Capítulo 8
Passava das seis da tarde de sábado quando Marcos chegou em casa, exausto e desejando apenas o descanso merecido após uma longa viagem. Não sabia se seus trinta e três anos começavam a pesar ou se seu novo estilo de vida, mais ligado à família, havia tornado viagens como aquelas menos divertidas do que costumavam ser no passado. Ainda amava o que fazia, mas se antes não se importava em voltar por não haver nada lhe esperando, agora, em poucos dias a saudade de casa começava a apertar.
Querendo fazer uma surpresa, entrou sem fazer barulho. No Home Theater tocava "Hoje a noite não tem luar", da Legião Urbana, e Ângela cantava alto, fazendo sua voz se sobressair à música:
Hoje a noite não tem luar
E eu estou sem ele
Já não sei onde procurar
Onde está meu amor...
― Aqui! ― Marcos disse bem alto e esperou que ela surgisse correndo como sempre fazia quando chegava de viagem. Ela não o decepcionou: correu em sua direção e se atirou em seus braços cansados. Ele não protestou; ao contrário, agarrou a esposa e a beijou com vontade.
― Meu Deus! Como eu senti a sua falta! ― declarou quando conseguiu tomar fôlego e a beijou novamente, tentando absorver tudo dela ao mesmo tempo: o gosto, o cheiro, o sorriso, e a suavidade de seus cabelos.
― Também senti a sua ― Ângela respondeu com a voz rouca e o apertou ainda mais, aninhando-se em seu peito. Levou algum tempo até eles conseguirem acalmar seus corações acelerados e, enfim, se desgrudarem. Marcos foi até a cozinha pegar uma cerveja e enquanto fazia isso, traçava planos para a noite como brincar com o filho, relaxar, fazer amor com a esposa e adormecer abraçado a ela. Ao bater a porta da geladeira, tinha um sorriso no rosto que se desfez ao perceber que Ângela o encarava com uma expressão estranha e culpada.
― Tem algo a me dizer? ― perguntou, encostando o quadril no balcão sem perder o contato visual com ela.
― É que... Bem... ― Ângela gaguejou, temendo deixá-lo zangado como sabia que ele ficaria. Disse a si mesma que não tinha culpa e, para terminar logo com aquilo, falou de uma vez: ― É-QUE-O-SEU-PAI-NOS-CONVIDOU-PARA-A-FESTA-DE-TRINTA-E-CINCO-ANOS-DA-EMPRESA-DELE-E-EU-DISSE-QUE-IRÍAMOS.
Marcos respirou fundo e observou sua noite murchar. Estava realmente cansado e sem energias para mais um daqueles encontros de família.
― Deixe-me adivinhar: a festa é hoje?
Ângela afirmou com a cabeça, mordendo os lábios e analisando quão bravo ele deveria estar.
― Sem chance. Eu não vou!
― Amor, por favor. Não precisamos ficar até o final. Podemos ficar só um pouco e voltar para casa. ― Marcos suspirou e Ângela viu naquilo um estímulo para continuar: ― Olha, eu também não queria ir, mas ele me pediu com tanto carinho que eu não tive como dizer não.
― Não deve ser tão difícil. Você vive dizendo não para mim ― rebateu. Ângela sabia que ele procurava briga, mas estava decidida a não cair na dele.
― Só quando você me enche a paciência ou pede algo que eu não quero fazer.
― Mas para me obrigar a fazer algo que EU não quero fazer, você diz sim.
― Que saco, Marcos! ― Ela elevou a voz. Ainda não estava brava, mas aquilo sempre funcionava com ele. Tratava-se da velha psicologia reversa: mostrar-se zangada para amansá-lo. ― Se pelo menos você tivesse ido a um único jantar com a família...
― Eu estava trabalhando ― ele respondeu pausadamente, como quem fala com uma criança. Ângela percebeu que teria que apelar e foi o que fez:
― Nós dois sabemos que você não faz muita questão de estar perto do seu pai, esteja trabalhando ou não. Sua mãe está fazendo o esforço aceitando Ricardo, o filho da outra, na sua vida. Seu pai e Ricardo também têm se empenhado, só falta você...
― Está bem, eu vou. Só assim você vai parar de falar na minha cabeça! — Marcos explodiu. Ângela apertou os olhos para ele, mas não disse nada. O que importava era ter conseguido convencê-lo a ir.
