04. Reflexo
"Às vezes é melhor não ter todas as respostas."
— C. J. Tudor, O Homem de Giz
— E AGORA, NOSSO HORÓSCOPO SEMANAL! — a voz do locutor da Rádio Comunitária de Corbeauford dizia — Áries: tenha cuidado com a cor azul, ela poderá lhe trazer sorte, mas também poderá ser a razão de sua morte. Touro: é uma boa época para fazer novos investimentos, na área financeira, em você, ou nas crianças estranhas que vagam pelas ruas à noite!
— Gêmeos: fuja, fuja agora, eles estão vindo. Não olhe para trás, isso não irá ajudar, e eles já estão chegando perto. Câncer: tenha um novo hobby! Tente dançar! Continue dançando! Você não consegue parar de dançar! Agora você não consegue mais fazer nada que não seja dançar! — permanecia falando.
— Leão: coloque fogo em algum lugar. Você sabe que quer fazer isso. Não irão descobrir que foi você. Virgem: as estrelas estão observando. Mesmo que você não possa vê-las, elas sempre podem ver você. Lembre-se disso quando for fazer escolhas — ouviu-se um suspiro — Libra: se você parou de checar debaixo de sua cama por monstros, talvez queira começar a checar novamente.
— Escorpião: veja como estão seus velhos amigos! Tire todos aqueles esqueletos do seu armário e passe um tempo com eles! Sagitário: a lua irá guiar você. Algo deu errado? Eu nunca disse que iria lhe guiar corretamente, apenas disse que iria guiar você.
De fato, ele apenas disse que iria guiar.
— Capricórnio: a escuridão não é assustadora. Na verdade, ela é bem legal. Você está ferindo seus sentimentos com todos esses gritos, ela não pediu para ser uma criatura com sete braços finos que mudam constantemente de forma. Se controle, os outros também tem sentimentos. Aquário: tire um tempo para cheirar flores. Quem sabe talvez a próxima que você cheirar mude sua vida. Ou talvez seja apenas a substância que está nela. Peixes: a água é sua amiga. A água e sua inimiga. Você na verdade nunca viu água na sua vida. Tudo isso é uma ilusão. Acorde.
Houve uma breve pausa, e então o homem voltou a falar com uma voz animada:
— E agora, as notícias do dia! Essa madrugada...
Lorelai desligou o rádio, sem se importar em ouvir as notícias. A rádio local parecia estranha, mas de um jeito quase brincalhão, e o horóscopo a incentivou a continuar escutando mesmo que não acreditasse em astrologia. Mantinha os olhos na rua, embora todos os bairros aparentassem ter um trânsito tranquilo — principalmente quando comparados à Nova York.
Estava fazendo todo o caminho até o DENNY'S DINNER, retornando para fora do perímetro urbano; poderia ter encontrado algum restaurante próximo de sua casa, mas lá ao menos conhecia Lorelai e talvez a garçonete pudesse falar um pouco sobre a cidade e sobre os melhores lugares para conhecer — não que Corbeauford parecesse ser um destino perfeito para turistas.
Era impressionante a quantidade de bosques e florestas que via enquanto dirigia, até mesmo atrás de sua casa havia uma; isso não deveria ser uma surpresa, já que 90% do Maine era coberto por florestas. The Pine Tree State, o apelido era perfeito.
Ao chegar no DENNY'S, percebeu que, dessa vez, haviam mais carros no estacionamento e bem mais pessoas dentro do estabelecimento, talvez por ser meio-dia e meia; entretanto, uma voz em sua cabeça questionava o motivo de tantas pessoas buscarem um restaurante que ficava quase nos limites da cidade.
Deixando a porta fechar atrás de si quando entrou, Lorelai andou até um dos bancos altos e sentou, apoiando os braços no balcão; sentia alguns olhares sobre ela e por isso preferiu ficar de costas para as mesas. Corbeauford não era nem tão pequena assim, então por que a encaravam como se já a identificassem como forasteira?
— Lorelai! — Piper surgiu em sua frente, com um sorriso no rosto e os cabelos loiros presos em um coque — Achei que demoraria a ver você novamente! Como foram seus primeiros dias aqui?
— Normais — respondeu — Embora só esteja aqui há dois dias, de qualquer forma. Estava pensando em conhecer mais da cidade, já que minha nova casa é um pouco isolada.
— Talvez eu possa ajudar com isso — Piper ofereceu — Onde você está morando?
Por algum motivo, Lorelai hesitou antes de responder.
— Na Casa Knight, que fica no final da avenida Corbett. Alexander Knight, o antigo dono, era meu pai.
