Capítulo 30
À medida que o momento do parto se aproximava, Ângela ficava mais desconfortável e pesada. No fim do dia suas pernas inchavam e ela já não conseguia se abaixar sem sentir um terrível incomodo. Pelos cálculos do médico ainda faltavam duas ou três semanas para o bebê nascer, mas como já estava na época do nascimento, a qualquer momento poderia ser a hora.
O relacionamento deles havia voltado ao normal, e ninguém voltou a mencionar aquele beijo, embora ambos se lembrassem dele com frequência.
A proximidade do parto também fazia com que os traumas de Ângela a atormentassem. Ela temia o parto e as possíveis complicações que pudessem ocorrer nele.
Certa noite, no início de agosto, ela teve um pesadelo. No sonho, perdia o bebê e Marcos ia embora, deixando-a sozinha. Acordou com lágrimas nos olhos e, sobressaltada, foi ao quarto dele. Ele lia, recostado em sua cama quando ela apareceu na porta.
— Oi — disse ela, forçando a voz a parecer normal.
— Oi — ele respondeu, fechando o livro sobre bebês que havia comprado no domingo. — Tudo bem?
Ela hesitou por um momento e respondeu que sim. Marcos notou que ela estava estranha.
— O que foi? — perguntou preocupado. Ela estava na penumbra e não tinha como ele ver o seu rosto. — Aconteceu alguma coisa?
— Não... quer dizer... foi só um pesadelo idiota.
Marcos afastou o edredom, se sentou e a chamou: — Vem cá, senta aqui comigo.
Ela estava angustiada demais para ir a qualquer outro lugar, então obedeceu e se sentou. Marcos ficou feliz por poder ver o rosto dela e constatou que ela estava assustada.
— Me conta como foi — pediu ele, segurando a mão dela. Ângela contou quase todo o sonho, menos a parte em que ele a deixava. Marcos a abraçou, puxando-a de encontro ao seu peito.
— Está tudo bem, foi só um sonho. Nada vai dar errado, eu prometo.
— Você deve me achar patética. — Ela sentiu o aroma suave da pele dele por baixo do algodão da camisa e fechou os olhos. Precisava muito daquele abraço, e precisava dele.
— Não, eu acho você forte — ele respondeu.
Levou alguns segundos para que ela tornasse a falar.
— Eu tenho tanto medo que alguma coisa dê errado — desabafou, tão tensa que tinha dificuldades para respirar.
— Por quê? — Marcos perguntou, acariciando seu cabelo.
— Porque já aconteceu — ela respondeu, buscando forças para falar. — Eu tinha quinze anos e estava no quarto de costuras com a minha mãe. A gente estava enchendo ursos de pelúcia com algodão e ouvindo música. De repente ela gritou, levou as duas mãos à cabeça, e caiu. Ela morreu nos meus braços, antes de chegar ao hospital.
Marcos a apertou mais forte e deixou que ela continuasse.
— Outra vez eu havia planejado uma viagem com o Eduardo, e na véspera, enquanto resolvia algumas coisas na rua, meu pai caiu no banheiro e quase morreu.
— Eu sinto muito — disse ele.
— Só com ele eu tive vários sustos. Desde que eu tinha quinze anos, ele enfartou duas vezes, a primeira quando minha mãe ainda era viva. Depois ele teve um derrame. Durante dez anos eu convivi com o medo de perdê-lo. Todas as noites eu acordava assustada e ia conferir se ele estava respirando. Chegaram a me dizer que não era normal a minha preocupação com ele e que eu era maluca. Mas só eu sei como me sentia.
— E o seu medo a faz pensar que pode perder de novo — ele afirmou.
— Isso. Num momento você está bem e no outro, tudo acabou. Toda a vida que você conhecia foi tirada de você e só ficaram as lembranças, que nada mais são do que cicatrizes que nos marcam para sempre.
— Eu entendo — ele disse com pesar, o pensamento em suas próprias cicatrizes. — Mas tente ver pelo lado bom. Seus pais morreram se amando e amando você. Eu também perdi a minha família, mas de uma forma diferente. Eu era pequeno, mas me lembro bem. Vi a minha família desmoronar, a infelicidade da minha mãe, a arrogância do meu pai e as brigas, a guerra psicológica entre eles. Vi minha mãe chorar por ter descoberto que meu pai tinha outra família e outro filho. Desde então, nunca mais falei com ele. Já havia superado tudo isso até você aparecer grávida. De repente foi como se o tempo tivesse voltado; eu fico pensando em tudo o que aconteceu e remoendo o passado.
Ângela desencostou-se do peito dele e o encarou.
— Você já considerou a hipótese de perdoá-lo? — perguntou, tão concentrada nos problemas dele que havia se esquecido dos seus.
— Sim, mas não consigo.
— Sente saudades dele?
Marcos se mexeu com desconforto.
— Sinto falta do que poderia ter sido.
— Você ama muito o seu pai — ela afirmou, e ele franziu as sobrancelhas.
— Desde quando você sabe o que eu sinto?
— Desde o dia em que te conheci. Seus olhos brilharam ao me falar do Fusca no campo, e em seguida deixaram transparecer a mágoa que sente quando mencionou o seu pai.
Ele não confirmou nem negou, apenas continuou olhando para ela.
— Posso te dizer uma coisa? — Ângela pediu. Marcos deu de ombros, incomodado com a cilada que armara para si mesmo ao falar de seus problemas para ajudá-la com os dela. — Talvez você devesse dar uma chance a ele. Na época em que tudo aconteceu você era pequeno. Agora já é um homem, com mais experiência de vida para tentar compreender o que se passou entre os seus pais. Isso não justifica o que ele fez, mas talvez, se der uma chance a ele, você consiga perdoá-lo.
