia com uma média de 12 períodos, 3 anos, entre cada um. Ao completar a idade limite a operária era transferida para o distrito subsequente. O último, é claro, sendo o fim das transições, nenhuma operária havia passado da idade estipulada pelo distrito dezesseis.
A divisão do trabalho, no entanto, não seguia uma lógica tão linear, até o terceiro distrito operárias trabalhavam como suplentes, ou seja, ocupando vagas de trabalhos não específicos e mais repetitivos, como limpeza, armazenamento de grãos, carga e descarga, entre outros, durante esses períodos elas eram obrigadas a participarem de palestras vocacionais e planos de carreira para que, ao final de suas estadia do distrito da maioridade, elas seguissem a carreira escolhida em um dos setores da grande fábrica e, uma pequena parcela que se destacasse, poderia ter a chance de viver na Realeira como dançarinas, servas ou guardas. Depois de escolher a sua área de atuação, uma operária passaria o resto de sua vida ali e só sairia por dois motivos:
Se conseguissem chegar a um nível hierárquico em sua profissão na qual obtivesse uma posição de liderança e assim, se transferisse para a realeira ou, quando chegassem aos últimos distritos — quatorze, quinze e dezesseis — e assim, fosse trabalhar no campos de cultivos independente da sua antiga ocupação. A primeira opção era alcançada por um pouco número de operárias, a segunda acontecia com todas, exceto com os habitantes da Realeira. O destino aos campos de plantações era tão enraizado na dinâmica da colmeia que, os três últimos distritos ocupavam um lugar mais afastado do que seus antecessores da grande fábrica e, mais próximo, do meio rural. Enquanto uma operária dos distritos novos chegaria a fabrica em apenas alguns minutos com a locomotiva, os distritos mais velhos demoraram horas para isso e, em contra partida, levavam alguns minutos para chegarem no campo. Apesar das nuances, todas trabalhavam e tinham como dever social garantir o pleno funcionamento da colméia. O sistema, apesar de ultrapassado, havia garantido o bem-estar da população por décadas.
Habbel vivia no distrito três, ou, como era conhecido comumente, o distrito da maioridade. As operárias que ali viviam lidavam com a inconveniente transição da adolescência para a vida adulta. Ali, elas iriam largar o sonhos juvenis e enfrentar a realidade crua e insípida que as aguardavam. Era o período de decisões, as escolhas feitas no distrito três impactariam diretamente suas vidas nos próximos períodos, seja por funcionalidade ou status social, de qualquer maneira, este era um marco inicial. Mesmo sabendo disso e ouvindo a contragosto os planos de carreira feito á ela por uma operária vocacional Habbel nunca se importou de fato com a fama de seu distrito. Não que ela fosse uma desertora ou uma rebelde, longe disso, a questão era que tudo aquilo não fazia muito sentido em sua cabeça. Por mais que tentasse achar uma explicação plausível para todo o trabalho na qual era submetida, a pequena operária sempre se via em um impasse. Se o trabalho era tão edificante e acolhedor porque ela nunca almejava por ele? ou, porque fugir e passar um tempo vadiando nos jardins recreativos era mais divertido do que passar doze horas dentro de um salão cheio de maquinários fétidos? Perguntas como aquelas faziam rondas periódicas na cabeça dela, mas apesar das dúvidas, Habbel sempre procurava conter tais questionamentos. Porém, vez ou outra alguma insatisfação lhe escapava e eram jogadas ao públicos e em quase todos os casos ele era punida.
Uma enorme fila se estendia ao redor do pequeno espaço recreativo do distrito três, aquele era o ponto de encontro oficial do lugar, como uma praça histórica em uma cidade pouco povoada. A fila que se estendia desde a entrada até os limites do distrito transmitia uma energia alegre e convidativa, muitas operárias ali conversavam e riam entre si, o assunto obviamente era do total conhecimento de todos. A coroação. Aquelas operárias estavam ali para receber seu passe de ingresso à Realeira e, junto com este, lhe seriam entregues os trajes.
— Eu não consigo nem imaginar o que eu faria! — uma operária exclamou em uma acalorada animação.
Ela, sem se conter, fez um gesto de entusiasmo com os braços e consequentemente acabou esbarrando em alguém que estava atrás de si. Habbel, que até então permanecia com seus olhos presos no reflexo hexagonal que se extendia sob o céu acima, acordou dos seus devaneios e olhou para a operária que havia lhe empurrado sutilmente. Ela não ficou brava mas sentiu um leve desconforto e mau humor, se ficar parada em uma enorme fila era ruim, ser empurrada era pior.