Se Lorelai não tivesse desviado os olhos brevemente, perceberia a expressão estranha que passou pelo rosto de Piper, uma mistura de surpresa e leve receio, antes de voltar a sorrir.
— Eu soube que o sr. Knight... morreu — ela falou — Eu sinto muito por sua perda.
Lorelai assentiu, sorrindo fraco em agradecimento pela empatia.
— Quase não convivi com ele, mas agradeço seus sentimentos.
— Você gostaria de algo? — Piper perguntou, gentilmente.
— Hambúrguer e batatas fritas — pediu — E Pepsi. Quero apenas comer algo gorduroso e não pensar em nada.
A garçonete riu.
— Não irei demorar a trazer!
Cumprindo sua palavra, Piper logo trouxe seu pedido, mesmo que o lugar estivesse cheio precisou aguardar apenas o tempo de tudo ficar pronto. Não era o almoço mais saudável do mundo — não tinha nada de saudável, na verdade — mas Lorelai não se importava; era bom comer algo gostoso, principalmente depois de ter ingerido sua própria comida ruim.
Talvez eu possa almoçar sempre aqui, pensou.
Conversou com Piper enquanto comia com calma, parando apenas quando ela precisava servir alguém ou anotar algum pedido. Descobriu que Piper nasceu e foi criada em Corbeauford; que sua mãe morrera quando tinha nove anos e ela nunca conheceu o pai; morava com sua avó, a pessoa que mais amava no mundo, e namorava um mecânico, que era a segunda pessoa que mais amava no mundo.
Após terminar, Lorelai pediu o mesmo para a viagem — pensando em comer mais tarde — e, enquanto tudo era aprontado, foi ao banheiro feminino.
O banheiro era limpo e levemente cheiroso, com um grande espelho, cinco torneiras com um sabonete líquido cada uma, e cinco cabines; por um momento estranhou que o local estivesse vazio, mas ignorou o pensamento e foi lavar as mãos e a boca — seu gloss perolado já havia saído enquanto comia e apenas sobrara gordura em seus lábios.
O cheiro de lavanda do sabonete era maravilhoso e até mesmo calmante. Lorelai ergueu o corpo, ainda inspirando o aroma floral, e abriu os olhos encarando-se no espelho.
Seu reflexo a encarou de volta, com um sorriso sinistramente aberto e olhos sem pupilas.
Ela soltou um grito abafado e saltou para trás, tropeçando nos saltos relativamente curtos de suas botas e caindo sentada no chão. Sentiu dor, mas na mesma hora se apressou a levantar, com o coração acelerado. Apoiou-se na pia e olhou para o espelho novamente; sua feição pálida e assustada a encarou de volta, refletindo sua imagem correta.
— Céus... — murmurou — Ah, céus...
Sentiu o estômago embrulhar. Sempre que se assustava ficava assim, com esse mal estar; lembrava-se de quando era criança e tinha pesadelos dos quais nunca se lembrava, porém a sensação era a mesma: enjoos, palpitação e falta de ar.
— Foi um golpe de vista — falou para si mesma, respirando fundo — Acalme-se...
Depois de alguns minutos controlando a respiração e vendo seu reflexo completamente normal no espelho, conseguiu parar de tremer e se recompor o suficiente para sair do banheiro. Seguiu de volta para o balcão e pagou a conta, deixando uma gorjeta para Piper e pegando sua comida para viagem.
Despediu-se da garçonete de modo automático e já ia saindo se não fosse ela chamando seu nome e indo ao seu encontro diante da porta.
— Coloque seu número aqui — Piper estendeu o celular, com um sorriso — Mandarei uma mensagem, assim você também terá o meu número. Podemos combinar de sair algum dia! Um programa só de garotas, posso te mostrar alguns lugares, apresentá-la à minha avó e ao meu namorado!
Piper era uma pessoa muito extrovertida, e parecia gostar de fazer amizade. Ou talvez só fosse muito solitária, tendo apenas a avó e o namorado em seu círculo social. De qualquer forma, Lorelai se viu sorrindo com certo carinho, e colocou seu número ali.
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Uma Knight, Piper pensou, após Lorelai sair do restaurante, Isso sem dúvida significa alguma coisa.
Costumavam haver boatos sobre a família Knight em Corbeauford, alguns eram mentirosos e outros — ela bem sabia — eram lamentavelmente verdadeiros. Todos sabiam que Alexander Knight tirara a própria vida se enforcando, afinal, o acontecimento era recente, mas poucos se lembravam que ele se casara com uma mulher desconhecida e tivera uma filha; o casamento não durara, e a mulher fora embora com a criança.
