14 • Circular
Sirenes apitavam por todo o prédio do Conselho. As luzes piscavam sem parar. Vermelho e azul. Vermelho. Azul. Sem parar. O sistema de segurança foi acionado, os alarmes ecoavam e chamavam por todos os soldados, da Ordem e da C.A.E.S. para a entrada do prédio.
Vermelho. Azul. Preto. De mãos dadas, Samantha corria pelos corredores puxando Caliope consigo. As luzes piscando nos tetos, as duas atravessando parede atrás de parede. Entre tropeços e um tanto desajeitada, Caliope seguia os passos de Samantha como que se soubesse sobre todo o caminho percorrido, mas ainda assim, carregava um olhar vago.
— Você quer Samantha morta?
— Sim.
— O único jeito é deixando que ela me leve.
— Como assim?
Samantha parou em um largo corredor após subirem vários andares de escada. Ela sentia-se um pouco apreensiva, seus olhos arregalados expressavam toda a sua ansiedade, assim como o leve tremor em suas mãos. Vultos cortaram as paredes ao fim do corredor e Samantha empurrou Caliope para trás. A super-ata estranhava a ausência de guardas por todo o caminho, e aqueles vultos lhe assustaram.
— São eles. — Caliope sussurrou timidamente.
— Eles... — Samantha os viu.
O andróide na frente corria e guiando uma dezena de prisioneiros. Ao lado dele estava Aiden, e os olhos do asiático brilharam de contentamento ao cruzar com o olhar de Samantha. Caliope parou ao lado dela, e Samantha relaxou os ombros, aguardando a aproximação dos demais. Ela viu quando o andróide acelerou os passos em sua direção, e seu peito encheu-se de um sentimento estranho.
— Cali!
— Carlos...
O andróide envolveu a clarividente com um abraço, e Aiden parou ao lado deles, acenando timidamente para Samantha enquanto todos observavam o estranho encontro entre Caliope e o andróide controlado por Stalker.
— A única forma de Stalker vir até vocês é mostrando que eu ainda estou viva. Você precisa dar isso para ele.
— E então?
O andróide afastou-se e pareceu examinar cada detalhe do corpo pequeno e miúdo de Caliope. Seus olhos grandes e lacrimejados, as pequenas sardas ao lado do nariz arredondado, a pele negra escorrendo gotas de suor e manchando o tecido fino do uniforme de prisioneira. Cada detalhe parecia fazer importância para ele.
— Eu achei que estivesse...
— Morta. Eu sei.
Ela virou-se para Aiden e ele não pensou duas vezes, abraçando-a calorosamente também. Ele sorria e isso fez com que Samantha também sorrisse, observando com uma certa tranquilidade quando o rosto pequeno da garota se aproximava dos ombros de Aiden.
— É um prazer conhecer você.
— Me desculpe.
— Pelo que? — Aiden estranhou as primeiras palavras daquela garota.
— Por Carlos. Foi minha culpa. Eu tive que fazer...
Aiden a olhou com um misto de sentimentos, mas não conseguia acreditar que aquela garota de olhar inocente poderia carregar qualquer culpa pelo seu fracasso amoroso.
— Deixe Aiden vivo. Ele se importa com Samantha, o único que se importa de verdade. E isso será essencial para a ruína...
Aiden, ao lado de Samantha e Caliope, junto com o andróide e mais um grupo considerável de super-atos estavam ali naquele corredor de luzes piscantes.
— E agora? — Um prisioneiro perguntou-os.
— Há soldados na portaria. Eles aguardam a nossa saída. É a única por todo o prédio. — O andróide disse.
— É para lá que iremos. — Caliope disse.
— Você tem certeza?
— É o único caminho. — Ela parecia conter as lágrimas.
— Então preparem-se para lutar. — Aiden quem disse, com um sorriso motivador, antes de tomar a frente e recomeçar a correr em direção a saída.
E eles correram rapidamente. Samantha ao lado de Aiden, Caliope ao lado do andróide e os demais meta-humanos na retaguarda. Chegaram defronte a grande porta de vidro espelhado, não podiam ver o que os aguardavam lá fora, mas sabiam que enfrentariam algo grandioso.
— É o único caminho. Deixe que me levem para fora. Faça com que os soldados percam, não matem nenhum prisioneiro... Você vai deixar a mensagem clara para todos que não é possível enfrentar o Conselho.
Eles saíram. Samantha brilhou o corpo no mesmo instante em que atravessou a porta de vidro, e todo o corpo endureceu e ficou escuro como o céu sem estrelas daquela noite.
Não podiam contar a quantidade, nem sabiam mensurar de onde vinham ou onde todos estavam, mas centenas de armas miravam em direção ao grupo de fugitivos na saída do prédio. Samantha tomou a frente de todos, avançando contra um grupo de soldados da C.A.E.S., iniciando a batalha. Aiden avançou contra outro grupo, este menor, sua pele estava dura, como uma armadura natural contra qualquer projétil que o atingisse.