Na banheira da suíte dos pais, Vítor fazia um patinho lutar com um elefante de borracha. Quando viu o pai, gritou de alegria, e Marcos não se importou em molhar a roupa ao pegá-lo no colo. Estava com tanta saudade que sua vontade era não soltá-lo nunca mais. Vítor o abraçou, e como não conseguia ficar parado por muito tempo desceu e disparou correndo, completamente nu, para contar à mãe que o pai havia voltado.
Ângela vestiu o filho com uma camisa branca de botões azuis, calça jeans e um par de tênis com luzes na sola que Marcos apelidara de pisca-pisca. Passou o perfume que o deixava ainda mais cheiroso e penteou seu cabelo com gel, torcendo para ele ao menos chegar limpo na festa. Depois de conferir o resultado e constatar que ele estava lindo, ligou um desenho animado para ele na sala e foi para o closet se arrumar.
O vestido escolhido foi um longo azul-marinho de cetim com alças finas que era discreto e ao mesmo tempo elegante. Sua escolha tinha tudo a ver com Vítor, ficar bonita era apenas um bônus. Para começar, a cor escura disfarçaria melhor qualquer líquido que acidentalmente fosse derramado em seu corpo; as alças lhe garantiriam sustentação caso uma pequena mão tivesse a brilhante ideia de puxar o seu decote; e a fenda média na perna possibilitava que se movesse com agilidade caso precisasse correr atrás de alguém que, apesar de suas pernas curtas, parecia um maratonista.
Marcos saiu do banho pouco tempo depois e não falou com a esposa até eles saírem, o que a incomodou muito. Eles foram para a Essence sem conversar, e enquanto a raiva dele diminuía, a dela aumentava; isso porque odiava ser desprezada por ele e odiava ainda mais aquele joguinho de quem iria ceder primeiro, porque ele raramente dava o braço a torcer, independente de estar certo ou errado.
Para piorar a situação, Ângela constatou, muito a contragosto, que não havia outra criança naquela festa além de Vítor.
Como se precisássemos ficar ainda mais em evidência, refletiu, caminhando tensa até a mesa onde a família os aguardava. Assim que os viu, Felipe abriu um imenso sorriso, e apesar de ela querer ficar furiosa com ele também, por ter provocado toda aquela situação, não conseguiu. Ele era apenas um pai que queria o filho por perto, não podia amaldiçoá-lo por isso.
― Filho, que bom que você veio! ― Felipe abraçou Marcos com um brilho nos olhos que fez o jornalista se sentir mal por ter brigado para estar ali.
― É bom te ver também, pai ― arriscou, arrancando do outro um sorriso ainda mais satisfatório. Olhou na direção de Ângela, notando que ela o fuzilava com o olhar, e deu de ombros enquanto ela virava o rosto na outra direção.
Após os cumprimentos, Felipe pegou o neto no colo e levou os filhos para circularem com ele entre seus amigos, parceiros comerciais e colaboradores.
Ângela ficou com a sogra e logo se viu cercada por um grupo de mulheres ricas e elegantes que eram esposas dos diretores e principais fornecedores da empresa. Elas olhavam com interesse e admiração para seu marido bonito e famoso, e lhe perguntavam de forma indireta como era estar casada com ele. Muitas das funcionárias que estavam sentadas também o comiam com os olhos, e algumas até tiravam fotos dele e de Ricardo discretamente com o celular.
Acostumada ao efeito que Marcos causava nas mulheres, Ângela normalmente não se importava com o assédio. Seu marido era uma figura pública, além de um homem sexy e inteligente; portanto, era normal que elas ficassem encantadas. Naquela noite era diferente, porque estava com raiva pela briga, com saudade, e desejando muito ficar a sós com ele para colocarem as conversas em dia. Queria contar sobre o novo emprego e ouvir sobre suas reportagens. Talvez por isso, enquanto as mulheres do salão o admiravam como se ele fosse uma espécie de deus grego, ressaltando suas qualidades, tudo em que conseguia pensar era em seus defeitos. Podia até listar um começo:
· Bonito demais. Sei, isso é uma qualidade, mas também pode ser um defeito. Especialmente quando a mulherada cai matando sem nem disfarçar e ainda me olham como se eu fosse uma extraterrestre por tê-lo conquistado.
· Teimoso ao extremo.
· Irritante e explosivo.
