9 • Caminho perdido (parte 2)
Três anos se passaram desde que Samantha Ortiz descobriu os seus poderes, e com isso, durante três anos seu pai lhe ensinou tudo o que era necessário para aprender a conhecer a si mesma, além de treiná-la intensivamente com as artes das lutas.
Samantha havia passado a tarde inteira no porão, junto ao pai, lutando incansavelmente contra projeções holográficas criadas por ele, e as palavras de Charlie ecoavam em sua mente como uma melodia decorada.
"Agora você é uma super-ata, e isso significa que você precisa ter autocontrole. Você precisa se conhecer cada vez mais, e aprender sobre si a cada dia. Não pense em ativar os poderes, não pense em controlá-lo como faria com um drone. Isto não é algo externo a você. Isto é você. Você é seu poder. Quando precisar tornar-se intangível, ou precisar tornar-se mais densa, não pense que você estará intangível ou densa, pense que você é intangível e você será. Não se trata de sentimentos... Abstraia-os, ignore-os. Seu poder não provém de felicidade ou tristeza ou amor. Não é uma questão de estar, mas de ser. Não se trata de vontade. Seus poderes não provém do querer ser. Você é!"
Os treinamentos intensos se repetiam sempre da mesma forma. Escondidos no porão, pois, como membro da Ordem, Charlie Ortiz era proibido de ensinar e treinar qualquer pessoa, independente do grau de proximidade ou das intenções.
"Lute sempre como se estivesse só. Não conte com a ajuda de terceiros, pois eles podem não conseguir ajudá-la. Conheça seu alvo como você conhece a si. Analise, mapeie, enquadre em um padrão e você saberá com o tempo a identificar todas as táticas de ataque e defesa de qualquer um. Lute para nocautear, e não tema se for necessário matar, o inimigo não pensará em poupar a sua vida. Incapacite primeiro, ou descubra o ponto fraco. Saiba o que move seu inimigo e tire isso dele. Se um inimigo não puder lhe atacar, ele não lhe será perigoso. Impeça-o de lhe fazer mal".
No fim daquela tarde, a luz vermelha batia contra o rosto da garota, fazendo as gotas de suor de sua testa cintilarem. Ela usava roupas esportivas largas em seu corpo pequeno, o cabelo longo estava preso em um rabo de cavalo.
Samantha respirava ofegante, sentada sobre os degraus da escada, enquanto seu pai arrumava o porão com o auxílio de seus poderes.
— Você foi muito bem hoje, querida.
— Obrigada pai. — Ela sorriu.
— Vamos subir, ou você vai se atrasar pra festa.
— Tudo bem. — Ela deu de ombros, mas era perceptível em seu olhar jovial sua vontade de ir para aquela festa organizada pelos amigos da escola.
— O Logan vai estar lá? — O pai riu em um tom zombeteiro.
— Para, pai! — Ela socou-lhe o ombro levemente, sorrindo.
Os dois subiram lado a lado. Fiona estava na mesa de jantar, lendo diversos documentos em hologramas brilhantes. Ela não prestou atenção na movimentação entre Charlie e Samantha, então nem viu quando a garota subiu as escadas para seu quarto correndo.
Samantha tomou um banho rápido, penteou o cabelo e passou uma maquiagem leve no rosto. Colocou o seu vestido favorito, em um tom azul-bebê e sapatilhas no mesmo tom. Ornamentando o pescoço e pulsos, tinha pulseiras prateadas, com pedras que brilhavam levemente.
Dando-se devidamente arrumada e satisfeita com o que via pelo reflexo de sua penteadeira, ela desceu rapidamente as escadas. Chegando na sala, abraçou o pai, e seguiu em direção a mãe .
— Volte às onze. — Fiona falou sem olhar para a filha.
— Tudo bem. — Samantha deu um abraço desajeitado nela.
— O que é isso?
Fiona olhou para as mãos de Samantha em reprovação. Nos últimos três anos, cada vez mais, manchas negras começaram a surgir nas costas das mãos da garota.
— Coloque as luvas, por favor. — E Fiona voltou a olhar para as projeções holográficas. — Credo! — sussurrou.
Torcendo os lábios, Samantha puxou um par de luvas azuladas que estavam jogadas sobre uma estante da sala de jantar, e um pouco relutante vestiu a peça. A adolescente levantou ambas as mãos para a mãe, mostrando que as manchas estavam cobertas. Após um balançar positivo de cabeça por parte de Fiona, Samantha saltitou para fora.
Charlie assistiu aquilo em silêncio. Quando a garota já estava longe o suficiente, ele sentou-se ao lado da esposa.
— Por que foi tão rígida assim? São só manchas.
— Manchas que aparecem cada vez mais.
— É uma reação do corpo dela aos poderes. É natural. Não deveria fazer com que Samantha se sentisse envergonhada.
