Cidade Decadente
[Para CaiqueMarcos, me fazendo superar meus limites 💙]
Se um dia estiver viajando por uma estrada deserta; e encontrar uma bifurcação que leva a uma cidade ainda mais deserta e sem nome, não pare! Não importa o motivo, continue andando em frente, e se possível nunca nem mesmo se lembre que um dia passou por ela.
Um aviso que seria muito bem-vindo para uma família que cortava o estado de carro em direção ao litoral, onde passariam as férias, por muito tempo desejadas e planejadas. Eles acordaram cedo e pegaram a estrada, porém durante o trajeto, o pai pegou a entrada errada na estadual, tentando encontrar o caminho certo para a praia acabaram perdidos em uma estrada deserta e esburacada, sem sinal de civilização, o GPS parou de indicar caminhos, que nem sequer existiam, há duas horas.
-Não acredito que você não trouxe um mapa! - Vociferou a mãe depois de revirar o porta luvas e a bolsa.
-É claro que não trouxe um! Não achei que o GPS fosse estar mais perdido do que eu! - Disse o pai para a mãe, e se direcionado ao filho no banco de trás ralhou: - Caíque! Pare de chutar meu banco!
-Estou cansado de ficar nesse carro calorento. Não tem nada para fazer, porque a mãe não deixou eu trazer meu PSP e meu celular já descarregou. - Disse o menino de doze anos cruzando os braços.
-Praia não é lugar para videogames. - Defendeu-se a mãe. - Vai brincar com a Thaís.
-Ela é um bebê! Não sabe brincar! - disse Caíque ficando ainda mais emburrado ao olhar para a irmã na cadeirinha ao seu lado, brincando feliz com sua boneca de pano.
Assim se seguiu a viagem. Era fim de tarde quando avistaram a cidade, sem pensar duas vezes o pai curvou na bifurcação, mais a frente, passaram por uma placa decrépita de boas vindas, porém o nome da cidade estava ilegível. Um calafrio subiu pela espinha de Caíque, ele sabia que isso era um mal presságio. Quanto mais perto eles chegavam da cidade, mais desconfortável ficava o menino.
Na cidade sem nome, tudo era velho e antiquado, o ar carregava uma leve camada de poeira, com quando você entra em uma casa que ficou anos trancada e é possível ver a poeira flutuando na luz do sol. Uma imagem bonita que transmite esperança e recomeço - se você for poético o bastante - mas naquela cidade era o completo oposto, deixava a cidade esquecida pelo tempo com uma aparência ainda mais velha e decadente.
O pai avançava lentamente com o carro, procurando algum sinal de civilização, Caíque não pode deixar de notar que por todo o percurso não passaram por uma única porta ou janela aberta, ou qualquer sinal de ainda havia pessoas morando na cidade, as únicas coisas vivas que ele viu foi os urubus, que sobrevoam em círculos acima deles, e os corvos, empoleirados por todo canto, sempre os observado como se esperassem impacientemente pelo momento em que poderia finalmente devorá-los. Tudo isso só deixou o menino ainda mais apreensivo.
-Pai - chamou o garoto - eu não gosto daqui, vamos embora logo.
-Não seja ridículo filho! Já está escurecendo e precisamos de um lugar para passar a noite.
Caíque não gostou nadinha do que acabara de ouvir. O carro seguiu lentamente, ao virar a esquina um velho de macacão surrado gritou:
-Vão embora! ninguém quer vocês aqui! Sumam, sumam!
Os corvos, empoleirados nas calhas e cercas próximas, bateram as asas voando em círculos, formando uma densa nuvem negra.
-Pai… - resmunga o menino com a voz arrastada se encolhendo no banco.
-Que é isso, Caique?! Ele só está espantando os pássaros.
O menino não se convenceu, a própria atmosfera do lugar lhe causava calafrios, ele não podia evitar. Havia mais pessoas agora que estavam no centro da cidadezinhas, todos velhos com olhar perdido, quando os moradores viam o carro, entravam em casa e batia as portas e janelas. A família não era bem vinda.
-Pai, vamos embora, estou com um mal pressentimento desse lugar.
-Já disse para parar com isso, não vai acontecer nada. Encontraremos um lugar para passar a noite e amanhã de manhã vamos embora. Será só uma noite.