— Mesmo não sendo tão sortuda, eu ainda ouso sonhar! — disse olhando com um brilho nos olhos para a outra operária ao seu lado, mal havia notado a pessoa na qual tinha esbarrado.
Habbel franziu o cenho e voltou sua atenção para aquelas duas operárias que conversavam à sua frente. A amiga que ouvia tudo calada sorriu e deu um leve tapa no braço da outra, como se tivesse a reprendendo.
— Ora não seja tão pessimista Anabela! Todas temos a mesma chance. — murmurou com um tom sábio — E não é uma questão de sorte e sim predestinação.
Desta vez Haabel tombou a cabeça e fez uma careta de confusão, não fazia ideia do que as outras estavam conversando, e apesar de ser indelicada ela cutucou a operária chamada Anabela, que estava se debulhando em lágrimas falsas, e perguntou em um tom fúfio:
— Mas do que diabos vocês estão falando?
Ao notar o linguajar desbocado, as duas operárias arregalaram os olhos e encaram Habbel como se a outra fosse um bicho do mato. Tempo depois a jovem Anabela pareceu se recompor e deixou seu olhar alto.
— Estamos falando sobre a escolhida para o sacrifício, não é óbvio? — respondeu em um tom arrogante, logo depois as duas se viraram e voltaram a conversar.
Na verdade, não era obvio. Não para Habbel. Era claro que ela conhecia o rito da escolhida para o sacrifício, como uma simples operária aquilo era uma espécie de mantra utópico na qual todos os habitantes da colméia eram submetidos. Em outras palavras, toda a colméia era um modelo prático de vida e o rito do sacrifício era o que regia esse modelo, a lei para que a prática fosse colocada em ação. No entanto, ela não conseguia entender como aquilo poderia ser de alguma forma desejável.
Os preceitos básicos para que uma sociedade, íntegra e unilateral, pudesse coexistir em pleno funcionamento com seus habitantes eram simples porém rígidos; Igualdade e Justiça eram um deles, porém, em uma escala de importância estavam abaixo do verdadeiro pódio que tangia a ordem social dentro da colméia. O trabalho árduo, que acompanhava o dia-a-dia das operárias, era o alicerce daquela sociedade, o básico onde tudo se apoiava, sem ele a colmeia não poderia existir, e através de sua sintonia a ordem se estabelecia para que enfim pudesse ser posta em prática. Em seguida, o que seguia adiante à primeira lei ponderal do esforço físico, era a unidade. Os indivíduos sociais deveriam ser e agir como um só corpo, a diferença, nesse caso, não era bem vista, já que se um pé agir por conta própria – sem o comando do cérebro – todo o corpo poderia cair, levando assim a sociedade à ruina. Nesse caso, ser igual, mecanicamente falando, era um lema no qual todos deveriam seguir. O terceiro e último, que legitimava por fim a ordem e o bem estar social, era a lealdade, ser leal e íntegro para com seus companheiros era o primeiro ponto, mas a lealdade ia além quando se tratava da matriarca da colméia, a Rainha, a força legitimadora de todos os preceitos já citados. A lei era clara, nenhuma operária poderia sequer cogitar que sua vida valia mais ou se igualava a da Rainha, aquilo era inadmissível. A lealdade seguia um rumo bem mais extremista quando se tratava disso. O sacrifício, então, era visto como uma honra, dar sua vida para manter a da rainha era o maior prêmio que uma operária poderia ganhar.
Haabel conseguia entender, em grande parte, o funcionamento na sociedade na qual estava inserida, existia preceitos que até ela, preguiçosa e bagunceira, era a favor. A lealdade extremista não era um desses casos. A operária não conseguia aceitar que pessoas poderiam dar a sua vida deliberadamente a outro alguém, independente de quem seja. Era meio assustador. A vida, em sua concepção, era o bem mais precioso que a natureza poderia conceder, e dá-lá a qualquer um era inadmissível.
Haabel nunca, nunca mesmo, abriria mão da sua.
— Como podem desejar algo assim? — o pensamento escapou por entre os seus lábios em um murmurío audível o suficiente para que as operárias à sua frente ouvissem.
