6 • Sinceridade é a senha
A mansão na Alameda de Todos os Santos pertencia a Liliana Paulson, mãe de Carlos e Caliope, ambos super-atos abandonados na infância e adotados por ela. Carlos tinha dezesseis anos, enquanto Caliope tinha quatorze. Ele, um pouco acima do peso, o cabelo ruivo cacheado e usava sempre um boné cobrindo os cachos; ela era negra e pequena para sua idade, tinha o cabelo preso por um par de tranças.
Naquela noite, Liliana estava à cozinha, preparando o jantar, enquanto os dois filhos estavam no andar superior, brincando juntos um jogo de tabuleiro. Caliope, portanto, parou de repente e encarou o irmão, uma lágrima escorreu pelo seu rosto.
— Está acontecendo? — era uma pergunta retórica. Ele já conhecia a irmã suficientemente bem para saber que os poderes dela foram ativados sem o controle dela.
Rapidamente, o garoto pulou da cadeira e puxou da escrivaninha seu caderno e uma caneta preta, entregando rapidamente à irmã. Ela então começou a rabiscar, um amontoado de palavras desordenadas. Carlos correu para um painel eletrônico preso a parede do seu quarto e pressionou os dedos sobre ele. Os olhos do garoto ficaram brancos, "De novo" e ele mentalizou essas palavras, fazendo-as se digitalizarem na tela.
Liliana recebeu um bip em seu relógio de pulso, clicou no botão vermelho na lateral do dispositivo eletrônico, e uma mensagem holográfica subiu para seus olhos: "De novo".
Ela soltou a faca que usava para cortar legumes e correu pelas escadas rumo ao quarto, abriu a porta e encontrou com Carlos, parado ali, observando a irmã, enquanto ela chorava e escrevia, sem parar.
— Há quanto tempo? — Liliana perguntou, puxando uma seringa de dentro do seu bolso.
— Não faz nem dois minutos. — Carlos tentava parecer calmo, mas suas mãos suavam e tremiam sem parar.
Liliana injetou um líquido azulado no pulso da garota, e ela parou de repente, seu corpo tremeu e tombou para o lado. A garota havia desmaiado.
— O que está escrito?
— "Ortiz... escolhido. Destruição de Alexandria". — Liliana leu, contendo o nervosismo.
— O que isso significa?
— Fique aqui. Cuide dela!
Liliana saiu do quarto apressada, já ligando o seu comunicador na central da Ordem de Alexandria:
— Preciso falar com Daria ou Oliver, urgente. Código de segurança máxima. Identificação 0345, Agente Especial da C.A.E.S. Liliana Paulson.
Enquanto isso, Caliope despertou lentamente, estava deitada em sua cama. Carlos estava parado ali, olhando-a fixamente, havia compaixão e preocupação no olhar do garoto.
— Você está bem? — Ele sussurrou.
— Dói muito... — Ela torceu os lábios— Eu não sei se consigo mais...
— Eu estou aqui, por você.
— Se você soubesse o que sei... Se visse o que vejo... Não é como você imagina. É terrível saber o que sei sobre mim, sobre mamãe... sobre você. E eu não posso fazer nada.
— O que você sabe sobre mim? —Carlos estava intrigado. — Conte... Eu aguento, divida esse peso comigo.
Caliope o encarou, e ficou em silêncio por vários segundos.
— Você irá sofrer se souber.
— Por favor. Eu aguento.
— Você irá amar um homem... Mas se decidir ficar com ele, ele morrerá, e você irá carregar o peso da perda para sempre.
— O que...?
— Você sofrerá muito pelas perdas na sua vida, e não há nada que possa fazer para evitar isso. Mas ele... Você ainda pode escolher. Quando o conhecer, quando o encontrar, fuja, não o ame... Salve ao menos uma vida.
— O que você quer dizer?
— É tarde demais para salvar a mim, ou a mamãe. — E Caliope caiu aos prantos.
Carlos pulou para a cama da irmã e a envolveu com um abraço. Os dois permaneceram assim por vários minutos, e ele, àquela altura, também chorava junto à sua irmã.
- Eu vou ficar do seu lado.
- Não... Não vai...
E de repente, um estrondo ensurdecedor ecoou no ar. Uma explosão atingiu toda a mansão, fazendo com que os corpos dos irmãos fossem lançados para longe. Carlos voou pela janela do quarto, rolando o corpo no ar junto aos escombros e bateu seu corpo violentamente pela grama sintética, o peito queimado, uma grossa barra de ferro atravessando-lhe o coração.