— E o que eu deveria fazer, Charlie? Ensinar ela a lutar? A agir violentamente? Quer que eu a apresente aos terroristas também, para que ela use os poderes contra a cidade? Ela é uma garota linda, e a cada vez que usa os poderes as manchas crescem... Ela vai se tornar um...
E Fiona se calou.
— Um o que?
— Um monstro.
— Por ser super-ata? Fiona, não sei se percebeu, mas você casou com um, eu sou um monstro pra você?
Fiona o encarou, mas não respondeu. Charlie bateu a mão contra a mesa, deixando a esposa sozinha.
• • •
Uma música animada tocava no ambiente multicolorido, luzes piscavam sem parar, iluminado todo o lugar de janelas e portas fechadas. Uma dúzia de adolescentes estavam ali, alguns dançando animados, outros no canto bebendo um pouco de cerveja Light enquanto batiam um papo descontraído. Samantha estava entre este segundo grupo.
— ... Aí eu arremessei a bola tão alto que ganhei pontos extras... — Logan falou animado para os demais, e eles sorriram.
Era um adolescente bonito, alto, cabelo preto penteado para trás e traços angelicais, usava roupas finas, de alta grife, como a maioria dos jovens ali presentes.
Samantha estava ao lado dele, e ele apertou a cintura dela com força. Ela sorriu para ele e lhe deu beijo no canto da boca, arrancando risinhos novos dos outros.
— Samantha está apaixonada pelo cara mais forte da escola!
— Vocês vão se dar bem hoje!
E riram mais. Cassandra, uma garota ruiva e baixinha começou a contar sobre a nova empregada, e disse sobre as escamas que ela tinha pelo corpo, em tom de deboche.
— Eca. Tudo bem ser um erato, mas deformidades já é demais! — Um dos rapazes falou.
— Tudo bem ser um erato? — Logan disse surpreso — Eles são todos iguais, são perigosos e um risco para o bem estar da nossa sociedade!
— O que? — Samantha virou-se para ele arregalando os olhos.
— Ah Samantha, quer dizer que você apoia esses monstros?
A garota olhava para Logan incrédula no que ouvia sair da boca daquele rapaz. Ele, tão lindo, inteligente e o destaque dos jogos acadêmicos... Era sua primeira paixão. Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e o semblante de todos na roda de amigos mudou do sorridente para o sério, todos olhando de Samantha para Logan sem entender muito bem o que acontecia ali. Somente Logan mantinha um sorriso no rosto, mas o dele era de nervosismo.
— Quer dizer que sou um monstro?
— Você é uma...
— Como eu iria saber?
— A gente senta juntas desde o primeiro ano...
— Que nojento!
Eles não sabiam o que expressar, se surpresa ou repulsa. Samantha retirou as luvas e mostrou suas manchas negras. Havia fúria em seu olhar. Em um instante, seus olhos brilharam e sua pele endureceu, Samantha então desferiu um soco contra a parede de concreto, abrindo um buraco e criando uma rachadura serpenteante até o teto.
— Vão pro inferno.
Sem ouvir nada e nem olhar para trás, a garota saiu da festa em passos rápidos. Enquanto caminhava apressada pelas ruas da Alameda, deixava lágrimas escorrerem pelo seu rosto jovial.
A ATS-001 era um distrito belamente construído e de arquitetura incrivelmente planejada. As luzes cintilantes junto às enormes mansões e arranha-céus construídos ali encantavam a vista de qualquer um. Os moradores daquele distrito não percebiam isso, estavam acostumados ao luxo, então para eles aquilo era o comum — com Samantha isto não era diferente.
Tudo ali era tão normal que a garota chegou a estranhar a quantidade absurda de caminhões e vans da C.A.E.S. passando sem parar por ela. Drones também sobrevoavam o lugar, destoando totalmente dos hologramas gigantescos em tons quentes que enfeitavam a vista. Um deles passou por entre uma maçã gigante, chamando a atenção de Samantha, que observou boquiaberta enquanto pixels holográficos em vermelho espalhavam-se seguindo o rastro do drone.
Quando Samantha chegou em sua casa, ela entrou abruptamente, batendo a porta de entrada com força e pisando fundo rumo as escadas. Charlie a recepcionou na sala, soltando um leve sorriso para a filha, que desapareceu ao notar o semblante abatido da garota.
— O que aconteceu, filha?
— O Logan é um idiota. — Ela bufou.
— Garotos são idiotas. — O pai sorriu.
— Ele disse que super-atos são perigosos e um problema para a cidade.
Charlie ficou com como semblante sério, e bateu no couro do sofá com a palma da mão levemente, indicando a filha para que ela se sentasse ali.
— Querida, ele é o primeiro de muitos garotos idiotas. Você não precisa sofrer por amor. Eu sei que você não escolheu ele para gostar, e sei que se sente arrependida. Mas sentimentos surgem... E vão embora. Lamentar não vai fazer ele deixar de ser idiota. Viva sua vida, siga adiante...
