Chuva de Estrelas
Apesar de viver em Camelot, onde o cristianismo e a magia coexistiam e dividiam as atenções e as crenças do povo, não era da natureza da Rainha Guinevere acreditar em superstições ou em premonições. Se não houvesse tido ela mesma o sonho que Viviane agora lhe relatava, provavelmente não teria lhe dado importância.
— Foi lindo, Majestade — disse a Dama do Lago, após descrever vividamente seu sonho. — Ao nascer, vosso filho trouxe consigo uma chuva de estrelas, colorindo o céu com mil luzes celestiais. É um presságio, não duvide. Os deuses enviarão a vós um filho, que será tão grandioso ou mais que o pai.
Guinevere deu um suspiro profundo. Um filho. Era o que ela mais desejava dar ao Rei, e, no entanto, ao que parecia, a natureza fechara irrevogavelmente seu ventre para esta dádiva.
Fazia então dez anos que Guinevere estava casada com o Rei Arthur, um bravo e honrado Rei, a quem, com o tempo, ela aprendera a amar.
Foi difícil, a princípio. Ela era pouco mais que uma menina quando foi dada em casamento ao soberano, cumprindo uma promessa de seu pai, o Rei Leodegrance, de Cameliard. Ainda durante o trajeto, a Princesa se enamorou perdidamente do Cavaleiro que fora enviado para liderar sua escolta, Sir Lancelot, que, para seu infortúnio, correspondia ao seu amor.
Muitas luas haviam se passado desde aquela viagem, e hoje ela compreendia que a paixão que sentira pelo nobre Cavaleiro – que preferira exilar-se a trair seu Rei – fora, acima de tudo, um sentimento infantil e inconsequente, que, felizmente, jamais se consumou. Mas às vezes ela pensava consigo se não foram os pensamentos pecaminosos que tivera com Lancelot a causa de sua esterilidade. Estaria ela sendo punida por ter sido infiel em seu coração, quando se casou com Arthur?
E agora, ali estava aquela mulher, a Grande Sacerdotisa de Avalon – ironicamente, quem criara Lancelot após o assassinato covarde de seu pai –, dizendo-lhe com a alma inflamada que ela teria um filho. E que este filho poderia ser maior que o próprio Rei.
Seu coração de mulher desejava ardentemente acreditar nesta profecia. Mas sua alma cristã clamava que ela não se deixasse iludir pelas superstições daquela Sacerdotisa pagã.
Todavia, como podia ela descrer, quando a mulher narrava, com riqueza de detalhes, o mesmo sonho que ela tivera apenas poucas horas antes?
Viviane viera de Avalon, viajando a noite toda através da neblina e do frio, ainda cortante no fim do inverno, apenas para lhe transmitir as boas-novas que vira nitidamente nas águas do Lago Sagrado.
— Posso lhe pedir uma coisa, minha Senhora? — sibilou a Rainha, contendo a custo, uma lágrima.
— Naturalmente, Majestade — respondeu Viviane.
— Não conte esta visão ao Arthur — pediu a Rainha, humildemente, mal encontrando a voz.
— Mas... por quê? Estou certa de que ele ficará radiante...
— Por isso mesmo. Prefiro não lhe dar esperanças... até...
Guinevere não completou. Seu coração estava apertado, a fé cristã duelando com o desejo de que aquela visão que as duas mulheres compartilharam pudesse se concretizar.
Mas aquela imagem – do sonho que tivera e da visão que Viviane descrevera – ficaria gravada no coração da Rainha dali em diante.
Poucas semanas se passaram, e o medo lentamente transformou-se em esperança, conforme ela contava os dias de atraso em suas regras. Não tardou a virem os enjoos. E finalmente ela sentiu, com todas as forças de seu coração, que havia um pequeno ser crescendo dentro dela. O filho que tanto desejara dar ao marido estava a caminho.
Conforme Viviane previra, Arthur ficou exultante ao saber que seria pai. E não fosse a constante exigência das batalhas, não teria saído do lado de sua Rainha até o nascimento do herdeiro.