• • •
Amanhecia, Aiden despertou primeiro, e estava ao lado de Stalker, ambos com corpos nus. Ele acariciava a prótese metálica sobre o peito de Stalker, e ouvia atenta e carinhosamente o som metálico e agudo ecoando quase que inaudível pelo aposento. Em poucos minutos, Stalker despertou.
— Bom dia. — O ruivo sorriu.
— Bom dia. — Aiden forçou um sorriso como resposta, e Stalker percebeu aquilo.
— Você ainda não me perdoou, não é?
— Não é isso. — Aiden fechou o semblante, levantando-se da cama e vestindo uma cueca. — Eu já matei inocentes antes, é doloroso e triste, eu não lamento por isso...
— Mas...? — Stalker apoiou o corpo sobre o cotovelo, olhando diretamente para Aiden, que estava de costas para ele.
— Por que você mentiu? — Aiden virou-se, encarando o ruivo com tristeza.
— Eu... — Stalker não tinha respostas.
— Sinceridade é a senha, lembra? — Aiden continha as lágrimas — Por que você mente sempre? Por que não me diz a verdade e foge de mim? Por que foge disso? Eu te amo, e você a mim... Por que você não consegue ser sincero comigo?
— Eu não posso... — Stalker o encarou, tentando parecer o mais frio possível.
O ruivo se levantou e se vestiu, e Aiden observou aquilo em silêncio, encostado na parede do quarto. Quando Stalker saiu do aposento em passos rápidos e desajeitados, o asiático soltou um sorriso nervoso, mas queria, na verdade, afogar-se em lágrimas. Ele odiava sua terrível mania de rir quando sentia-se nervoso, e enquanto sorria, deixava lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Permaneceu assim por alguns minutos antes de secar as lágrimas e se vestir, colocando uma calça justa e rasgada nas coxas, botas de cano curto, ambos num tom vermelho escuro, e cobrindo o tronco com uma camiseta branca.
Aiden saiu do quarto. Ao virar para o corredor, encontrou Samantha, que usava um vestido preto de tecido leve, que ia até a altura dos joelhos e um par de botas de couro com vários spikes metálicos. Em volta dos ombros usava o cachecol vermelho. As manchas negras de sua mão estavam a mostra.
— Nêmesis me emprestou essa roupa, as minhas estavam imundas. — Ela sorriu timidamente e reparou no semblante abatido de Aiden: — Você está bem?
Aiden suspirou forte e a olhou com carinho e apreço, forçando um leve sorriso.
— Vai ficar tudo bem. — Essa frase tentava convencer mais a ele mesmo que a ela.
— O Corvo está nos convocando para a reunião. Vem comigo? — Samantha apoiou os dedos no braço do rapaz, tentando acalmá-lo.
— S... Sim... Claro.
Os dois caminhavam lado a lado, Aiden guiando Samantha pelos corredores do dormitório, que ficava no subsolo do forte. Seguiram para o lado de fora, em um semicírculo de bancos de madeira defronte uma fogueira já apagada, onde carvão e cinzas balançavam levemente com a brisa fraca daquela manhã.
Samantha sorriu som dos pássaros, o barulho dos galhos das árvores dançando lentamente, o ar fresco, o solo úmido abaixo dos seus pés, tudo aquilo a encantava de uma maneira tão intensa que a jovem conteve a emoção e as lágrimas.
No semicírculo, estavam Stalker e Nêmesis, além de outros dois super-atos; ao lado de Nêmesis, havia um rapaz que não devia ter mais de dezoito anos, era magro, pele morena pelo sol, o cabelo liso estava preso em um coque e ele tinha traços indígenas fortes. A segunda era uma mulher alta e magra, a pele dourada reluzia ao contato com os raios solares daquela manhã e o seu cabelo loiro estava preso por uma trança embutida, e ela tinha um olhar sereno e calmo. Ambos usavam roupas parecidas, um macacão de couro, bem justo ao corpo, sendo que o do rapaz era preto e o da mulher, um branco impecável. Nêmesis usava a mesma roupa do dia anterior.
Samantha e Aiden se sentaram ali ao lado deles, com o asiático de um lado e Stalker no extremo oposto — os dois sequer se olharam. Outros super-atos de diversas idades passavam por ali, cumprimentando-os e seguindo seus caminhos.
— O vestido ficou lindo em você. — A garota pálida demonstrou bastante simpatia — Conheça Lux, ela é bastante habilidosa em combate e tem como poder criar e projetar campos energéticos e escudos telecinéticos. Este ao meu lado é Ameno, seu poder consiste em alterar a potência dos poderes daqueles que o cercam, podendo inclusive desligá-los temporariamente.
— Prazer em conhecê-los. — Samantha sorriu para os dois, e eles a cumprimentaram amistosamente.
— O Corvo está vindo. — Nêmesis apontou com o nariz para a direção em que o homem vinha até eles.