Samantha olhou de cabeça baixa para o pai, ouvindo o que ele dizia atentamente. Ela esboçou um sorriso tímido, e Charlie acariciou-lhe a cabeça. O homem se levantou e caminhou rumo as escadas em silêncio.
— Pai...
— Que foi, querida? — Ele parou na escada.
— Sabe o que é da acontecendo na vizinhança? Tem vários drones e carros da C.A.E.S. rondando por aqui... Estamos em perigo?
— Você tem certeza? — Ele a olhou, surpreso.
Charlie conferiu no seu aparelho de pulso, procurando por alguma mensagem da Ordem, independente da C.A.E.S. ser uma empresa privada, a Ordem sempre deveria ser notificada em operações contra meta-humanos. Nenhuma mensagem, ele encarou a filha com dúvida em seu olhar.
— Samantha, você tem certeza disso?
A garota fez menção de responder, mas foi interrompida por uma explosão. Cacos de vidro voaram por todos os lados, e Samantha caiu no chão com o impacto, assim como Charlie. Em segundos, dezenas de soldados da C.A.E.S. invadiram a casa disparando às cegas.
Confusa, a adolescente se levantou com pouca dificuldade, seus olhos já brilhando intensamente. Toda sua pele ficou preta fosca mas, mesmo desnorteada, ela avançou ofensivamente contra os soldados.
— Não! — Charlie gritou.
Ele abriu as mãos que brilharam no tom roxo, e ele jogou os braços para cima, levitando uma dezena de soldados. Um segundo movimento de mãos fez com que eles explodissem, espirrando sangue no ar. O super-ato girou o corpo, apontando uma mão para cada lado, e isso fez um campo de força se espalhar para onde as mãos apontavam, arremessando fileiras inteiras de soldados para longe.
Charlie virou-se para a filha em desespero, no momento em que a garota lutava bravamente contra um soldado. Ele gritou ao ver Samantha sendo nocauteada, caindo no chão soltando um grito agudo de dor. Ortiz não podia arriscar que sua filha se machucasse mais, e em desespero apontou as duas mãos para ela.
Samantha arregalou os olhos ao ver o campo de energia roxo cercando-lhe.
— Pai.... Não!
Ela desapareceu. Charlie virou-se para o soldado que havia atingido sua filha e, estalando um dedo, quebrou todos os ossos do homem, que caiu no chão soltando o seu último grito agonizante. O homem analisava o lugar ainda com medo e confusão lhe batendo forte no peito, ele desesperava-se ao ver mais soldados invadindo sua casa.
Sentiu alguém se aproximando por trás. Rapidamente girou o corpo ofensivamente, e encontrou Fiona. A esposa olhava para ele com um misto de medo e ódio, ele parou e a encarou com o mesmo semblante.
A mulher se aproximava rápido, desnorteada com os disparos que ecoavam por todos os lados. Charlie temeu por Fiona, ergueu as mãos e com isso todos os projéteis viraram pó. Com isso, Fiona sentiu-se segura para se aproximar do marido.
— Amor, tome cuida-
Antes de terminar a sentença, a mulher cravou uma adaga no peito dele. Charlie a encarou, incrédulo, e deixou uma lágrima escapar.
— O que você fez?
Charlie encarou os olhos daquela mulher, procurando o amor que um dia existiu ali. Procurou ali a mulher que ele prometeu proteger, que prometeu amar e cuidar; a mulher que também havia lhe prometido as mesmas coisas. Mas tudo o que ele viu naquele olhar foi repulsa. Tudo o que ele viu, antes de morrer, foi o ódio de Fiona por ele e por todos os super-ato.
***
Samantha estava nas ruas do Ninho, defronte a vitrine de uma loja de aparelhos eletrônicos. Os televisores mostravam o noticiário sobre a operação especial da C.A.E.S., para prender um membro da Ordem que, segundo eles, havia traído o Conselho ao treinar ilegalmente os terroristas denominados por Ômega.
A garota balançava a cabeça em negação ao ouvir toda a notícia, sem querer acreditar naquelas palavras. Eles disseram que Charlie Ortiz resistiu a prisão, e que havia matado dezenas de soldados antes de morrer.
Totalmente abatida com aquilo, a garota correu pelas ruas do Ninho. Estava desnorteada, perdida, desconsolada. Acabara de perder o pai, e isso doía-lhe o peito com tanta força que ela sentia que seu coração iria parar a qualquer momento. Somente quando suas pernas imploraram por descanso que Samantha caiu sobre seus joelhos, em um beco iluminado apenas por um poste de luz. Ali, ela chorou.
• • •
De cabeça raspada, usava um casaco roubado, de couro vermelho, cobrindo suas roupas maltrapilhas. Samantha vagava perdida por Alexandria, completamente inexpressiva e ignorando todo o sentimento de perda e dor que insistia em seu peito.
Fim do capítulo
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