Mas Guinevere não contou ao Rei sobre o sonho que tivera, nem a mais ninguém. Este era um segredo que ela compartilhava apenas com a Dama do Lago, que fora prontamente convidada por Arthur a se estabelecer no palácio, para auxiliar e proteger a Rainha até a chegada de seu filho.
A esperança de um filho renovou as convicções do Rei e o desejo de selar a paz e unir os reinos da Britânia sob uma única bandeira. Pelos meses seguintes, Arthur esteve envolvido em diversas negociações e batalhas, cedendo em partes, quando necessário, mas buscando convencer o maior número possível de Reis por toda a Ilha de que a unificação do Reino seria benéfica para todos. Um Estado forte, formado por soberanos fortes e unidos, era o que faria da Britânia um Reino próspero e eterno.
E foi sob este ideal e neste cenário de sonho realizado que o filho de Arthur foi trazido ao mundo.
Depois de selar a paz com a maior parte dos Reinos da Britânia, Arthur decidiu oferecer um grande banquete na noite do Ano Novo para celebrar esta conquista e fortalecer sua aliança com os Reis vizinhos. E para que ficasse claro para todos que haviam escolhido não apenas um Rei forte para liderá-los, mas também um visionário, Arthur pediu ao Mago Merlim que preparasse um espetáculo grandioso para impressionar os visitantes de Camelot.
— O que tem em mente, Majestade? — perguntou o Feiticeiro, quando Arthur fez seu pedido.
— Apenas algo que esses homens nunca tenham visto antes — disse o Rei. — E que, ao mesmo tempo, os convença de que há mais do que apenas política em nosso tratado. Quero que eles saibam que, embora seja a favor da cristianização destas terras, não me oponho às práticas da antiga religião. Quero que eles entendam que a Britânia será um lugar onde a magia e o catolicismo poderão coexistir amigavelmente.
— É um desejo bastante ambicioso, Arthur — observou Merlim. — Quer que eu sintetize todas estas propostas numa única demonstração?
— Sim. Estive pensando que, como é noite de Ano Novo, podemos criar uma nova tradição, algo que poderá ser imitado por todos os povos da Britânia, independente de sua origem ou religião.
— Devo lembrá-lo, Majestade, que sou um Sacerdote Druida, pertencente ao povo Celta, e que para nós, o Ano Novo já passou. Foi em 31 de Outubro.
— Sim, Merlim, já contava com este pequeno desafio. Mas lembre-se de que a Britânia está cada vez mais sob influência do Império Romano e desta nova religião, e precisaremos fazer certas concessões se quisermos coexistir. E a primeira será esta: o Ano Novo começará em 1° de Janeiro, como em todo o mundo Romano. Naturalmente, as celebrações Celtas poderão continuar a ser realizadas, sem qualquer interferência. Mas, acrescentaremos este marco ao calendário.
— Como queira, Majestade. E quanto ao espetáculo, o que tem em mente?
— Ouvi falar de um dispositivo muito utilizado nas grandes celebrações na Ásia, sobretudo na China, que, creio, você não terá dificuldade em reproduzir.
O Rei descreveu em detalhes o artifício de que tomara conhecimento, através de um nobre recém-chegado daquele lado do mundo. E, para sua surpresa, Merlim já tinha pleno conhecimento do que se tratava.
— Isso não é magia, Majestade — disse o Feiticeiro.
— Por isso mesmo, creio que será perfeito para fundir as tradições e os costumes de todos os povos da Britânia. As pessoas farão uso da ciência e não da magia; e ainda assim, o espetáculo não será menos do que mágico.
— E quanto ao vosso filho? — indagou Merlim.
— Creio que está muito bem — disse Arthur.
— Quero dizer... É provável que seu nascimento coincida com a noite das celebrações.
Arthur conhecia o Mago Merlim o suficiente para saber que probabilidade era um traço de humildade, uma palavra que ele usava apenas para não admitir que tinha plena certeza de um fato.