Anabela e sua amiga se viraram para Haabel com um olhar confuso:
— Do que está falando?
A operária sabia que deveria se manter quieta, já havia levado castigos o suficiente naquele período. Era loucura explanar seus pensamentos de maneira descabida. Se Haabel fosse inteligente ela acabaria com o assunto sem levantar suspeitas, mas ela não era.
— Como podem desejar a morte de uma maneira tão animada? — Questionou em um tom confuso e acusador, estava se contendo para não levantar o tom de voz — É... – Haabel parou e respirou fundo por alguns instantes – É a vida de vocês! Não é digno que hajam como se não fosse nada.
As duas operárias franziram o cenho e se entre olharam por algum segundos, pareciam surpresas com aquelas palavras. Nunca haviam pensado naquele tipo de coisa na qual a outra mencionava com tanta seriedade, para elas o sacrifício estava tão materializado em suas vidas que era quase impossível discordar ou se opor a ele. Nunca haviam visto alguém questionar uma regra daquele jeito, era muito inadequado, quase uma heresia.
— É claro que apreciamos a nossa vida! — Exclamou a outra operária que parecia a mais sábia, ou a mais rigorosa entre elas — Todas sabemos que o sacrifício é um ato voluntário e que sem a permissão da operária escolhida a Rainha não pode fazer nada. A questão é que se o destino predestina uma operária insignificante para algo maior, como dar mais força à Rainha, nós não estaremos abrindo mão da nossa vida e sim dando um significado à ela. Não existe nada mais honroso.
Haabel arqueou as sobrancelhas e quis rir da ingenuidade da outra, era óbvio que todos enfeitavam algo que, no mínimo, não passava de um ato grotesco.
— E desde quando há honra na morte? — Perguntou retoricamente, seu tom já estava um pouco mais alterado, o que acabou chamando atenção de algumas operárias que estavam na fila — Morrer é morrer, independentemente do quanto tentem adornar isso.
— Morte? — Anabella riu com desdém – Como pode reduzir um ato como este à uma simples morte? Todas aqui sabemos o quanto vale a nossa vida e também que ela em nada se compara com a da nossa Rainha. Dar a vida por ela não é só necessário, mas também um dos atos mais altruísta que existe — ela então parou e encarou Haabel por um bom tempo, seu olhar denotava uma dura desconfiança — E me espanta você não achar isso.
Aquele era um assunto delicado, a operária desbocada sabia que estava pisando em ovos. Por sensatez ela deveria ficar quieta o quanto antes. Não era que ela não amasse a sua rainha, Haabel apreciava e muito a sua liderança, certa vez até havia se aventurado até a Realeira para poder vê-la – o que foi uma péssima ideia pois além de não conseguir cumprir seu objetivo ainda ficou meses trabalhando incansavelmente tendo que prestar serviços comunitários – a questão ali, o que de fato fazia a operária se irritar, era o modo extremo com que lidavam com o sacrifício, chegando até a desejar com avidez que isso acontecesse. Era assustador.
— Eu não consigo entender — Haabel riu sem humor — Vocês não só almejam uma ideia absurda como esta como até brigam e se lamentam ao não serem escolhidas. Definitivamente há algo errado aqui, e não sou eu e meus questionamentos.
As duas operárias amigas, e mais algumas que aguardavam perto delas na fila, encaram Haabel completamente surpresas. Nunca poderiam imaginar que de fato alguém seria tão ousado a ponto de questionar a lealdade com que serviam a Rainha. Além de perigoso, era um pouco desconcertante. Viviam tão imersas na realidade da colméia que ver alguém desafiando um dos preceitos mais básicos que regia aquele modelo se tornou deveras conflitante. Por fora elas aparentavam estar impassíveis e defendiam seus costumes com unhas e dentes, no entanto, em alguma delas, um sentimento estranho se instaurou. Era difícil de explicá-lo. As operárias encaravam umas as outras com uma notória confusão, suas expressões também mudaram um pouco. Mas, antes mesmo que tivessem a chance de pensar sobre o questionamento de Haabel, ou até mesmo concordar com ele em algum ponto, um pequeno impulso cerebral apitou em suas cabeças de maneira síncrona quase que instantâneamente. E então, todas elas suavizaram suas expressões e tornaram a aguardar pacientemente na fila, mas desta vez, caladas.