Era isso que Caíque temia, uma noite inteira em uma cidade estranha com uma população esquisita e suspeita. A última coisa que ele queria era fechar os olhos nesta cidade.
-Ali, vejam. É uma pousada, podemos passar a noite nela. - Diz o pai entusiasmado, parando o carro em frente a entrada.
Caique olha para o lugar pela janela do carro, todos os seus pelos se eriçam, a velha construção parecia estar em seu estágio final, qualquer vento mais forte parecia poder derrubá-la, era impossível ver a cor da tinta pois a casa estava coberta de poeira avermelhada, dando um toque de abandono ao lugar. O menino não conseguiu evitar pensar que a casa fosse mal-assombrada.
-Eu não vou entrar aí, - disse ele - de jeito nenhum! - o pai olha feio para o filho que se vê na obrigação de se explicar. - Não me olha assim não. Olha para essa casa, parece ter saído de um filme de terror! - Caique gesticulava para a casa, indignado que o pai não enxergasse que esse seria um excelente cenário para uma assassinato ou coisa do tipo.
O homem o ignora e sai do carro ao mesmo tempo que a mãe, a mulher abre a porta de trás para tirar a bebê da cadeirinha, Thaís dormia tranquilamente e só deu uma resmungada ao ser perturbada.
-Anda Caique, saia logo daí. - diz a mãe.
-Eu não vou! Vou ficar no carro, em segurança! - Ele enfatiza as palavras direcionadas ao pai.
já sem paciência, o homem abre bruscamente a porta e puxa a criança para fora, sem dizer uma única palavra. Caíque não podia entender como seu pai podia ser tão cabeça dura, mas ele também era, e não iria sossegar até arrancar a família desta cidade sinistra. Antes que pudessem terminar de subir os cincos degraus da escada, um senhor, já com seus 60 anos de idade, saí pela porta da frente exibindo um sorriso banguela. “Nunca confie em alguém sem dentes” pensou o menino.
-Hóspedes! - Festejou o velho. - Não recebemos muitas visitas, por tanto desculpe o descaso da fachada, se soubesse que viriam teria mandado limpar toda essa poeira, mas entrem, entrem.
Caíque hesita, mas o pai coloca a mão em suas costas obrigando-o a andar, sem escolha e a passos lentos, ele entra no hall da casa, o interior era relativamente limpo em comparação ao exterior, mas ainda era possível ver teias de aranha nos cantos altos, caique odiava aranhas, o ambiente lembrava um antiquário com seus candelabros e mobílias antigos, coisa que a mãe adorou. Foram até o balcão.
-Quantos dias pretende ficar? - Perguntou o senhor já do outro lado do balcão da recepção.
-Só essa noite mesmo, partiremos pela manhã. - Respondeu o pai.
-Claro, muito bem. - O desapontamento do velho era visível.
-Por acaso o senhor não teria um mapa? Queríamos chegar ao litoral, mas nos perdemos e o GPS está louco.
-Eu nunca confiei nessas tecnologias. Devo ter um mapa em algum lugar vou procurar para o senhor. Mas por hora, deixe-me mostrar-lhes o seu quarto.
-Espera! - Caique chamou. -Por que tem tantos corvos por aqui?
-Ora eu não sei, mas essas pragas vivem comendo nossas plantações. Os espantalhos assustam mais a mim do que a eles. - O senhor riu de sua própria piada.
-E por que todas as casas pelas quais passamos estavam com portas e janelas fechadas?
-Porque venta muito esse horário, o vento traz muita terra, você viu o estado da entrada, não é? Imagine toda essa poeira dentro de casa, por Deus, seria horrível.
-Sim, com certeza seria. - O menino ainda não estava satisfeito, - e por que todo mundo é tão velho por aqui?
-Oh, você gosta de fazer perguntas, não é? - O senhor se aborrece com o menino que, por sua vez, dá de ombros.
-Caique pare de atormentar o homem. - Reclamou a mãe.
-Ah, já ia me esquecendo. - disse o velho com certa animação na voz. - Zaqueu! Zaqueu, temos hóspedes, venha dar as boas vindas!