Viviane também havia lhe dito que, em seus cálculos, o bebê nasceria, no mais tardar, nos primeiros dias de Janeiro. Era difícil precisar a idade da Dama do Lago – suas feições jovens e belas eram capazes de enganar o mais perspicaz dos homens –, no entanto, Arthur sabia que ela era tão sábia quanto Merlim, e fora agraciada com o dom da premonição, portanto, sua opinião não podia ser ignorada.
Ao que o Rei sorriu, diante da possibilidade de ter o filho em seus braços no primeiro dia do Novo Ano.
— Isso seria maravilhoso.
— Sua Majestade não teme o tumulto? — indagou Merlim. — O Castelo cheio, as fronteiras menos vigiadas?
O alerta subentendido nas palavras de Merlim também não passou despercebido ao Rei Arthur. O Feiticeiro devia ter seus motivos para compartilhar esta preocupação.
— Teremos todo o nosso exército a postos, e também os Cavaleiros da Távola Redonda — afirmou. — E, se preciso for, sei que posso contar com os exércitos de alguns de nossos visitantes para proteger Camelot e meu filho.
Naturalmente, a festa significaria que as criadas estariam extraordinariamente ocupadas, caso a Rainha precisasse de auxílio na hora do parto. Mas quanto a isso, Arthur também não tinha grandes preocupações. Guinevere estava bem assistida. Além da Dama do Lago e de uma Sacerdotisa vinda de Avalon, ela tinha uma nova criada muito atenciosa, uma mocinha chamada Judith, tão tímida que não se atrevia a olhar nos olhos do Rei, mas se desdobrava em cuidados com a Rainha.
Os preparativos foram realizados com todo esmero. Arthur sabia que para Merlim o tempo era como uma estrada, através da qual ele podia ir e vir livremente. E ele havia lhe garantido que seu filho cresceria feliz, junto do pai e da mãe, e que um dia seria um Rei ainda mais poderoso do que Arthur. De modo que, qualquer que fosse a razão para as preocupações do Feiticeiro, ele tinha plena confiança de que seriam capazes de contornar.
Na véspera do Ano Novo, Guinevere amanheceu com uma disposição que havia semanas não sentia.
— É assim mesmo, Majestade — disse Viviane, servindo-lhe o desjejum na cama. — Conforme sua hora se aproxima, a senhora se sentirá cada vez melhor. É provável que seu filho nasça ainda hoje.
— Hoje não — disse a Rainha, fitando a bela mulher de cabelos tão claros que pareciam prateados, como se ela tivesse o poder de retardar a hora do parto. — Prefiro que seja amanhã. Hoje é um dia muito importante para o Arthur.
— A criança tem seu próprio tempo, Majestade. Não se pode escolher quando ela virá ao mundo.
Ainda assim, Guinevere rezava intimamente para que o filho aguardasse apenas mais um dia para nascer. Era essencial que o banquete de Arthur ocorresse sem contratempos. Ele precisava garantir a paz entre os Reinos e o sucesso desta unificação, para que seu filho crescesse numa Britânia mais segura e forte.
Todavia, conforme Viviane lhe dissera, a natureza tem seu próprio tempo, e não se importa com os compromissos dos homens. Guinevere nunca teve tanta certeza disso quanto no momento em que sentiu a primeira pontada em seu ventre. Foi ainda no início da tarde, quando os primeiros convidados começaram a chegar.
— Minha cara, está adorável — dissera Morgause, meia-irmã de Arthur e esposa do Rei Lot, de Orkney, acariciando suavemente o ventre de Guinevere.
A Rainha havia escolhido para a ocasião um vestido azul-celeste, com delicados bordados feitos com fios de prata, que acentuavam seus olhos azuis, e, em contraste com seus cabelos castanho-claros, lhe concedia uma aparência celestial.
— Ela está radiante — concordou Lot. — Como não poderia deixar de ser. Sua Majestade está carregando o futuro de uma nação.
— E será um futuro belíssimo, não importa com qual dos dois a criança se pareça — acrescentou Morgause, destacando a beleza do casal Real.