O andróide seguiu junto a um grupo de outros super-atos para atacar mais alguns soldados, enquanto outros dois permaneceram na entrada, protegendo Caliope e os incapazes de lutar.
Mesmo com a quantidade superior e a desvantagem numérica clara entre soldados e fugitivos, a luta parecia equilibrada. Soldados eram abatidos com certa facilidade, e Samantha sozinha e com poucos movimentos e golpes, conseguiu derrubar ao menos dez soldados. Aiden tinha mais dificuldade que ela, mas adquirindo poucos ferimentos, também derrubou meia dúzia de adversários.
Pouco a pouco, os soldados caíam inconscientes. Caminhões voadores cortaram os prédios reluzentes e brilhantes, trazendo mais soldados em suas caçambas. Apesar de parecer que ganhavam cada batalha travada, Samantha começou a preocupar-se com a exaustão, e enquanto chutava a face de um soldado e puxava a arma de outro para si, girou o corpo para trás, recuando alguns passos enquanto disparava aleatoriamente em direção aos caminhões.
— Recuar! — Ela gritou.
Aiden, que estava mais próximo de Samantha, estranhou a ordem dela, mas puxou duas semiautomáticas para si e recuou, ao lado dela, também disparando contra os caminhões.
Uma forte explosão ecoou, o fogo se espalhou no ar espalhou estilhaços voaram em diversas direções, dispersando a multidão dela soldados para lados diversos. Os fugitivos acataram a ordem de Samantha e começaram a voltar rapidamente para a entrada do prédio.
— Faça um cerco. Impeça-os de se mover. Aiden irá tomar a frente. Samantha tentará intervir. E então use a cartada final.
— Que seria?
— A mãe dela.
— E quanto a Stalker?
— Você o quer dentro do Conselho?
— Sim.
— A única forma de Carlos entrar no Conselho é fazendo com que a mãe de Samantha a mate, lá fora. Ele irá aparecer.
— Você tem certeza?
— Sim. — Caliope derramou uma lágrima. Daria soprou a fumaça de seu cigarro, retirou um lenço de seu bolso e secou o rosto da garota.
As portas da entrada do prédio, antes de vidro, agora eram grossas barras metálicas. Nem Samantha nem nenhum dos outros super-atos viu quando isso aconteceu, mas era impossível que retornassem para dentro para de recompor.
Samantha era a única que podia atravessar aquela porta, e não poderia levar mais do que outras duas pessoas. Ela sabia disso, Aiden também, e todos os outros pareceram entender o mesmo no mesmo instante. Eles estavam cercados, sem saída. Aiden ergueu as mãos e tomou a frente do grupo.
— Parem! — Ele gritou.
— O que? Aiden... Não! -—Samantha virou-se para ele, a preocupação estava escancarada em seu olhar, mas Caliope a puxou pelo braço e olhou para ela calmamente. Samantha respirou fundo, tentando entender o sentido daquilo tudo.
— Não queremos mais mortes. Queremos apenas liberdade.
— A troco de que?
Uma voz feminina ecoou entre os soldados, que agora cercavam o grupo impedindo qualquer fuga.
— Qual crime Caliope cometeu? Por que a mantém como refém por todos esses anos?
— Ela não é prisioneira. Ela é funcionaria do Conselho. Seus poderes são essenciais para a ordem e o controle de Alexandria.
— Funcionária? Com uniforme de prisioneira? — Aiden riu de nervosismo.
Uma gargalhada ecoou por entre os soldados. E a dona da risada caminhou lentamente, passando pelos homens armados e tomando a frente deles. Alta, usando um vestido de couro sintético preto e com o cabelo preso e um coque alto. Ela parou a metros de Aiden, o encarou e fechou o seu semblante.
— Não importa o que acontece aqui, você vai morrer hoje.
— Mãe? — Samantha encarava a mulher, completamente pálida e surpresa. Ela puxou Aiden para trás e parou defronte aquela mulher. Sua mãe, Fiona Ortiz.
— Sombra. Olha o que você fez... — Ela encarou a garota com desprezo.
— Eu...
— Você fugiu de mim... Juntou-se com aqueles que destruíram a nossa família. Nunca sequer me procurou...
— Eu procurei... Mas...
Samantha não tinha palavras. Ela lembrava-se de todas as vezes que ficou parada do outro lado da rua de sua casa, tomando coragem para procurar por sua mãe, abraçá-la e dizer que sentia saudades, e de sempre desistir e desaparecer. O sentimento de impotência que sua mãe fazia ela sentir a dominou por completo, e Samantha não fazia outra coisa senão olhar para aquela mulher, paralisada e incrédula.
— Você matou... tantas pessoas... Para que?
— Eu não-
— Eu não terminei. — Ela gritou, calando a filha — Eu sabia! Desde sempre... Sabia que você era um risco para toda Alexandria, assim como seu pai era...
— Meu pai era um herói! Ele salvava vidas. Trabalhava para o Conselho!
— Mentira! — Fiona gritou.