Ouve-se barulhos no cômodo ao lado e de lá sai um menino com mais ou menos a idade de Caíque. Zaqueu tinha o rosto magro e um nariz fino e pontudo, tinha algumas sardas também, era pálido e tinha olheiras fundas, parecia doente, quando avistou o outro garoto prado no balcão sorriu mostrandos seus grandes dentes projetados para frente, Caique o achou parecido com um rato.
-Um menino! Finalmente outra criança com quem brincar. - Ele correu para perto e examinou Caique de cima a baixo. - Não há outras crianças por aqui além de mim, então tenho que brincar sozinho. Às vezes jogo pedras nos corvos, mas eles não gostam muito disso, acho que eles planejam um dia se vingar, mas eu já tenho um plano para o contra-ataque.
-Humm, legal. - Disse Caíque desconfortável com a situação.
-Zaqueu, mostre-os o caminho para o quarto número 13. - Entregou uma chave ao menino.
-Por que o 13? - Indagou Caique.
-Porque é o único quarto que cumpre os requisitos solicitados. - O velho respondeu rabugento.
-Venham, é por aqui. - Chamou Zaqueu, sua empolgação era evidente.
Todos se dirigiram para o quarto no andar de cima, por todo o caminho havia quadros e fotografias, a maioria de pessoas que apesar do sorriso pareciam em agonia constante. Caíque não conseguia manter o olhar nas imagens, desviando-o sempre para o chão que rangia sob seus pés. Pararam em frente a porta número 13, os dígitos estavam em vermelho, por um segundo o garoto achou que eram feitos com gangue. Zaqueu abre a porta com a chave que o velho lhe deu, dá passagem para que os hóspedes entrassem no quarto, onde havia uma cama de casal e uma de solteiro, Caíque não viu nada demais, para ele, era um quarto comum de hospedaria. A mãe colocou Thaís no meio da cama de casal massageando o ombro.
-Ela está ficando pesada. - Queixou-se a mulher. - Querido, onde ficou a câmera, quero tirar algumas fotos da mobília.
-Na sua bolsa. - respondeu o marido sem prestar muita atenção.
-Ah… gostaria que móveis antigos não fossem tão caros - suspirou a mãe num tom sonhador. Caique nunca entendeu essa sua paixão por coisas velhas.
Caíque finge não notar Zaqueu parado à porta com uma certa inquietação. Talvez, se ignorá-lo, ele vá embora sem perturbar alguém. Não foi o caso, ele entra no quarto para de frente com Caíque, impossível de ignorar.
-Brinca comigo. - Disse Zaqueu
O que mais incomodou Caíque foi que Zaqueu não perguntou se ele queria brincar, ele simplesmente exigiu. Antes que Caíque pensasse numa desculpa para recusar, sua mãe respondeu por ele.
-Claro! Vá brincar com ele, mas sem muito barulho não quero que acordem a Thaís.
Caíque olha indignado para a mãe, que está de costas e não pode ver a expressão do filho. "Como ela pode fazer uma coisa dessa comigo, sangue do seu sangue?!" Pensou o garoto. "Por que ninguém vê que essa cidade é suspeita? Tenho que dar um jeito de tirar todos daqui."
Sem lhe dar tempo para pensar numa solução, Zaqueu puxa Caíque para fora do quarto tagarelando seus devaneios incoerentes, arrastando-o escada abaixo, por salas e corredores até chegarem em um quarto sem janelas, não se enxergava um palmo à sua frente naquele cômodo.
-Aqui é o que eu chamo de achados e perdidos, - informou Zaqueu ao acender a luz, - é onde eu guardo as coisas que os hóspedes esquecem aqui. Pode pegar qualquer coisa que você quiser.
Tinha de tudo ali, brinquedos, máquinas fotográficas, celulares e até malas inteiras. Este talvez seja o único cômodo que se possa encontrar objetos da era atual, mas também era possível montar um museu da evolução tecnológica da humanidade. Zaqueu continuou falando, mas Caíque, que não saiu do lugar, não lhe dava atenção. Todas aquelas coisas o deixavam apreensivo.
-Eu gosto de usar as coisas daqui para brincar, mas brincar sozinho não é muito divertido. - ele fuçava entre as coisas, já havia três tipos diferentes de chapéus em sua cabeça dois casacos e várias bijuterias. - Mas agora tenho você para brincar comigo e seremos amigos para sempre…
-Na verdade eu vou embora amanhã de manhã. - Disse Caíque, mas Zaqueu parece não ter ouvido nenhuma de suas palavras, ele continuou seu falatório.