Além da conquista do trono e de seus feitos em batalha, Arthur também era famoso por sua beleza. Era um homem alto e musculoso, de cabelos e barba castanho-claros e olhos que variavam do verde para o azul conforme a luz.
— Bem-vindos — respondeu a Rainha, graciosa.
Neste momento, enquanto eles entravam no Castelo, Guinevere sentiu a primeira pontada em seu ventre, repousando por um instante a mão sobre o local dolorido.
— Está tudo bem? — indagou Arthur ao seu lado.
— Sim — disse ela, recompondo-se, não querendo deixar transparecer seu desconforto.
"Por favor, meu filho, aguente mais um pouco", pediu ela em pensamento.
Pelas próximas horas. Ela ainda sentiria aquela pontada algumas vezes, conseguindo com esforço ignorar.
O cortejo interminável dos recém-chegados demorou quase uma hora para passar pelos portões do Castelo. Reis de terras vizinhas, Reis de terras distantes, Reis das ilhas, Cavaleiros, Nobres, Bardos, Poetas e Sacerdotes Druidas chegavam de toda a Britânia, com suas comitivas, exércitos e servos.
Para a Rainha, a função de anfitriã não poderia parecer mais pesada naquele momento, com o sorriso caloroso tendo que disputar espaço com a resistência a uma dor que aumentava em frequência e intensidade conforme o dia avançava.
Mas foi somente durante o banquete que ela teve a certeza de que a natureza não estava disposta a obedecer sua vontade naquela noite.
O Castelo de Camelot fora ricamente decorado para a ocasião. Ao atravessar os portões, os visitantes se deparavam com uma fileira de estandartes, representando cada um dos Reinos e territórios que haviam aderido à unificação, de cada lado do pátio de entrada. Sobre o grande portal, o escudo da Britânia reluzia gloriosamente ao sol do fim de tarde. O artesão reproduzira perfeitamente o brasão que Arthur idealizara para o Reino: uma coroa dourada, em cujo centro se erguia uma cruz romana que, em certo ponto, se assemelhava razoavelmente à empunhadura da Excalibur – a espada e a religião fundidas, como os baluartes do Reino, igualadas em poder e força; e sob a coroa duas fileiras de estrelas brancas, cada uma delas representando um território da Britânia unificada, contra um fundo vermelho.
O corredor de entrada também fora ornamentado com lindas tapeçarias representando a glória de Arthur e seus Cavaleiros. A mensagem principal era sólida e incontestável: os povos unidos, fortalecendo a nação.
Os estandartes dos visitantes também estavam espalhados por todo o Salão de Banquete, circundando o teto alto. As mesas foram especialmente decoradas com toalhas de linho prateado, sobre as quais foram servidas as mais requintadas iguarias, desde frutas – como maçãs, uvas, nêsperas e damascos, além das muito apreciadas peras glaceadas com calda de vinho –, vegetais – como cenouras, aspargos, alcachofras e ervilhas –, suculentos assados de carneiro, porco e faisão, além de pães, queijos, mel, amêndoas, vinho e cerveja.
Arthur dera ordem para que a refeição atendesse dos paladares mais modestos aos mais requintados, sem poupar ingredientes em sua despensa.
— Sejam todos bem-vindos — disse o Rei Arthur, em pé no lugar de honra da mesa principal, dando início ao seu discurso. — Quero agradecer a presença de todos e por terem acedido ao acordo de paz para unificação do Reino de Britânia. Sabemos que nenhum tratado pode permanecer em pé se não houver boa vontade e disposição de todas as partes, e uma aliança forte. Desde este momento eu afirmo a vocês, que estou disposto a analisar e acolher as solicitações que os senhores trouxeram, e que farei o que estiver ao meu alcance para garantir que todos os povos se sintam representados e tenham seu espaço nestas terras.
"E que momento melhor para o início de uma nova página na História da Britânia, do que este, em que um ano está terminando, e outro se inicia, trazendo consigo todas as possibilidades e o frescor dos novos tempos?", prosseguiu Arthur. E erguendo seu cálice dourado, propôs um brinde: "Aos novos tempos, a esta nova aliança, e a uma nova Era, que se inicia agora. Que seja uma Era de prosperidade e paz para todos os povos da Britânia. Saúde!"