E agora a filha dele retorna.
Balançou a cabeça, voltando ao trabalho. Desde que a vira pela primeira vez tinha simpatizado com Lorelai; ela parecia ser uma pessoa solitária e com certeza precisaria de uma amiga, talvez por isso tenha pedido para que colocasse seu número no celular e se oferecido para mostrar a cidade e apresentá-la a sua avó.
Ah, sua avó com certeza iria gostar de saber sobre Lorelai Knight.
Terminou seu turno normalmente, atendendo a todos que chegavam, mas agradecendo mentalmente por não ser seu dia de ficar no turno da noite. Às cinco em ponto estava saindo do DENNY'S e indo para casa.
A casa em que Piper morava pertencia à sua avó. Tinha dois andares e era antiga, embora bem cuidada, limpa e acolhedora; a grama da frente era aparada e até mesmo algumas florzinhas cresciam ali. Sempre sentia um calor agradável em seu peito ao entrar pela porta.
— Vó, estou em casa! — avisou, fechando a porta atrás de si.
Susan Hansen surgiu com um avental florido, vinda da cozinha.
— Você chegou cedo! Veio direto para casa?
Sua avó tinha sessenta e nove anos, mas era vigorosa e ágil quase como se ainda tivesse trinta; usava os cabelos presos em um coque firme na altura da nuca, o que destacava seu rosto anguloso e os grandes e brilhantes olhos verdes.
— Foi um dia cheio — Piper sorriu. Nem parecia que era domingo — Eu tenho uma coisa para contar.
— Primeiro vá se lavar e eu irei pôr a mesa — Susan apontou o dedo em riste — Conversaremos durante o jantar.
— Como está Breu? — perguntou, indo em direção à escada.
— Como sempre, me ajudou em algumas coisas — escutou a resposta enquanto subia os degraus.
A primeira porta após a escada era o banheiro, a segunda era seu quarto, e a terceira o quarto de sua avó. Entrou na segunda, pensando que seria melhor arrumar a cama e a escrivaninha após o jantar; abriu seu pequeno closet, tateando para encontrar a toalha limpa que sabia que estava ali — a lâmpada tinha queimado há alguns dias e ela se esquecera de comprar uma nova — até que uma mão sombria estendeu-a para ela. Piper pegou a toalha tranquilamente.
— Obrigada, Breu. Onde está...
A mão voltou a se mexer, sacudindo algumas roupas dobradas.
Pegando o que precisava, foi tomar banho, deixando que a água quente relaxasse seus músculos. Após isso, desceu novamente e seguiu para a cozinha, de onde o cheiro da lasanha feita por sua avó exalava; os cabelos ainda estavam úmidos e grudavam levemente em seu pescoço quando sentou à mesa.
— Então, o que queria me contar? — Susan perguntou, colocando a travessa de vidro sobre a mesa e servindo dois pedaços generosos no prato de Piper.
— A filha de Alexander Knight chegou em Corbeauford há dois dias — respondeu, enchendo um copo com suco.
— Knight? — ela murmurou, com um olhar distante, enquanto Piper começava a comer, dando-se conta de que estava faminta — Isso não me surpreende...
— Por que não?
— O sangue dessa família foi transferido para cá há séculos... Mesmo que algum descendente saia, ele irá retornar em algum momento — explicou — Principalmente neste caso, em que ela é a última Knight. Qual o nome dela?
— Lorelai — Piper terminou o primeiro pedaço da lasanha — A conheci assim que ela chegou na cidade, no restaurante. Hoje ela apareceu no DENNY'S novamente para almoçar, e foi quando me disse o nome.
— Como ela é?
— Parece ter a minha idade, ou talvez seja um pouco mais nova. Passa a impressão de ser um pouco solitária, mas uma boa pessoa, educada... do tipo criada pela alta sociedade, mesmo que não tenha nenhum traço de arrogância ou algo assim...
Ela continuou contando sobre como havia pegado o número do celular de Lorelai Knight, oferecendo-se para apresentar a cidade e até mesmo apresentá-la à avó.
— Eu gostaria de conhecê-la — Susan sorriu, com convicção — Lorelai Knight irá precisar de toda ajuda sincera que encontrar.
Essas palavras deixaram Piper um pouco confusa, principalmente pela parte do "toda ajuda sincera que encontrar". Sua avó sempre enxergava além do que geralmente revelava, sabia bem disso.
— O que quer dizer com isso, vovó? — ela questionou.
Mas Susan Hansen apenas sorriu e não respondeu.
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