— Isso está fora de cogitação — ele respondeu contrariado.
— O que você passou, de certa forma, é pior do que eu passei. Eu sempre terei a certeza de ter sido amada, enquanto você foi ferido pelas pessoas mais próximas a você. O problema é que, por mais amor que eu tenha, ele está alojado em meu peito para sempre, porque as pessoas para quem ele era destinado se foram. Você ainda tem chance de dar e receber este amor. Somente quem perdeu alguém da forma como eu perdi, para a morte, sabe a importância de um abraço e o valor de um momento. Eu daria tudo para poder abraçar meu pai de novo e não posso, mas você pode. Alimentar essa mágoa não te faz bem. Por outro lado, se der uma nova chance a ele, talvez descubra que a relação de vocês não morreu. Pense no que eu disse, e se um dia estiver pronto, faça aquilo que eu não posso mais fazer e abrace o seu pai.
— Eu não sei se posso — ele disse com sinceridade.
— Eu sei que deve ser difícil, mas certa vez você me disse algo parecido que me ajudou muito.
— O que eu disse exatamente? — ele perguntou com a voz baixa, o rosto ainda tenso.
— Você me disse para aproveitar os momentos ao lado do meu pai e me aproximar dele sendo eu mesma e deixando-o fazer seu papel de pai. Funcionou para mim e acredito que funcionará para você também. Pergunte a si mesmo como irá se sentir se amanhã ou depois seu pai morrer sem que tenha dado uma chance a ele. Se a pergunta te incomodar é porque você o ama, e no fundo sente que deve abrir o coração.
Marcos não respondeu. Seu peito doía e queria mudar de assunto. Nunca fora confrontado daquela forma e nem obrigado a enxergar as coisas por um novo prisma até aquele momento. Ângela olhava para ele, e percebendo sua dor, quis abraçá-lo como ele fez com ela, mas se conteve. Havia aprendido que Marcos ficava acuado quando a emoção era demais e repelia qualquer gesto de carinho naquele momento.
Os olhos deles se encontraram e permaneceram ligados por um tempo. Ambos estavam machucados, confusos e só tinham um ao outro para ajudar a superar suas dores, tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes. Enquanto o divórcio complicado dos pais de Marcos ajudava Ângela a se conformar com sua perda, levando em conta ter sido criada em um lar estável e repleto de amor, a morte dos pais dela fazia com que ele refletisse e o estimulavam a acertar as contas com o passado.
Ângela entendeu no desabafo de Marcos o motivo de ele ser avesso a qualquer compromisso afetivo. Tinha a ver com sua perda e também com seu caráter. Marcos não desejava ter uma família para destruir tudo. Ele não sabia, mas isso demonstrava o quanto era responsável e digno de ser amado.
Talvez ele nunca consiga abrir o coração...
Talvez eu também não...
— Quando foi que você virou psicóloga? — Ele perguntou. Embora incomodado, admitia que ela exercia uma influência forte e positiva sobre ele.
— Eu só achei que você merecia ouvir algo diferente do que ouve de si mesmo todos os dias.
— Muito bem. Só não faça de novo, ou serei obrigado a bater em você. — Ele sorriu, e ela sorriu também, tocando em seu peito molhado de lágrimas. — Melhor eu trocar isso, senão vou ficar resfriado — brincou, tirando a camiseta.
Ângela olhou para ele e prendeu a respiração. Fazia mais de um mês que eles moravam juntos, mas ela ainda não tinha aprendido a não se impactar com ele. Ele vestiu outra camiseta e olhou para ela, que piscou algumas vezes e disfarçou.
Marcos a convidou para se recostar com ele na cama a fim de lerem juntos. Alguns segundos depois ela estava debaixo do edredom, com a cabeça apoiada no ombro dele, enquanto ele abria um capítulo que falava sobre os tipos de choro dos bebês.
— Esse é muito legal — comentou. — Diz aqui que há vários tipos de choro. Tem o choro de fome, o de sono, o de dor, de xixi, de cocô... Interessante, porque para mim choro é choro, e choro de criança me deixa maluco.
Ângela sorriu e passou o braço pelo seu abdômen enquanto ele começava a ler. Algum tempo depois, quando já estava prestes a dormir, o chamou:
— Marcos!
— Sim? — Ele parou de ler e olhou para ela.
— No sonho... Você me abandonava.
— Como assim?
— Eu tinha perdido o bebê, e como você só estava comigo por causa dele...
— Isso nunca vai acontecer — disse ele, sentindo-se tocado pela fragilidade dela.
— Você promete?
— Eu prometo.
Marcos continuou a ler. Quando ela adormeceu, saiu delicadamente da cama, acomodou-a nos travesseiros e apagou a luz.
Andando pela sala, pensava na conversa que tiveram. Ângela estava certa, ele precisava romper aquela barreira e tentar perdoar o pai. No momento, porém, só conseguia pensar em cuidar do filho, que estava a caminho, e dela. Seus problemas, barreiras e confusões emocionais podiam esperar, pois havia alguém prestes a chegar que precisaria dele, e para quem daria todo o seu amor.
Namadrugada seguinte a bolsa de Ângela estourou...
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Lembram o que eu disse sobre amar todos os capítulos? Então, eu amo todos, mas alguns se sobressaem e esse é um deles. Gosto muito de como a Ângela e o Marcos abrem seus corações e percebem que cada um sofreu de uma forma diferente, e que ambos estão ali para ajudar o outro de alguma forma.
Eu shipo muito esses dois. E vocês?
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