Todos ergueram seus cálices, compartilhando dos desejos do Rei. E ao provarem um gole da bebida que Merlim preparara especialmente para esta ocasião, todos os olhos brilharam maravilhados diante daquele sabor único.
— Que cálice dos deuses é este? — indagou um dos convivas, o Rei Ban de Benoic.
— Um pequeno presente, para que se possa provar com o paladar a glória que aguarda o nosso Reino — respondeu Arthur, erguendo novamente seu cálice, com um sorriso caloroso, e retornando ao seu assento.
Então, discretamente, ele se reclinou para Merlim, sentado ao seu lado, e perguntou:
— Que bebida mágica é essa?
— Oh, esta coisinha aqui? — disse o Mago, dando de ombros. — Apenas um vinho espumante para comemorações. Será muito popular daqui a alguns séculos. Acredito que se chamará champanhe.
— Meu caro, você não deixa de me surpreender — disse Arthur. — Desta vez, conseguiu engarrafar as estrelas.
Guinevere deu um gole discreto, e precisou se controlar para não beber o cálice todo de uma só vez. Arthur tinha razão: era como se estivesse bebendo as estrelas.
Todavia, não eram ainda as estrelas com as quais sonhara.
A Rainha se esforçava para não demonstrar como seu apetite estava reduzido esta noite. Embora a comida estivesse deliciosa, ela mal conseguira tocar em seu prato. Temia que qualquer coisa que fosse ingerida não conseguisse parar em seu estômago diante daquele desconforto que vinha sentindo desde o início da tarde. Em dada altura, achou que não faria mal arriscar um pedaço de pão. No entanto, uma pontada incomparavelmente aguda em seu ventre escolheu precisamente este momento para afligi-la, levando-a a esmigalhar o pedaço de pão que partira em sua mão.
— O que houve, meu amor? — perguntou o Rei, preocupado.
— Não é nada, meu bem — disse a Rainha, forçando-se a colocar um sorriso no rosto, e fazendo o seu melhor para disfarçar a dor. — Estou apenas cansada. Acha que seria indelicado se eu me recolhesse?
— De maneira alguma, Majestade — respondeu Merlim, pelo Rei. — Naturalmente, todos neste salão são capazes de compreender o vosso estado.
A Rainha assentiu com a cabeça, agradecida. E levantando-se graciosamente, caminhou devagar até o corredor, sendo imediatamente seguida por Judith, sua criada. Era melhor se ausentar, do que correr o risco de o filho nascer sobre a tigela de ervilhas.
Gwendolyn, a Sacerdotisa a encontrou no corredor. Viviane acabara de ver nas Águas Sagradas que a hora do nascimento estava chegando.
— Devo avisar ao Rei? — perguntou a moça.
— Não, por favor! — pediu Guinevere. — Arthur tem ocupações mais urgentes esta noite. Prefiro que ele seja avisado apenas quando meu filho estiver nascendo.
Enquanto a Rainha era conduzida aos seus aposentos no terceiro andar do Castelo, Sir Lancelot, conhecido como Cavaleiro do Lago, por ter sido criado por Viviane, e cuja recepção fora desconfortável tanto para ele quanto para o casal Real, levantou-se de onde estava acomodado, junto a outros Cavaleiros da Távola Redonda, e se aproximou do Rei Arthur, ocupando momentaneamente o assento da Rainha.
— Majestade — disse ele, antes de se sentar. — Posso lhe falar por um instante?
O Rei aquiesceu, indicando o assento vazio ao seu lado.
— Sinto-me no dever de avisá-lo de que Morgana pode estar sondando o Castelo.
— Quem lhe disse isso? — indagou Arthur.
— Quando cavalgava para Camelot, tive sede e debrucei-me para beber e encher meu odre num pequeno riacho a poucas léguas da fronteira Sul. Então, foi-me dada uma visão. Eu vi Morgana erguendo o vosso filho recém-nascido sobre a água, na margem de um rio. Pude perceber nitidamente que ela tinha a intenção de afogá-lo.