-Só não coma da comida servida. É horrível. É tudo cultivado aqui, mas a terra não é boa e deixa a comida ruim. Eu mesmo não como, é melhor tomar veneno. - Ele riu. Olhou para Caíque pela primeira vez desde que entraram no quarto. - Você não quer nada? Tudo bem então, vamos! Agora vou te mostrar meu cachorro, ele é bem magro por isso chamo ele de esqueleto…
O menino continuou falando, parecia muitíssimo feliz. Caíque não teve escolha senão segui-lo, tentou gravar o caminho mas a casa parecia um labirinto móvel com todas suas salas, cozinhas, quartos e até uma biblioteca cheia de pó, por fim chegaram a uma porta lateral de uma cozinha que lembrava a época em que ainda havia escravidão. Ao passar pela porta deram em uma espécie de varanda, a noite já havia caído e não tinha nenhuma luz vinda das casas vizinhas. No piso de madeira coberto de poeira havia duas tigelas vazias e uma casinha de cachorro. Zaqueu se abaixa e olha lá dentro.
-Esqueleto trouxe um novo amigo, então seja um bom garoto. - O menino olha para cima. - Vem cá ver, ele já é um idoso por isso não sai muito da casinha.
Caíque se abaixa para ver o cachorro, mas cai para trás quando seu cérebro processa o que seus olhos viram, uma pilha de ossos com um crânio no topo, sinceramente nem mesmo parecia ser de um canino.
-Não precisa ter medo, ele não morde. Olha. - Zaqueu acaricia o crânio, Caíque não sabia o que pensar daquilo, ou Zaqueu era totalmente ingênuo, ou um completo sociopata, nenhuma das opção trazia conforto. - Tudo bem, não se preocupe. Eu sei que todo mundo tem um medo que não pode evitar. Existem bastante pessoas que têm medo de cachorros, eu entendo. Vamos fazer outra coisa então.
Mil coisas passavam pela cabeça de Caíque e na maioria incluía despistar Zaqueu, e nas restantes era como deixaria a cidade. Foi quando surgiu uma ideia brilhante.
-Vamos brincar de esconde-esconde?! - Sugeriu Caíque pondo seu plano em ação. - Mas como eu ainda não conheço bem a casa, você tem vantagem por isso eu começo me escondendo e você conta.
-Tá bom! Isso vai ser muito divertido. - Os olhos de Zaqueu brilharam de hesitação.
-Então aqui será o ponto de partida, você tem que contar até 200, mas tem que contar devagar pra dar tempo de eu me esconder.
-Certo, vamos começar logo então. - o garoto começou a contar.
Sem perder tempo Caíque correu pela casa sem saber direito para onde ir, contava apenas com a sorte para achar o caminho de volta para o quarto número 13, ele torcia para encontrar os pais pelo caminho, rezava mais ainda para que dessa vez eles o escutasse e fossem embora de uma vez por todas. Mas ele estava perdido na casa com seus cômodos excessivos, parecia que ele andava em círculos. Se encontrava agora em um corredor cheio de portas fechadas, um beco sem saída. Virou-se para dar meia volta e tentar outro caminho mas ouviu as risadas de Zaqueu se aproximando. "Merda! Ele já está me procurando". Caíque entra na porta mais perto e a fecha logo em seguida, as dobradiças rangeram, em completo silêncio o garoto escuta atentamente os passos do lado de fora, passam direto pela porta de Caíque, para logo depois voltar correndo por todo o corredor e o som se extinguir ao longe.