Haabel franziu o cenho e olhou para as costas das duas operárias que minutos atrás conversavam avidamente e agora, pareciam rígidas e silenciosas.
— Mas que merda — sussurrou sentindo-se cansada, não era incomum que aquilo acontecesse. Haabel já havia notado aquelas mudanças de humores repentinas há muito tempo.
Enquanto esperava naquela fila enorme que andava se arrastando, Haabel enfim se lembrou do conselho de Melissa de que deveria ter acordado mais cedo para evitar aquele estresse. Quando finalmente conseguiu pegar seu passe e traje o sol já estava brilhando fortemente, como um aviso de que, em breve, encerraria seu expediente. A volta para o dormitório mostrou algo que, pela primeira vez, Haabel viu em seu distrito: felicidade. Em todo o lugar que pudesse olhar havia operárias rindo, conversando e demostrando seu amor a futura rainha de maneiras diferentes. Assim como Melissa, algumas operarias esbanjavam penteados de cabelo espalhafatosos outras, treinavam danças que, através de seus movimentos, espressavam amor a matriarca, e uma parcela significativa pintava, com as cores advindas das flores, pequenos Girassóis no rosto ou em outra parte do corpo. Haabel, apesar de não ter feito nada, ainda sim se alegrou ao ver suas companheiras de distritos empolgadas. Em dias comuns era difícil ver sorrisos em seus rostos além da rotineira apatia de um dia pesado de trabalho. Haabel até faria alguma coisa, na tentativa de se enturmar, no entanto o atraso devido as horas de sono não permitiu que isso acontecesse.
Melissa não estava no quarto quando chegou, o que indicou que talvez ela já estivesse esperando na fila da locomotiva. Haabel não se arrumou rápido. Ao invés disso, ela furtou um pouco do esfoliante feito à base de arroz e limpou o rosto, depois desdobrou o macacão e o encarou com um ar de julgamento, só depois disso que ela finalmente foi se banhar, que nos distritos nada mais era que encher a bacia de água e se levar com aquela quantidade. Água encanada era um privilégio obtido apenas na grande fábrica, nem mesmo a Realeira desfrutava desse privilégio. As operarias ainda buscavam uma maneira de conseguir interligar os canos por toda a colmeia. Ao terminar ela colocou seu macacão, trançou seus fios rebeldes e saiu do dormitório.
O único meio de transporte na Realeira, além dos puxados por animais, era a locomotiva a vapor. Era uma obra recém instalada que finalmente ligou a colmeia por inteiro. Na entrada de cada distrito, havia uma linha de parada, inclusive na Realeira, e era ela que garantia a mobilidade de fácil acesso a todos os habitantes. Haabel seguiu a trilha de operarias para a parada do distrito três, que ficava logo a frente do portão de entrada do lugar. Quando finalmente chegou na linha três, que nada mais era que uma parada no meio da estrada do distrito da maioridade, ela notou o caos que ali estava. Havia muitas operárias, na verdade todas as operarias do terceiro distrito estavam ali. Era uma imensidão de amarelo, girassóis e penteados esquisitos. Haabel se aproximou da multidão e perguntou para uma das operarias que ali estavam:
— O que aconteceu?
A operarária com o rosto pintado suspirou quando disse:
— Parece que há uma insatisfação nos distritos quatorze e quinze e, por causa disso, estão atrapalhando a passagem do trem.
Haabel estreitou os olhos. Os distritos mais velhos, aqueles que trabalhavam nos campos, não tinham permissão para participar da coroação. A operarária não tinha certeza do porque, embora quando perguntava, lhe diziam que era porque eles não mereciam. Era isso também, que as operárias que estavam ali paradas achavam:
" Elas nem ao menos conseguem fazer um trabalho decente por causa da idade e ainda querem atrapalhar quem verdadeiramente contribuí" alguém murmurou com a voz repleta de sarcasmo.
" Vamos nos atrasar por causa da rebeldia de operárias ingratas" uma operária disse alto ao ouvi-la, as outras operárias murmuram em concordância, fazendo a multidão ficar ainda mais barulhenta.
"Não foram dignas de morar na Realeira e agora querem atrapalhar a gente"
Haabel se virou para a voz atrás de si que havia comentado aquilo com uma outra operaria ao seu lado.
— Por que você não cala a boca? — retrucou com a voz repleta de irritação.