Arthur lançou um olhar inquisitivo ao Mago Merlim, sentado à sua direita, e o olhar do Feiticeiro não deixou dúvidas de que ele já conhecia o conteúdo daquela visão do Cavaleiro. Provavelmente, ele próprio a projetara na mente de Lancelot.
— Tenho plena confiança de que meus homens jamais permitirão que aquela mulher perversa cruze os portões de Camelot — disse o Rei Arthur.
— Ainda assim, é melhor manter os olhos bem abertos — aconselhou Lancelot. — Não se esqueça de que ela dispõe de artifícios mais do que suficientes para enganá-los. Talvez ela até já esteja aqui, dentro do Castelo.
Arthur engoliu em seco. Por mais que quisesse acreditar no contrário, sabia que o Cavaleiro tinha razão. Morgana já provara, vezes suficientes, que possuía métodos engenhosos demais para serem subestimados.
— Agradeço, meu bom amigo — respondeu o Rei.
Assim que Lancelot retornou ao seu lugar, Arthur se voltou mais uma vez para o Feiticeiro.
— Tem alguma ideia de onde ela pode estar? — indagou Arthur.
— Sei apenas que ela não fará mal algum ao vosso filho — respondeu Merlim. — E isto basta, por ora.
***
À medida que a virada do ano se aproximava, em sua alcova, Guinevere sentia o filho se aproximando.
— Não é melhor avisar ao Rei, Majestade? — indagou Viviane, enquanto se preparava para realizar o parto.
— Só quando o bebê estiver vindo — respondeu Guinevere, resiliente.
Viviane acolheu sua vontade, a contragosto, e mandou Judith buscar água quente na cozinha.
Assim que a criada deixou o recinto, Viviane chamou Gwendolyn a um canto:
— Não confio nessa mocinha de olhos traiçoeiros — confidenciou à Sacerdotisa. — Siga-a, e faça o possível para que ela não volte até a criança ter nascido.
— Sim, senhora — concordou Gwendolyn.
Enquanto isso, Merlim indicou ao Rei a clepsidra, um grande relógio de água, posicionado próximo à entrada do Grande Salão de Banquete. A meia-noite se aproximava, e o Feiticeiro já tinha tudo preparado para o grande espetáculo que o Rei desejava oferecer aos convivas. Ao que Arthur chamou mais uma vez a atenção de todos, pedindo que se reunissem nas sacadas e nos jardins do Castelo para conferir a surpresa que ele lhes havia preparado.
Todavia, antes de se juntar a eles, o Rei quis verificar se a esposa estava se sentindo melhor.
Evitando ser abordado por algum visitante, Arthur se dirigiu ao corredor que levava à escada de serviço, próxima à cozinha do Castelo, e ao se virar numa passagem, quase esbarrou em Judith, que vinha trazendo a jarra com água quente numa bandeja, que, felizmente, não entornou.
A primeira coisa que o Rei notou foi a jarra, dando-se conta de que o filho podia estar nascendo naquele exato momento, e sabendo que Guinevere era generosa o bastante para não querer interromper os festejos. Em seguida, ele notou o olhar da criada, no breve instante em que ela o olhou no rosto, baixando a cabeça rapidamente em seguida. Foi apenas um segundo, mas o suficiente para que ele reconhecesse o olhar perverso que somente conhecera em um rosto.
A moça tentou desviar dele e seguir seu caminho, porém, ele a deteve, agarrando seu braço.
Em seguida, chamou uma criada que vinha passando.
— Matilde, leve isto aos aposentos da Rainha — ordenou o Rei, indicando a bandeja com a jarra de água quente.
A criada obedeceu sem questionar.
Então ele arrastou Judith sem muita delicadeza até o corredor vazio.
— Belo disfarce — observou o Rei, encarando a criada de estatura baixa, talvez uns quatorze anos, de cabelos negros e olhos castanhos. — Mas não pense que pode me enganar.