Samantha se calou, olhando-a intimidada e assustada, como todas as vezes quando era criança que tentava se expressar e Fiona a silenciava.
— O Conselho armou para o papai... Ele nunca fez nada errado. Agora eu sei!
— Não, Samantha. O Conselho não armou nada. Eu armei.
Naquele instante, o anel pesado que Fiona carregava no dedo do meio esticou-se e formou uma adaga fina e afiada. Ela cravou a lâmina entre o peito de Samantha.
Um grito, uma lágrima, e as luzes vermelhas piscando. Aiden arregalou os olhos desesperado ao ver Samantha cair no chão, com o sangue espirrando de seu peito e manchando o rosto de Fiona Ortiz de vermelho.
— Fiona irá matar a filha. E tudo vai acabar. Tudo. — Caliope repetia essas palavras sem parar, num sussurro tímido.
— O que você fez? — Aiden gritou, chorando enquanto corria, caindo de joelhos pelo asfalto frio e abraçando o corpo de Samantha.
Naquele instante, todas as luzes de toda Alexandria se apagaram. O breu total. Ninguém era capaz de ver além do próprio nariz.
No segundo seguinte, tudo ligou de repente. Todos os televisores, celulares, próteses de vídeo, os outdoors de Led e hologramas de propaganda. Tudo de toda a Alexandria, sincronizados em um mesmo canal. E todas as pessoas daquela cidade assistiram, instantaneamente, a mesma coisa.
Primeiro, a câmera interna de segurança da casa dos Ortiz, gravação ultra secreta sobre os domínios do Conselho, mostrando a invasão na casa dos Ortiz na noite em que iriam prendê-lo. E todos viram Fiona esfaquear o marido. A câmera focava nele, morto.
Um corte lento. Outra gravação, mostrando Daria e Corvo conversando.
— Eu aceito me submeter as ordens de Alexandria em troca de limpar toda a minha ficha e a de meus companheiros. — Corvo dizia.
— Quero a vida da escolhida. — Daria respondeu.
— Se me der a vida da clarividente.
— Fechado. Elas estarão mortas pelo bem da ordem da Metrópole.
E o Corvo desaparecia em um piscar de olhos. A câmera focava em Daria, fazendo uma ligação.
— A Resistência irá se dissipar e voltaremos a ter controle pleno por toda a Alexandria. Já temos os Ômega ao nosso domínio, aliados dignos e cegos, capazes de fazer qualquer coisa que mandarmos, e agora teremos a Resistência dos eratos. Também teremos Stalker na nossa mão.
A cena mudou para Daria e Oliver conversando na sala de reuniões do Conselho.
— Então a sua ideia é matar a clarividente em troca do erato tecnopata?
— Todos os cantos da cidade tem ao menos uma máquina. Com ele, teremos controle instantâneo de todas as pessoas de Alexandria e das demais Metrópoles também! Iremos saber de qualquer rebelião antes mesmo de acontecer com o poder dele.
— Mas não já sabemos isso com Caliope?
— O poder dela é muito aleatório. Para focar em algo ela demanda muita energia, e só foca neste algo. Com o irmão dela, teremos acesso instantaneamente a tudo!
Mais um corte. Desta vez, mostrando a tortura sofrida por Aiden e Samantha.
— Diga onde Stalker está! Agora!
— Eu não sei!
— Mentirosa!
— Pare! Ela não sabe!
— Olha o que você me fez fazer!
A explosão no galpão. Diversas imagens e gravações dos mortos. Crianças, adultos, homens e mulheres normatizas e super-atos.
E a última cena — o grand finale repetindo o assassinato de Samantha. "O Conselho armou tudo. O Conselho tem controle de tudo. Controle de todas as vidas. Eles são capazes de tirar cada vida sem remorso. Eles controlam quem vive e quem morre. A liberdade que os super-atos almejam é a liberdade que cada homem e mulher de Alexandria também almeja. Você irá permitir?" O texto mantinha-se em todas as projeções por toda a cidade.
• • •
O ponto de partida para qualquer revolução é a crise. A crise escancarada em cada face sofrida. Ver a crise só é possível quando ela choca, e nada é mais chocante que o sofrimento. O sofrimento de alguém que perde outro alguém.
Aiden, abraçando um corpo morto de frente ao Conselho, cercado por soldados que não fizeram nada para impedir aquele ato cruel, era sofrimento suficiente para despertar a indignação de cada habitante de Alexandria, super-ato ou não, dos mais pobres aos mais ricos.
Os gritos de Aiden foram silenciados pelos gritos de protestos de centenas de pessoas, que em poucos minutos tornou-se milhares, e poucas horas mais, milhões.
Samantha era a Escolhida. Não mudaria Alexandria em vida, mas com sua morte. A história dela chegava ao fim com um suspiro quase que inaudível, mas a história da revolução iniciava com o grito sofrido de Aiden, seguido pelo grito raivoso de toda uma multidão.
A história de Alexandria mudaria a partir daquele instante. Para sempre.
Fim do capítulo.
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