Ela, meio que sentia empatia pela situação das operárias dos distritos mais velhos, até porque Haabel sabia muito bem que aquele iria ser o seu destino depois de alguns anos, uma operaria com a ficha dela, nunca moraria na Realeira nem se passasse vinte quatro horas do dia trabalhando. Ao ouvi-la, a operária fez uma expressão desentendida:
— O que? — perguntou ela confusa com a atitude de Haabel.
— Todas as operárias são iguais, de acordo com a lei de unidade, então não existe isso de mais digna ou não. E se você continuar a falar essas coisas eu irei reportar para nossa supervisora. — Haabel já havia escutado muitas broncas para saber usá-las muito bem.
A operaria arregalou os olhos e fechou a boca, ela sabia que ir contra as leis de ordem a colocaria em maus lençóis. Haabel sorriu e se virou novamente para a frente da bagunça. Demorou cerca de meia hora para que finalmente a situação fosse normalizada, ao que parecia a patrulha dos distritos haviam dado fim ao ato das operarias rebeldes. Entrar no vagão foi doloroso, quando finalmente Haabel achou um canto para se espremer ela suspirou aliviada enquanto via a porta se fechar e a locomotiva seguir rumo à Realeira.
A tortura, no entanto, não havia terminado. E, Haabel soube disso ao ver a enorme fila que se estendia durante um quilometro na frente da entrada da Realeira. Haabel arregalou os olhos assustada, quase conseguiu sentir o peso do cansaço que teria por ficar horas parada ali. A fila era tão grande que a operarária conseguiu a ver assim que desceu dos trilhos do trem, algumas operarias correram para não pegar a fila antes das outras. Haabel, andou sôfregamente sem acreditar naquilo. Quando estava prestes a entrar no seu final ela sentiu lhe puxar pelo braço para dentro das árvores da pequena mata aí redor da Realeira. Ela primeiro se assustou, mas, depois de ver quem havia feito aquilo, ela trocou a expressão confusa por uma questionadora que pedia uma explicação. As outras operarárias o fizeram.
— Nós definitivamente não vamos fazer isso — Haabel murmurou finalmente após a proposta que havia recebido. Seu olhar, incerto e um pouco perdido vacilava entre a enorme fila que se estendia à sua frente e os rostos ansiosos das colegas — É burrice.
Melissa a encarou, sua expressão estava um pouco esquisita, pendia na operária com um leve julgamento. Suzi e Íris, as outras duas que ao que tudo indicava iriam querer participar do plano, dividiam esse mesmo sentimento, pareciam até desapontadas. Haabel sempre achou que o par de operárias fossem a mesma pessoa, já que eram idênticas, até o olhar e a maneira com que andavam em completa sincronia, a operária sempre ficava desapontada quando via as duas juntas, quebrava todas as suas expectativas. Ao perceber o modo com que as três a olhavam, Haabel franziu o cenho e estreitou os olhos, desconfiada.
— O que foi? — perguntou — Por que estão me olhando assim?
O silêncio permeou o ambiente e nenhuma das três pareceu querer falar, suas expressões denotavam uma certa frustração. Tempo depois uma delas finalmente falou:
— Qual a sua definição de burrice? — Íris perguntou — Porque se me lembro bem, você foi a primeira operária a propor um período contínuo de folga e, quando este foi negado, você simplesmente adulterou a dispensa médica e ficou uma semana vadiando — seu tom era de completa acusação, talvez, um pouco de deboche.
Haabel estreitou os olhos e estava prestes a se defender quando, desta vez, Suzi tomou a fala.
— Ou, quando você inventou de criar um tipo de flor que polinizava sozinha, mas tudo o que conseguiu foi fazer com que metade do Distrito sofresse com alergias — seus braços se cruzaram sob o peito.
A operária abriu a boca se sentindo ofendida, sua expressão era de um animal que havia sido enjaulado e que estava sendo obrigado a ouvir seus raptores zombarem avidamente de si. Era claro que Haabel não tinha as idéias mais mirabolantes, no entanto seu ego ainda sim estava ali. Elas não tinham o menor respeito.
— Ora... — ela começou a falar quando Melissa a interrompeu com um sorriso perturbador.
— O melhor foi quando ela teve a brilhante ideia de atirar na cúpula com aquele estilingue dos jardins recreativos — desta vez as outras três operárias gargalharam em uníssono.
— Tudo que conseguiu foi um olho roxo e uma advertência — continuou íris com lágrimas nos olhos.