Aliviado, ele dá dois passos para trás e acaba esbarrando em uma escrivaninha, da qual derruba um livro extremamente velho e empoeirado, ele observa o lugar pela primeira vez. O cômodo parecia ser um escritório com a mesa no centro, nas paredes estantes com livros e porta retratos, o lugar tinha uma densa camada de poeira, ninguém entrava ali à anos. Caíque instintivamente pega o livro para devolver no lugar, mas algo lhe chama a atenção, do meio do livro saia a ponta de uma fotografia, o garoto abre o livro para ver a foto e se surpreende com o que vê. A imagem estava amarelada, visivelmente antiga, mas o que lhe chamou a atenção foi a pessoa retratada: Zaqueu. Exatamente como é hoje, ele não mudou nada desde a foto, a mesma devia ter uns duzentos anos. "Deve ter uma explicação para isso. Não pode ser a mesma pessoa. Talvez seja um antepassado dele… mas tão iguais?! Isso é mesmo possível." Caique queria acreditar que era mera coincidência. Se voltou para o livro e viu que era, na verdade, um diário que datava de 1847, Cento e setenta e três anos atrás. Ele leu:
"Meu Diário,
Não sei mais a quem recorrer, os médicos disseram não ter mais esperanças, que meu filho, meu precioso Zaqueu, não viverá por muito mais tempo. Disseram que sua enfermidade não tem cura. Esses doutores não servem de nada para mim, se não podem curar meu menino.
Temo que terei que buscar por outra alternativa, mas meu filho viverá."
Virou a página.
"Meu Diário,
Hoje fui consultar uma feiticeira, sei que não são confiáveis, mas agora somente ela pode salvar meu filho. A bruxa me garantiu que não só curaria a doença dele como também lhe daria vida eterna, porém para que faça o feitiço pagarei um preço alto, darei minha própria vida pela a do meu filho. Para que ele sobreviva darei minha vida de bom grado.
Deus que me condene por esse meu pecado, mas como mãe devo fazer de tudo por Zaqueu, para que ele continue vivendo."
Ao terminar de ler, o coração de Caíque batia apertado, se aquilo fosse realmente verdade a coisa toda era pior do que ele imaginava. Ele nunca acreditou em magia e coisas do tipo, era apenas fantasia, histórias para crianças se comportarem. Não podia ser real!
"Mas e se for?"
Essa pergunta martelava em sua cabeça, ele não podia simplesmente ignorar. Por via das dúvidas era melhor sair desse lugar o quanto antes. Sem mais demora, irrompeu pela porta sem se importar com o barulho, não se incomodou em fechá-la também. Caminhou pelo corredor com passos decididos, estava determinado a achar sua família e dar o fora desse pesadelo.
Logo chegou novamente ao hall de entrada. Não havia ninguém, Caíque sabia para onde ir a partir dali, pegaria primeiro sua irmã e depois encontraria seus pais, tinha esperança de que talvez os encontrasse no quarto com Thaís. Subiu as escadas e entrou no quarto 13, a menina ainda dormia na cama, seria melhor assim, ao menos ela não daria trabalho.
-Achei você, foi bem difícil. - Caíque se assusta com a aparição repentina de Zaqueu, mas logo se recompõe e pega a irmã no colo. - O quê está fazendo?
-Indo embora daqui! - Respondeu Caíque inabalável.
-O quê? Por que você iria embora?
-Porque aqui não é seguro. Vou sair agora!
-Não! Você não pode ir! É a sua vez de contar! Era para você ser meu amigo pra sempre! - Gritou Zaqueu histérico acordando a garotinha nos braços do irmão, ela começou a chorar. - Aarg! - Rosnou Zaqueu levando as mãos às orelhas. - Faça-a parar! Que irritante! Não suporto choro de bebês!
-Você é louco, eu vou embora e você não vai me impedir.
-Você não pode ir, você é meu amigo e vai ficar aqui para sempre. E então eu terei com quem brincar… - Ele tremia. - Não quero ficar sozinho de novo.
Caíque se afastou perplexo com a reação do outro garoto, por um momento não soube o que fazer, Thaís chorava em seu colo, mas como ele poderia acalmá-la se ele próprio estava perturbado pela cena. Seu transe foi quebrado por um grito estridente e apavorado. Era a voz de sua mãe. Sem pensar duas vezes, passou por Zaqueu e correu escada abaixo, tropeçou no último degrau, mas recuperou o equilíbrio sem cair.
-Mãe?! Mãe, onde você está?! - Caíque não obteve resposta.
Alguma coisa caiu no chão na sala ao lado, Caíque se dirigiu para lá. Por mais uma vez duvidou dos próprios olhos. Sentados à mesa de jantar estavam seus pais envelhecidos, o menino só soube que era eles pelas roupas que usavam, uma faca estava no chão, provavelmente foi o que Caíque ouvira cair.