· Larga a roupa e os sapatos em qualquer lugar da casa. É organizado apenas com suas coisas de trabalho.
· Meio egoísta às vezes. Quando quer, só pensa nas suas necessidades.
· Como qualquer outro homem, arrota, faz porcarias e fala muito palavrão durante os jogos de futebol.
· Odeia trocar fraldas e foge disso o tempo todo.
· Competitivo ao extremo. Já estou cansada de ouvir o nome do tal Paulo Miranda.
· Não respeita quando eu quero ficar quieta no meu canto e fica me perguntando o que eu tenho, mesmo que seja apenas TPM... Mas quando é ele quem está com algum problema, não posso nem perguntar o que aconteceu que já levo coices.
· É muito fechado, especialmente no que diz respeito a seu pai e sua relação com ele.
O ponto, pensou, era que a adoração das mulheres por Marcos não era diferente da que nutriam por celebridades como Brad Pitt, David Beckham ou George Clooney. Tudo não passava de uma atração superficial, uma vez que elas não o conheciam a fundo para amá-lo por completo com suas qualidades e defeitos.
Ela conhecia. E o amava completamente
***
Na roda dos executivos, Marcos não estava sendo tão popular quanto na de suas esposas. Havia uma discussão entre os membros da diretoria a respeito do futuro da empresa. A questão era partir para o mercado popular, criando produtos para as classes C e D, ou continuar investindo em produtos para as classes com quem já estavam acostumados, A e B. As duas direções apresentavam vantagens e desvantagens.
― Tenho medo de transformar a empresa que levei trinta e cinco anos para construir em uma liquidação barata, ou de investir em um mercado já saturado de produtos ― disse Felipe, sem grandes argumentos. Aquele pensamento era claro e revelava em poucas palavras sua opinião sobre o assunto.
Daniel Dantas, ou Dantas, como era chamado por todos, era diretor de vendas da Essence há quinze anos e não concordava com aquela posição. Estufou o peito para parecer mais alto e menos barrigudo, e defendeu seu ponto de vista:
― Em nossos estudos, descobrimos que as classes C e D atualmente detém maior poder aquisitivo que as classes A e B. São milhões de pessoas que merecem ter acesso aos nossos produtos. Concorda comigo, Ricardo?
Marcos olhou para o meio-irmão, que concordava meio sem jeito, reforçando o argumento de Dantas, e percebeu que eles eram amigos, talvez até aliados. Encarou o baixinho roliço à sua frente e sentiu uma onda de irritação irradiar pelo seu corpo.
― Mas as classes C e D estão ficando mais exigentes também — disse Ricardo. — Será preciso, se a empresa decidir seguir por esse caminho, desenvolver produtos de qualidade e com valor acessível.
Marcos olhou novamente para o meio-irmão e murmurou par si mesmo, sem que ninguém ouvisse:
― Sai logo de cima do muro...
― Mas você concorda comigo que é possível e que vale a pena investir nesse mercado? ― pressionou Dantas, e Marcos sentiu uma vontade irracional de socá-lo no rosto rechonchudo.
― Sim. É o que eu faria ― anunciou Ricardo, fechando a sua posição.
Dantas pareceu satisfeito. Felipe também. Assim que liberou Vítor para correr pelo lugar, virou-se para Marcos.
― E você, filho, falando como alguém de fora, que caminho acha que eu devo tomar?
Sutileza não era exatamente o ponto forte de Marcos, assim sendo, ele foi direto ao ponto. Enquanto respondia à pergunta do pai, encarava Dantas:
― A empresa é sua, siga o caminho que você quiser.
Ricardo tossiu, alguns homens arregalaram os olhos, Dantas grunhiu, e Felipe ficou sem jeito.
― Infelizmente, não é assim que as coisas funcionam ― respondeu o empresário com um sorriso forçado, tentando contornar a situação.
― Além disso ― interrompeu Dantas, sendo o tipo de sujeito que odeia ficar por baixo ―, imagino que você, sendo jornalista, não esteja apto a falar de negócios.
― É verdade, mas eu sei que meu pai não construiu essa empresa ouvindo conselhos dos outros, e sim, seguindo os seus instintos. E se ele acha que deve manter a empresa como sempre foi, é assim que deve ser.
Felipe não disse nada, mas pareceu orgulhoso porque, pela primeira vez em muitos anos, Marcos o defendia como um filho devia defender o pai.