Haabel, mesmo sob uma gozação iminente, ergueu os ombros em uma estatura imponente e esperou pacientemente até que suas colegas parassem de rir. Ela não estava nem brava nem contente, na verdade, seu semblante era dominado por uma estranha apatia. Os risos foram morrendo pouco a pouco e quando finalmente o silêncio desconcertante se fez presente, Haabel encarou pacientemente uma a uma.
— Terminaram? — zombou e ao não obter uma resposta audível ela limpou a garganta e assentiu levemente — Eu já entendi a intenção de vocês. Acham que só porque eu fiz essas idiotices eu iria, por obséquio da minha burrice, concordar em invadir a realeira — ao ouvir Haabel as outras operárias se entre olharam confirmando brevemente suas suspeitas — Eu não vou fazer isso.
— Não seja idiota, nós não iremos invadir nada. — Resmungou Melissa com uma expressão azeda.
Suzi concordou e encarou a operária de uma maneira mais gentil:
— Só iremos burlar a fila, quer dizer, já estamos com nossos passes, somos autorizadas a entrar, tecnicamente não seria um crime.
— Eu fiquei três meses de castigo, tendo que trabalhar em outros setores somente por perambular ao redor dos muros, nem sequer tive a chance de ver além destes — Haabel riu e abanou a cabeça — Estou dizendo, é furada.
— Pense bem — Melissa caminhou e a encarou com um sorriso, seu semblante parecia relaxado — estão todos ocupados com a verificação dos passes na entrada da Realeira, o número da escolta ao redor do muro deve ter diminuído considerávelmente, prova disso é que hoje nem há guardas no lado de fora. Se agirmos rápido conseguiríamos pular antes da escolta chegar até a nossa parte do muro.
Depois de um tempo quieta, tudo o que Haabel disse foi:
— Vocês pensaram muito sobre isso, né?
— Basicamente – Suzi deu de ombros.
Haabel ficou quieta e levantou o olhar.
Já era noite e as estrelas pendiam sob o céu escurecido de um jeito muito peculiar. Existia uma lenda, que todos na colmeia compartilhavam, que dizia que ao ascender uma nova Rainha, o céu, como uma reverência, cedia suas estrelas para iluminar o caminho até ela. Haabel sempre foi bastante cética em relação a isso. No entanto, estando ali presente pela primeira vez na noite de coroação, ela pode perceber que se olhado atentamente, algumas pequenas estrelas faziam uma trilha sutil em direção ao caminho para a releira. Era quase irreal e muito bonito. Seus olhos brilhavam atentamente e nem mesmo a fina cúpula hexagonal que lhes separavam do real céu que se sobrepunha a eles diminui a grandiosidade daquela imagem. De fato, a noite da coroação era algo grandioso, um marco na vida pacata e maçante dos habitantes da colméia. Talvez, operárias e até mesmo a classe inferior, nunca teriam a chance de vivenciar algo como aquilo novamente. E Haabel, mesmo a contragosto, percebeu que seria um grande desperdício gastar parte da noite em uma fila desagradável.
— Certo — disse por fim, apesar da concordância seu tom continha uma certa hesitação — Vamos lá.
As operárias deram pulinhos completamente contentes com a Vitória. Haabel depois de um tempo trocou seu semblante decaído por um mais ávido e sorriu levemente.
— E o que faremos agora? — Íris perguntou com curiosidade para a outra.
Era claro que, se Haabel não tivesse aceitado as operárias abandonariam aquela ideia maluca, até porque sem ela, o plano não teria consistência. Um dos principais motivos para isso era o fator da experiência. Apesar de suas ideias nunca terem de fato dado certo, ainda sim Haabel era mestre em burlar regras. Parecia que seu cérebro maquinava com esse propósito. Era questão lógica. Por isso que todas esperavam as suas ordens.
— Temos que pegar a parte dos fundos do muro, tenho certeza que a guarda vai estar enfraquecida naquela área — Haabel murmurou franzindo o olhar para além da fila, em uma camada mais adiante — dar a volta pela mata é o mais inteligente a se fazer, dessa forma evitaremos dor de cabeça — constatou, ao seu lado as operárias escutavam atentamente. Era estranho e ao mesmo tempo divertido ter aquela atenção, Haabel sempre havia feito aquele tipo de coisa sozinha, nunca sequer cogitou a ideia de outra operária partilhar de suas ideias descabidas — a Realeira é grande, mas pelo o que fiquei sabendo o salão da cerimônia fica dentro do Castelo, e este é a maior estrutura desse lugar. Depois de pularmos é só seguirmos até ele, deve ser fácil vê-lo acima.