— Meu senhor... — começou a suplicar a criada, com a voz trêmula, mas Arthur percebeu a dissimulação naquele tremor.
— Não se atreva a testar minha inteligência. Tenha a decência de mostrar seu verdadeiro rosto, Morgana!
Neste momento, quatro Cavaleiros – Sir Gawain, Sir Percival, Sir Boors e Sir Tristan – vieram marchando pelo corredor, saindo do Grande Salão. A moça lutava para se soltar das mãos de Arthur, mas imediatamente esbarrou em Lancelot, que fechava o cerco às suas costas.
— Vai a algum lugar? — indagou o Cavaleiro do Lago, cravando duramente seus olhos nos da Feiticeira.
— Ela irá, sim — disse Arthur. — Para bem longe de Camelot. E do meu filho.
— Seu filho... — desdenhou ela, desfazendo o encanto que modificava sua aparência, e mostrando sua verdadeira face: os cabelos ruivos e os olhos verdes sedutores, crescendo também em estatura e em idade. — Engraçado como essas palavras soam cheias de orgulho em sua boca. O Rei apenas se esquece de que já tem um filho. Um herdeiro.
— Você sabe tão bem quanto eu que Mordred jamais poderia ser meu herdeiro — corrigiu Arthur.
— Porque é um bastardo — assentiu Morgana. — Como você, a propósito.
— Morda sua língua antes de ofender o Rei! — ralhou Sir Gawain, desembainhando a espada.
— É ofensivo dizer a verdade? — respondeu ela, atrevida. E prosseguiu, para o Rei: — Uther Pendragon, vosso pai, lançou mão da magia para possuir vossa mãe, quando esta ainda era esposa de Gorlois, Duque da Cornualha. Como meu filho Mordred pode ser mais bastardo do que você, Majestade?
Arthur não deixou de notar que a última palavra fora carregada de desdém.
— O nascimento de Arthur foi profetizado — disse Sir Percival. — Merlim...
— Merlim! — cuspiu Morgana. — Claro... O que aquele Feiticeiro diz é lei neste lugar.
— Se Arthur não estivesse predestinado a ser o Rei, ele nunca teria conseguido tirar a Excalibur da pedra — disse Sir Boors. — Muitos tentaram e falharam.
— Então coloque-a de volta na pedra e permita que meu filho prove seu direito de sangue.
— Já chega, Morgana! — bradou o Rei. — Não vou discutir isso com você agora. Esta é uma noite muito importante para mim e para toda a Britânia, e não vou permitir que você a envenene.
— Mordred será seu sucessor, com ou sem a sua aprovação — garantiu a Feiticeira.
— Mordred tem seu lugar garantido na Távola Redonda, se quiser, mas ele nunca será Rei.
— Isto é o que veremos. Esta noite, você rejeitou seu filho, Arthur, e graças a isso, ganhou um inimigo.
— Levem-na para fora das divisas deste Reino — ordenou Arthur aos Cavaleiros. — E tenha em mente, Morgana, que, se voltar a pôr os pés em Camelot, não serei misericordioso.
Enquanto os quatro Cavaleiros retiravam Morgana do Castelo, Arthur se voltou para Lancelot:
— Sou grato, meu amigo, por sua lealdade.
— Fiz apenas o meu dever, Majestade — disse o Cavaleiro do Lago.
— Nós dois sabemos que sua lealdade transcende o dever — disse Arthur, referindo-se aos sentimentos que ele estava ciente de que o Cavaleiro nutria pela Rainha, e dos quais já há muito tempo não sentia qualquer ciúme. Mesmo sabendo que, por algum tempo, Guinevere retribuíra ao amor de Lancelot, estava certo de que já não havia mais espaço no coração da esposa para outro homem além dele próprio.
— É uma honra para mim zelar pela vida do futuro Rei da Britânia — disse Lancelot, solenemente.
— Creio que meu filho esteja nascendo neste momento — disse Arthur, com uma lágrima de emoção nos olhos, e um sorriso orgulhoso nos lábios.