Dantas bufou e preparou-se para o contra-ataque. Porém, Marcos foi mais rápido:
― Agora que já lembrei aos senhores quem manda aqui, vou dizer a minha posição: O mercado das classes C e D está saturado. Há muita demanda, é verdade, mas também há empresas maiores e mais bem preparadas que esta para atender essas pessoas. É difícil bater o preço delas com um produto de qualidade superior. Eu não entendo muito de negócios, é verdade, mas entendo de mercado. Acreditem ou não, não passo os meus dias apenas no jornal ou em lugares exóticos, também vou muito à periferia. Conheço as pessoas mais simples e, inclusive, até me casei com uma delas. ― Apontou para Ângela, que tentava disfarçar o olhar entediado para as esposas dos homens com quem ele conversava. ― Elas não querem apenas um bom preço, querem preço aliado à qualidade. As classes A e B se importam mais com qualidade, o que dá a vocês liberdade para criar produtos diferenciados e de destaque.
Os homens em volta encararam o jornalista com mais respeito que antes, e a vermelhidão no rosto de Dantas indicava que Marcos acabara de fazer um inimigo. Não seria o primeiro nem o último que o odiaria por lhe dizer umas verdades, e sentia-se muito bem por tê-lo colocado em seu devido lugar.
Felipe sorriu e deu dois tapinhas nas costas de seu primogênito.
― Bom argumento, filho! Outra hora continuamos com essa discussão, senhores. Vamos, meninos, tem alguém que quero que conheçam.
Marcos e Ricardo acenaram para os homens e saíram atrás do pai.
— Você é bem direto — disse Ricardo, e desabafou: — Gostaria de ser assim.
Marcos sorriu com os cantos dos lábios.
— Essa é uma das minhas grandes qualidades. Ou defeitos. Depende do momento. Você pode treinar ser mais direto, mas é difícil quando não se tem isso intrínseco em sua personalidade. Herdei essa característica da minha mãe. Já essa coisa de seguir os instintos, herdei dele. — Apontou para as costas de Felipe e voltou a olhar para o irmão. — Você parece um cara sensato, essa é uma qualidade que me falta às vezes.
— Bem, devo dizer que também tenho sido assim desde sempre e que herdei essa característica da minha mãe. Ela era bastante sensata, exceto nas questões afetivas. — Também apontou para as costas de Felipe, que ouvia discretamente a conversa deles. Marcos apenas assentiu e eles não disseram mais nada. Perceberam, no entanto, que a empatia de um para com o outro vinha gradativamente aumentando.
Na roda das mulheres, Ângela havia relaxado e finalmente se divertia com a conversa que naquele momento se alternava entre viagens, filhos, livros, sapatos, música... Ela falava sobre o que entendia, ouvia calada sobre o que não entendia, e se empolgava com os relatos de viagens a lugares que sonhava em conhecer. Marcos dizia sempre que a levaria para conhecer o mundo, mas se ele demorara cinco anos para apresentá-la a São Paulo, teria que esperar sentada para ver o restante.
Quando percebeu que Vítor não estava com o pai ou o avô, pediu licença às outras e começou a procurá-lo. Vasculhou todo o ambiente e foi encontrá-lo embaixo da toalha da mesa onde estava o bolo. Ao abaixar-se para falar com ele, foi surpreendida por um abraço carinhoso e melado, percebendo tarde demais que tanto as mãos, quanto as roupas dele, estavam cobertas de glacê.
― Vítor, olha o que você fez! Sujou a mamãe ― reclamou aborrecida, apoiando os joelhos no chão. E enquanto observava os estragos da única coisa que não previra ao escolher o vestido, pois o branco do glacê contrastava com o azul-marinho brilhante do cetim, Vítor havia reabastecido a mão com o confeito e sujava toda a região do seu peito e barriga. Olhou para ele, para si mesma, e quis morrer. Quis virar um avestruz para enfiar a cabeça em um buraco e nunca mais tirá-la de lá, e como não podia, empurrou o bolo danificado para longe do alcance dele e pensava em uma forma de limpá-los quando Felipe foi anunciado ao microfone. Observou o sogro caminhar até o palco, e prevendo que em algum momento seria chamada lá, enfiou-se de uma vez embaixo da mesa com o filho e desejou que ninguém se lembrasse deles até a festa acabar...
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