Capítulo 2
A tradição dos Trinta Anos
Os membros da família Camponelle tinham a tradição de o filho mais velho assumir a paróquia da cidade onde moravam. O pai de Juan era reverendo, assim como seus antepassados, mas para assumir a paróquia, o filho mais velho deveria se casar.
Quem assumisse o presbitério de Mira Estrela herdaria a propriedade que ficava próximo à igreja e receberia um ordenado satisfatório, que não permitiria extravagâncias, mas que seria suficiente para suprir as necessidades de uma vida modesta.
A exigência era de que, ao assumir o presbitério, o pároco não tivesse mais do que trinta anos, para que não precisasse ser trocado com frequência, dando tempo de o filho primogênito crescer e assumir a sucessão.
Só havia um problema: Juan Camponelle era avesso a imposições e tinha outros planos. Achava que já estava na hora de romper com aquela tradição. Juan queria mesmo era abrir uma tipografia e publicar periódicos, talvez uma revista, quem sabe, e isso nada tinha a ver com uma vida eclesiástica.
Para deixar claro que não tinha interesse em uma vida ministerial, aos vinte e oito anos ainda era completamente solteiro, ou seja, não estava sequer cortejando alguém. Contudo, os anos estavam passando e seu sonho de uma tipografia era algo distante, pois sem o apoio de sua família, e os empecilhos criados por seus pais e avós, tornara-se muito mais dificultoso obter sucesso nesse empreendimento. Pelo menos era o que pensava até chegar a Mira Estrela, mas tudo mudou em um instante, ou melhor, em uma lufada de folhagens diversas.
Juan estudara Humanidades em Coimbra, depois fez especialização na Inglaterra, e quando finalmente retornou ao seu país, em vez de voltar para sua província, foi para a Capital do Império, e passou alguns anos por lá, tendo se estabelecido em uma tipografia conhecida e conseguido uma coluna em um dos jornais mais conhecido da região, Correio Mercantil, fazendo amizade com as principais mentes da época. Entretanto, com o falecimento de seu bisavô, não teve mais como evitar seu regresso.
O clima de recepção havia sido uma mistura de alegria pelo seu retorno e tristeza pelas circunstâncias. Justinianno sempre fora um homem muito atuante, um ícone para a família. De fato, era uma grande perda depois de sua tataravó, uma inigualável matriarca.
Dois dias após a sua chegada, fizeram a leitura do testamento. Como de esperado, o bisavô deixara orientações para a paróquia de Mira Estrela ficar aos cuidados de Juan, com a condição de que ele estivesse casado. O pai assumira a paróquia local provisoriamente, pois era responsável pela congregação em Terramar, a atual Mirassol.
Justino, filho de Justinianno, era reverendo da Congregação Cristã de Belomar, uma grande catedral, inaugurada por Janno Camponele, trisavô de Juan, que já estava aposentado do sacerdócio há vinte anos, quando completara noventa, apesar de ministrar alguns sermões em datas especiais até os cem anos, além de atuar como conselheiro ministerial.
Janno Camponelle viera da Itália primeiro, com a missão de abrir uma congregação em Belomar. Alguns anos depois, sua família, incluindo sua mãe, vieram também, o pai de Janno falecera na Itália anos antes. Venderam tudo o que tinham e partiram para o Novo Mundo.
Ganharam terras em Belomar, próximo ao local onde seria a catedral, de um parente que se tornara barão, membro da Fé Reformada da Europa. Com as ofertas arrecadadas, abriram uma congregação em Terramar, onde já tinham uma propriedade. A congregação de Mira Estrela fora construída com recursos próprios. Sempre foram agricultores, empreendedores, e na nova terra não seria diferente. Plantavam uvas, a principal renda da família vinha dos derivados da vinha.
A congregação de Mira Estrela fora inaugurada após a partida de Juan para a Europa, antes disso os fiéis da região cultuavam na pequena capela da fazenda Camponelle. Era ela que Juan receberia de herança. Não era muito, mas caso aceitasse, tornaria possível iniciar o seu próprio negócio: a tipografia. Poderia usar a propriedade que ganharia ao aceitar o cargo. Ter o local seria meio caminho andado.
Também receberia uma propriedade do bisavô, estava no testamento, a casa do litoral, que ficava na divisa da região, e que fora construída especialmente para ser deixada de herança para o bisneto. Além disso, teria participação nos rendimentos da fazenda, sendo necessário assumir algumas responsabilidades, claro.
Quando Justino, o avô, começou a falar sobre a impossibilidade da herança, devido Juan não ter planos de se casar a curto ou médio prazo, ele foi interrompido.
— Caro avó, deixe-me corrigi-lo — iniciou Juan, intentava esclarecer que tinha sim planos de encontrar alguém no mínimo a médio prazo, só não tinha a intenção de permanecer em Mira Estrela ou abraçar o sacerdócio.
A manifestação do primogênito chamou a atenção dos pais e dos avós. O mesmo não ocorreu com os irmãos mais novos de Juan. A irmã estava mais preocupada com seu penteado, e os gêmeos fraternos em alguma disputa corriqueira entre si. O caçula, como sempre, estava na biblioteca.
Anna, enquanto terminava a sua toalete, pedira que os gêmeos fossem chamar o mais novo. Mas, ao comparecer para a reunião de família e não ver o irmão presente, fora à biblioteca buscá-lo, o jovem Camponelle disse que já estava indo. Anna sabia o que aquilo significava, porém, como não queria ser repreendida por se atrasar, retornou ao local da reunião.