— Vá, Majestade — assentiu Lancelot. — A Rainha precisa do senhor. Os Cavaleiros podem cuidar de seus convidados. E estou certo de que Merlim saberá como mantê-los entretidos.
Arthur assentiu para o amigo, e se apressou em direção às escadas, alcançando rapidamente o terceiro andar, e chegando-se à porta da alcova da Rainha, no mesmo instante em que Gwendolyn – que retornara ao aposento após testemunhar a descoberta e expulsão de Morgana – abria a porta, a pedido de Viviane, que pressentira a chegada do Rei.
— Pode entrar, Majestade — disse a moça. — Vosso filho está nascendo.
Porém, antes que Arthur passasse pela porta, ouviu-se o som de uma explosão, seguida de outra.
— O Castelo está sendo atacado? — perguntou a Sacerdotisa, encolhendo-se assustada, sob o batente da porta.
Era meia-noite. Um Novo Ano se iniciava naquele instante.
— Está tudo bem — disse o Rei, ajudando-a a se levantar e tranquilizando-a. — São apenas os fogos de artifício.
— O que é isso? — indagou Gwendolyn.
— Uma surpresa que eu pedi que o Merlim preparasse para deslumbrar os convidados.
A moça não compreendeu ao certo o que ele quis dizer, mas, confiando que o Rei tinha tudo sob controle, fez menção de entrar no quarto para ajudar Viviane a trazer o filho do Rei Arthur ao mundo. Ouviu-se, então, o choro do bebê, misturando-se ao alarido das celebrações. Emocionado, o Rei quis correr para dentro do aposento, mas a Sacerdotisa pediu que ele aguardasse, enquanto Viviane limpava a criança.
Quando finalmente foi autorizado a entrar – depois do que lhe pareceu uma vida inteira, dada sua ansiedade –, o Rei encontrou a Dama do Lago colocando o bebê nos braços da mãe.
Ele se deteve por um instante, admirando aquela imagem, gravando-a em detalhes em seu coração. Guinevere parecia exausta, e, ao mesmo tempo, radiante, com as faces coradas, o cabelo em desordem, o suor descendo pela testa, e um sorriso divino, repleto de amor em seus lábios, fitando o bebê.
Seu filho.
— Venha conhecer o seu filho, Majestade — disse Viviane ao Rei.
Arthur se aproximou, lentamente, comovido por finalmente ver o rosto do filho que ambos desejavam havia tanto tempo.
Guinevere aninhara o bebê, de modo a proteger seus ouvidos sensíveis do barulho estrondoso que vinha de fora.
— É um menino, Arthur — sibilou a Rainha, emocionada, quando o marido se sentou ao seu lado no leito.
— Nosso menino, meu amor.
— Precisamos lhe dar um nome.
Arthur pensou por um momento.
— Ele será um líder forte e corajoso. Por isso, vamos chamá-lo de Richard.
— Richard... — experimentou Guinevere, aprovando a escolha ao ver o bebê dar um sorrisinho.
— Majestade... — sibilou Viviane, aproximando-se da sacada. — Veja.
Arthur e Guinevere, ergueram os olhos e fitaram no céu o espetáculo que encantara a Dama do Lago.
Milhares de luzes vermelhas, verdes, douradas e azuis explodiam contra o céu noturno, espalhando-se e colorindo a chegada do Novo Ano.
Como no sonho da Rainha Guinevere, e na visão da Dama do Lago, o nascimento do Príncipe Richard coincidira com este lindo espetáculo luminoso, nunca antes testemunhado naquela parte do mundo, como se ele tivesse trazido consigo aquelas luzes encantadoras.
Um espetáculo digno da chegada do herdeiro do Único e Eterno Rei.
— A visão está se realizando, Majestade — disse Viviane à Rainha, sem tirar os olhos do céu. — Está chovendo estrelas.
Nota:
Britânia – nome pelo qual a Inglaterra era conhecida no século VI d.C., época na qual a história está ambientada. Não confundir com a "Bretanha", região no noroeste da França.
[5.043 palavras]
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