Corvo usava naquela manhã um macacão semelhante aos dos demais, com detalhes em dourado e vermelho no peito, braços e joelhos. No rosto, usava uma máscara de ferro que cobria da testa ao nariz, imitando o formato da face da ave que ele carregava em seu nome. Ele parou de frente para o semicírculo formado pelo pequeno grupo de super-atos.
— Irei direto ao assunto... — Corvo iniciou a fala e os demais silenciaram-se, atentos ao que o homem tinha a dizer — Muito tempo atrás, quando eu sequer havia nascido, uma lenda surgiu do nada, a profecia de que um escolhido surgiria em Alexandria e libertaria os super-atos das correntes do Conselho. Viveríamos todos em harmonia e paz, sem mais censura, sem mais opressão.
"Há cinco anos, uma meta-humana clarividente teve uma visão, disse que o escolhido seria Ortiz, e a C.A.E.S. interpretou isso como sendo Charlie, o pai de Samantha. Assim que perceberam isso, eles fizeram com que o homem fosse incriminado, plantando provas falsas de que ele treinava e ajudava terroristas da Ômega. Com a morte de Charlie, eles acharam que o escolhido havia sido neutralizado, mas na verdade, a clarividente referia-se a filha, ou seja, a Samantha.
"A clarividente está presa dentro da sede da Ordem, onde o Conselho trabalha, e os C.A.E.S. protegem vinte e quatro horas. Enquanto essa clarividente sobreviver, a Resistência corre risco. Enquanto ela viver, irá interpretar os futuros possíveis e fazer o possível para impedir que a Escolhida traga a liberdade para nós."
Ele fez uma breve pausa. A tensão estava no ar, todos estavam atentos às palavras do Corvo.
— Convoquei-os para convidá-los à uma missão arriscada. Vocês devem matar a clarividente do Conselho, somente assim poderemos agir e restaurar a harmonia entre normatizas e super-atos. Vocês devem matar Caliope Paulson.
— O... O... quê...? — Stalker saltou de seu assento, encarando Corvo com terror em seus olhos.
O baixinho se levantou e, sem dizer nenhuma palavra, saiu dali aos passos apressados e desajeitados. Samantha encarou Aiden e quase que ao mesmo tempo, os dois se levantaram e correram ao encontro de Stalker.
O super-ato carregava uma expressão aterrorizada e andava cambaleante. Parou somente após sair dos portões do forte, encostando-se em uma árvore grossa. Ele tirou os óculos, cobriu os olhos com as duas mãos caindo aos pranto.
— Stalker... O que houve? — Samantha perguntou, ao aproximar-se dele.
Aiden segurou o braço da jovem e acenou para que ela parasse, ela obedeceu. O super-ato tomou a frente e se aproximou em passos lentos. Stalker, de joelhos bambos e aos prantos não olhava para eles, entregando-se as lágrimas sem parar.
— Stalker... —Aiden apoiou a mão carinhosamente no ombro do ruivo — Meu querido... — E ele o envolveu em um forte abraço.
Eles permaneceram assim por quase um minuto inteiro, e Samantha os olhava com curiosidade. Ela sentia um aperto forte em seu peito, era angústia por ver Stalker daquela forma, e, mesmo lutando para não acreditar naquilo, também era ciúmes por ver Aiden abraçando-o daquele jeito.
Aiden afastou seu corpo lentamente do de Stalker, colocou os dedos abaixo do queixo do companheiro, fazendo seus olhos se encontrarem. Stalker suspirou forte.
— Sinceridade é a senha. — Aiden sussurrou com calma e compreensão.
— Eu achei que ela estivesse morta... Caliope é minha irmã. Eles estão com ela.
— Sua irmã? — Samantha deu um passo em direção a eles, mas decidiu parar por ali.
— Há cinco anos, ela não tinha controle das visões, escrevia coisas aleatórias. Após prever um futuro sobre o fim de Alexandria, a C.A.E.S. lançou um míssil em minha casa. Sobrevivi apenas graça a esta prótese... Eu passei todo esse tempo acreditando que elas morreram. Mas... Cali está viva! Eles estão com ela!
Ele falava entre soluços e lágrimas, seu corpo estava mole, tremia da cabeça aos pés e sentia a garganta doer. Aiden, defronte a ele, puxou-o para si e o envolveu com um forte abraço.
Samantha processou lentamente aquelas informações, olhando para o nada. Repentinamente se virou de costas para os dois e, em passos rápidos e pesados, avançou de volta ao forte, parando em frente à Corvo. Ela o encarou com firmeza.
— Não mataremos ninguém. Nós iremos resgatar Caliope.
Fim do capítulo.
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