"Como isso é possível? Como eles envelheceram cinquenta anos em menos de três horas?! Isso não é real. Isso deve ser um pesadelo, tem que ser!". Sua mente buscava por uma explicação lógica.
-Eu avisei para não comer da comida. - Era Zaqueu, ele apareceu sem ser percebido por Caíque. - Está cidade é amaldiçoada se você come qualquer coisa cultivada aqui a terra suga sua juventude, você se torna servo dela até definhar e morrer. - Zaqueu estava mais corado agora, parecia menos doente. - Acontece com todos que vem aqui, menos comigo e é por isso que estou sempre sozinho. Estou sozinho a muito tempo.
-Eu vou embora agora! E vou levar meus pais!
Caíque se aproxima dos seres que no início da noite ainda eram jovens e cheios de energia, agora estavam enrugados e com olhos fundos e perdidos como os dos moradores que viu mais cedo, pareciam não reconhecê-lo, Thaís que havia parado de chorar encara a mãe, mas não a reconhece e esconde o rosto no ombro do irmão. Ele segura o braço da mãe e o puxa, ela não sai do lugar.
-Você não pode ir. Eles estão presos aqui agora. E se você não quer ser meu amigo então também deve se tornar um escravo como todos os outros.
A mãe agarra o menino com força, Caíque não esperava por isso. O pai se levanta da mesa com uma batata espetada no garfo e caminha em sua direção com o intuito de fazer Caíque comer. Ele teria mesmo que abandonar os pais nessa cidade? Que outra escolha ele tinha?
-Não! Não é a terra ou a cidade que é amaldiçoada, é você! Tudo isso é por sua causa, toda a vitalidade que é sugada das pessoas vai para você, para que você continue vivendo. Foi a sua mãe que amaldiçoou você e esta cidade! - Caíque não sabia porque estava dizendo aquilo, mas queria dizer alguma coisa. - É tudo culpa sua, então para de bancar o inocente. - Thaís, assustada com todo o alvoroço, volta a chorar.
-Quietos! - Zaqueu está furioso, a cólera deixou seu rosto vermelho, está novamente com as mãos tampando os ouvidos. - É mentira! Você está mentindo! Minha mãe não faria isso! - Zaqueu estava fora de si.
Caíque sentiu o aperto da mãe afrouxar e ele aproveitou para escapar, Correu para longe dos pais, Zaqueu permaneciam na porta bloqueando a saída. Mesmo se conseguisse passar por todos eles, Caíque não chegaria muito longe correndo. Para escapar da cidade e pedir ajuda ele precisaria de um veículo, o carro do pai está estacionado logo em frente, seu cérebro trabalha a toda velocidade para achar uma solução, Caíque sabia a teoria, jogou em simuladores, ele podia conduzir, porém ele teria que dar um jeito de pegar as chaves no bolso do pai. Ele teria que ser rápido, o pai nunca teve um bom condicionamento físico e agora com esse corpo velho talvez Caíque tivesse alguma chance de derrubá-lo e pegar as chaves. Ele ajeitou Thaís no colo passando os braços dela em volta do pescoço e as pernas pela cintura, ele pediu para que ela se segurasse firme e não soltasse por nada, ela ainda choramingava.
Agora era tudo ou nada. Correu em direção ao pai e jogou todo o seu peso contra o homem, como o esperado, ele cambaleou para trás e caiu, sem perder tempo Caíque enfia a mão no bolso direito onde era mais provável de encontrar a chave, em cheio, ele puxou as chaves para fora e as segurou com tanta força que elas machucavam sua mão, ele não afrouxou nem um milímetro, não correria o risco de deixá-las cair. Antes que pudesse se levantar, o menino é agarrado pelo homem caído. Caíque se debate em vão.
-Pai me solta. Eu tenho que ir, tenho que pedir ajuda. Me solta, eu prometo que vou voltar, trazer ajuda e salvar vocês. Me larga! - Lágrimas encheram seus olhos, ele não queria de fato abandonar os pais. Suas súplicas eram em vão, o pai não o ouvia, não o soltava.
De supetão, Caíque se joga para o lado escapando das garras do pai e rolando no chão. Se pôs de pé o mais rápido que pode. Zaqueu ainda bloqueia a passagem, tinha que dar um jeito de passar por ele, talvez se Caíque o provocasse ele perderia o controle novamente e criasse uma oportunidade para escapar.