— Nós já havíamos pensado na localização — contou Melissa — depois de pularmos achar o castelo vai ser mais fácil.
Haabel acenou e se desencostou da árvore, seus passos tomaram a frente do caminho e antes de seguir adiante ela virou-se para as operárias.
— O que estão esperando? — sorriu e maneoou a cabeça em direção a trilha de árvores.
Elas caminharam por entre a mata escura e suntuosa em silêncio. De longe era possível captar o barulho das outras operárias na fila, de uma forma, Haabel se sentiu aliviada por não estar lá. Quando finalmente chegaram numa parte onde a distância entre a entrada da Realeira era favorável elas pararam seus passos e encararam o muro de concreto que se mantinha a frente delas. Haabel foi a primeira a caminhar até ele, elas ficaram paradas por alguns minutos esperando a patrulha passar, e quando essa finalmente passou, Haabel, devido ao seu conhecimento por causa de sua experiência passada, contou até sessenta segundo e se virou para as colegas:
— Certo, temos dez minutos antes que a patrulha retorne. — avisou.
Depois, com a ajuda de Melissa e Íris, que lhe deu sustento com as mãos, ela finalmente subiu no muro. Haabel, ao ver o cenário de casas iluminadas e, ao centro, as torres imponentes do castelo não deixou de suspirar admirada com a beleza do lugar, enquanto olhava hipnotizada ela nem sequer percebeu a sutil mudança nas pessoas que estava em baixo. As operárias encaravam incertas umas as outras, em minutos anteriores todas estavam confiantes e certas da atitude que haviam tomado, até mesmo sorriam entusiasmadas em executar aquela ideia, porém, agora, diante do perigo iminente lhes confrontando, algo pareceu mudar. Era como se um extinto despertasse de um tupor relativo no fundo de seus pensamentos, uma espécie de retração subjetiva que as repeliam e, mesmo que cogitassem a ideia, de maneira alguma elas a executariam. Simplesmente não poderiam, estavam presas e contidas.
Algum tempo depois Haabel se arrumou no muro e finalmente se virou para as outras operárias.
— Vamos! Quem vai ser a primeira? — Haabel perguntou, seu corpo pendia por cima do muro de uma forma nada agradável; uma perna caida de mal jeito para o lado de dentro e o resto dos membros inclinados para a parte externa,um de seus braço estava esticado esperando que uma das operárias o agarrassem. Ao ver a apreensão das outras, ela murmurou impaciente — Ora, parem de hesitar! A guarda retornará da ronda em minutos. — os olhos de Haabel pousaram em Melissa e, por um instante, ela viu a outra vacilar discretamente. A operária em cima do muro suspirou estarrecida e inclinou ainda mais o braço em direção da amiga — Pare de ser covarde! Venha Logo!
Ao ter a atenção direcionada para si, Melissa tremeu levemente. Seu olhar, cabisbaixo e vergonhoso, desviou para o chão verde e brilhoso e pareceu travar ali. Era difícil descrever o que estava sentindo naquele momento. Um lado fraco e instável, desejava ir adiante, porém, o lado racional guiado por um impulso primitivo e forte pareceu cravar seu corpo naquele lugar. A hipótese de seguir em frente não era discutível. Suzi e Íris dividiam do mesmo sentimento.
— Não posso... — sussurrou entorpecida — É errado, nós — ela parou e respirou fundo — deveríamos... voltar.
Ao ouvir Melissa, as outras duas operárias acenaram em sintonia e deram um leve passo para trás. Haabel ficou em choque. Seu olhar cruzou de uma para outra completamente desacreditada.
— O quê? — sussurrou erguendo levemente a cabeça — Vocês só podem estar brincando... — ela riu com desdém, seu tom beirava ao ódio — Eu estava indo para a fila como uma operária normal deveria fazer, daí, vocês simplesmente me arrastaram e me incluíram nessa ideia absurda e agora... — ela abanou a cabeça ainda sem acreditar — agora querem desistir — ela riu e metralhou cada uma com um olhar irritadiço — Pois não vão! Eu juro que se vocês não agarrarem meu braço agora mesmo eu vou fazer da vida de cada uma um inferno!