Janno, o centenário da família, estava de repouso, não fora fácil perder seu primogênito, a segunda maior perda após o falecimento da esposa há quase vinte anos, depois de mais de dois anos acamada.
— Qual das suas primas é do seu interesse? — indagou Justino, interrompendo o neto.
Julianna estava surpresa com a pergunta do marido, nunca soube do neto dando atenção especial a qualquer moça da parentela. Essa era mais uma das tradições dos Camponelles, casavam-se entre si. Inicialmente, entre primos de primeiro grau, mas já há algumas décadas, com parentes mais distantes.
Maranna, a viúva, permanecia alheia ao que era dito na reunião, seu luto, para todos os efeitos, incluía o silêncio.
— Como sabem, acabo de chegar, e ainda que já estivesse interessado em alguma jovem, ela precisaria corresponder — respondeu Juan.
— Não seja modesto, meu filho, qualquer uma das Camponelles ficaria lisonjeada — disse Annalice, sua mãe, dona Lice para os amigos e Lice para os mais íntimos.
Como o assunto eram flertes, a atenção de Anna se voltara para a conversa. Fora a única a perceber a ironia nas palavras do irmão mais velho.
— Principalmente as que já estão passando da idade de casar — gracejou Anna.
— Nossa irmã falando do próprio clube — disse Jordão, recebendo um toque na mão em sinal de aprovação do outro gêmeo.
— Não pense que me importarei com a sua pilhéria, tenho apenas vinte, estou no auge, cheia de pretendentes e prestes a ser pedida em casamento por um determinado cavalheiro em particular. — Com ares de indiferença, Anna arrumava seus cachos loiros, herança de sua avó.
Antes que Jordão pudesse retrucar a irmã, o avô interveio.
— Todos quietos, isto é uma reunião importante, não deveriam estar presentes, apenas o primogênito, mas resolvi ser moderno.
— Quanta modernidade — disse Anna, abaixando a cabeça, como se isso fosse impedir que os presentes a ouvissem.
— Já que tem algo tão importante a dizer ao ponto de me interromper, fique de pé e fale mais alto para que todos a ouçam — disse Justino, passando a mão em seu espesso bigode.
— Não foi nada, vovô. Pode continuar a reunião, farei silêncio — definitivamente a oratória não era uma das predileções da jovem Anna Camponelle.
— Continuando, sei que tem o prazo até os trinta para estar casado, mas com a morte do babbo. — Ele pigarreou, fazendo uma pausa para beber um pouco de água.
A alma da cidade era Justinianno, assim como da fazenda e dos Camponelles, um italiano que amava a Deus, a família e a terra. Apesar da idade já avançada de seu pai, não conseguia assimilar a realidade sem ele.
— Mio amado Nianno está com Dio — pronunciou-se Maranna, sentada à cabeceira da mesa de jacarandá de dez lugares da sala menor de jantar. — Breve, io vado com ele, ma tenho um último pedido para partire in pace e ver di nuovo mio amore — continuou ela, mesclando italiano e português.
A bisnonna Camponelle fez menção de levantar-se, sendo auxiliada pelo neto, que segurou no braço da mais velha, que por sua vez deu um tapa na mão de Julino, arrancando risos abafados dos Camponelles mais jovens.
A viúva fixou seus olhos no bisneto primogênito, apoiando-se em sua bengala.
— Quero vê-lo casado o quanto antes, darei a mia benedizione na cerimônia di successione episcopale ao fruto no ventre di tua esposa. Será una alegria para tuo nonno Janno, mio amado sogro, ver o tataraneto antes di morrer. — Quando queria se certificar de que de fato seria entendida por completo, falava mais palavras em português do que em italiano. — Questo è tutto — decretou a oxixagenária, retornando ao italiano.
Juan ficara sem saída, sua ideia era ganhar tempo para convencer os avós e os pais sobre um empréstimo para abrir a tipografia na Corte e que não se sentia preparado para atuar na área eclesiástica; mas seria difícil negar o último pedido de sua bisnonna. Não duvidava que de fato ela também pudesse partir em breve, não a imaginava sem o bisnonno, os dois eram inseparáveis.
E ainda tinha Janno, seu ancestral vivo mais velho, sofrera muito com a perda da esposa, e agora perdera seu primogênito. Certamente, não tinha mais muito tempo de vida, e seria um grande alívio se ele partisse tendo uma grande alegria antes e não com a alma envolta pelo luto.
Por um instante, Juan se permitiu ponderar a respeito. Qual seria a grande dificuldade? Preparar alguns sermões? Celebrar casamento de vez em quando? Fazer enterros seria desagradável, mas era uma cidade pequena e não havia muitas mortes por ano. Não seria um sacrifício tão grande assim. A jovem escolhida seria seu alento, o seu consolo, o seu bálsamo e sua inspiração para lindos sermões. A moça que ele tinha em mente não era uma Camponelle, pelo menos julgava não ser, já que não sabia ainda o nome dela, mas sendo ou não, a família precisaria aceitar a sua escolha, seria a condição.
Casar com uma beleza daquela não seria tão mal, pensou Juan, da soleira da porta de entrada, enquanto observava grãos secando ao sol na eira algumas dezenas de metros adiante, alguns deles eram levados pelo vento devido partes da eira estarem com a beira danificada. Refletiu se, ao se submeter aos anseios da família, não seria como aqueles grãos, sendo levado pelo vento.
Sim, talvez se tornasse um grão ao vento, mas todo sacrifício tinha sua recompensa, e a dele seria muito satisfatória.
Um girassol com pétalas cor de barro incandescente.
A moça que vira ao chegar em Mira Estrela.
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