-Zaqueu, nos deixe ir embora.
-Não! Você vai ficar aqui e será meu servo.
-É por isso que você está sozinho. Não é assim que se faz amigos, é por isso que as pessoas não gostam de você! - Caíque quase se sentia culpado em dizer essas coisas, mas agora não era hora de ter compaixão. - Você não para de falar asneiras e não ouve o que os outros tem a dizer. Sem falar naquele seu cachorro, você ao menos adotou ele quando ainda estava vivo? Porque para mim aquilo é só um monte de ossos.
-Para! Não é verdade! Cala a boca! - Estava quase lá Caíque continuou.
-Você não bate bem da cabeça, é doido de pedra. Você é estranho e irritante, vai ficar sozinho a vida inteira. Se é que você já não está morto também.
Finalmente atingiu o ponto que queria, Zaqueu tremia mais do que nunca, deu alguns passos em direção a Caíque deixando a porta livre, só mais um pouco e ele poderia sair correndo dali.
-É mentira. Tudo o que você diz é mentira!
-Você nunca encontrará um amigo de verdade. E no fundo você sabe disso.
Esse foi o golpe final, Zaqueu se descontrola e investe contra Caíque, que desvia sem muita dificuldade, ele corre para a saída. Zaqueu o persegue, Caíque corre como nunca correu antes, quando chega na porta de entrada da hospedaria ele está com uma boa distância de Zaqueu, na escuridão da noite ele avista o carro estacionado, ele aperta o botão na chave para destrancar as portas enquanto desce a escada, ele pula os três últimos degraus e com mais três passos alcança o carro. Caíque se atrapalha um pouco para abrir a porta, Zaqueu está no topo das escadas agora. Caíque se joga pra dentro do carro e trava as portas bem a tempo de impedir Zaqueu de alcançá-lo.
Enquanto Caíque tenta recuperar o fôlego, o sangue pulsava em seus ouvidos, Zaqueu batia nos vidros do lado de fora, gritando que Caíque nunca sairia dali. Thaís chorava baixo agarrada ao irmão, ele tentou colocá-la na cadeirinha no banco de trás, mas ela não quis soltar dele de jeito nenhum, o garoto teria que dirigir com ela no colo, passou o cinto de segurança pelo os dois, depois de tudo isso morrer por ter batido o carro seria uma baita piada de mau gosto.
Caíque respira fundo e tenta ignorar Zaqueu do lado de fora e só então dá a partida no carro. Ele acelera aos poucos conforme pega confiança. Seria fácil deixar a cidade agora… não foi. Mais a frente, os outros moradores da cidade fizeram uma barreira na rua impedindo a passagem, Caíque não podia simplesmente passar por cima dessas pessoas, elas eram vítimas da maldição como seus pais e ele queria ter esperança de que ainda havia salvação para eles. Virando bruscamente o volante ele invade o quintal de uma casa, saindo da estrada, derrubou a cerca de madeira velha passando pelo espaço entre os dois imóveis, saiu na rua de trás, ele acelera, há moradores idosos saindo de todos os lados e Caíque faz o possível para não atropelá-los.
O garoto chega na rua principal que leva para fora da cidade, era uma estrada reta, ele podia acelerar sem medo. No momento em que ele passa pela velha placa de bem-vindos, toda a atmosfera negativa que ele sentiu naquele lugar sumiu e um grande alívio recaiu sobre seus ombros. Ele finalmente desacelera, ao olhar para trás para ver se alguém ainda o perseguia, a cidade decadente havia desaparecido deixando apenas uma densa nuvem de poeira.
Caíque dirigiu sem parar até encontrar um posto de gasolina onde implorou por ajuda, contou o que tinha acontecido, mas ninguém acreditou nele. Chamaram a polícia para se encarregar de levar as crianças dali. Quando as autoridades chegaram, o garoto contou novamente a história para os oficiais, que também não acreditaram em Caíque, insistiram que não havia cidade nenhuma naquela direção. Concluíram que ele teria passado por algum trauma e inventou essa história para não lembrar da verdade, como uma autodefesa de seu psicológico. Mas Caíque nunca se esqueceu do que realmente aconteceu, que sempre vinham em pesadelos, nunca esqueceu que não conseguiu salvar os pais e os abandonou para a morte.
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