— Nós sentimos muito Haabel — Íris sussurrou em um tom triste — Mas não podemos.
— Venha, a gente ajuda a te tirar daí — Melissa se aproximou levemente e chamou a outra com um leve inclinar no braço.
Haabel ainda estava sem acreditar no que estava acontecendo. Uma parte dela a julgava incansavelmente, como poderia ter confiado em operárias que seguiam as regras imaculadamente sem sequer questionar? Como poderia ter sido tão ingênua? Se perguntou ainda quieta. Era óbvio que na hora da adrenalina elas recuariam. Óbvio demais. E pensar que ela havia cogitado que, pela primeira vez, não estaria sozinha em situações como aquelas.
Burra.
— Eu juro que vou matar... — Haabel começou, no entanto, um som conhecido a interrompeu.
Era a marcha da tropa de patrulha, ao que parecia, o tempo em que haviam ficado ali paradas fora suficiente para o retorno da guarda. Era questão de segundos para realizarem a curva e avistar Haabel em cima do muro, como uma verdadeira criminosa. A operária arregalou os olhos, as lembranças da época em que havia ficado presa no centro de detenção da grande fábrica tendo que prestar trabalho comunitário metralharam seu subconsciente no mesmo instante. Ela, tomada por adrenalina e pânico, pensou em inclinar o corpo e aceitar a ajuda das operárias para descer daquele muro. No entanto, sua ansiedade pareceu ser mais rápida e em um gesto pouco calculado, na tentativa de pegar impulso, Haabel se deu por inclinar um pouco demais seu corpo para o lado de dentro da Realeira e, sem equilíbrio, acabou cedendo a força esmagadora que a suprimia. A operária caiu de cara no chão.
O muro ao redor da Realeira tinha cerca de 2 metros de altura, uma queda não seria fatal, porém, seria de fato dolorosa e, a depender da maneira em que se houvesse despencando, alguns ossos quebrados seriam aceitáveis. Para a sorte de Haabel suas articulações estavam todas no lugar, mas a dor era Insuportável. A garota, por alguns instantes, ficou imóvel sob a grama dura e expessa, parecia estar raciocinando e contendo a vontade de gritar. Tempo depois, devido à urgência da aproximação da guarda, ela arrastou levemente os membros até a grama mais avantajada afim de se camuflar da patrulha que parecia estar bem mais perto.
O barulho havia chamado a atenção das operárias que faziam parte da tropa de patrulha nos muros, consequentemente elas apertaram o passo. Algumas olharam ao redor tentando captar o lugar exato da emissão do som. Se separaram enquanto tentava ver alguma coisa no escuro da grama alta, atrás de uma pequena quantidade de árvores. Uma dessas operárias caminhou exatamente para o local exato em que Haabel estava. A operária escondida, tapou a respiração com as mãos enquanto tentou se afundar ainda mais no grama na qual estava. A guarda levantou os pés e fez menção de ir um pouco mais pra frente, se fizesse isso ela pisaria em Haabel e, aí, estaria tudo acabado, no entanto, antes de completar o passo a responsável da patrulha gritou para que se alinhassem, ao que parecia, outras operárias na entrada da Realeira estavam discutindo. Ela, então, deu meia volta e se afastou dali.
Haabel soltou a respiração que nem ela sabia que estava segurando e, com um pouco de dificuldade, levou seu corpo a se sentar, ao ter certeza que a patrulha já estava longe. Ela suspirou pesadamente e ficou parada, sentada na escuridão, por alguns longos minutos. Com o tempo a dor pareceu se estabilizar e, mesmo com algumas reclamações de sua costela arroxeada, ela se levantou. Seu macacão estava com traços de terras em algumas partes, e seu cabelo, antes ornado de duas tranças perfeitamente alinhadas, agora estava com vários fios negros desengranhados. Aquele plano era um desastre, porém, executá-lo sozinha era mil vezes pior.
Haabel suspirou, bateu levemente o tecido de seu traje e, depois, levantou o olhar até a torre que se estendia alta e imponente cerca de um quilômetro à sua frente. O castelo era localizado na parte central da Realeira, antes dele existiam as vilas reais e depois a periferia interna, onde ela estava. Era a área mais afastada do centro e, ao que tudo indicava, a única área sem iluminação e deserta.
Ela teria um longo caminho.
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