E algo pareceu rachar no peito do demônio
— Eu odeio isso. Fome, luxúria mórbida pela caça. Esse corpo - Sebastião comentou. Deitado de barriga para cima no telhado. Olhos negros rumo a lua.
A oni o fitou. A robustez do corpo do licantropo reduzira para pouco mais que atlético. O branco voltara a dividir as orbitas com o negro.
Ele, Sebastião, usava calças cinzentas. Com rasgos na dianteira da coxa direita e panturrilha esquerda. Fedia a resquícios de suor e ao sangue endurecido ao redor da mandíbula.
— Sério? - perguntou. Como a assassina que erguia-se acima de pilhas de ossos. Que nutria nenhum desejo em ser um desses ossos. E gratidão por ter sido mais forte que os agora ossos.
Estava deitada ao lado dele, braços servindo de travesseiro a nuca. Lábios quietos e a pouco de uma linha reta.
— Hmmm... não exatamente - a voz do homem era grossa, mas ele quase a punha a sumir. Ciente da natureza ameaçadora, inclinado a minimizá-la. - Mas é cegante... Às vezes parece tirar a escolha. ''Devo matá-lo ou não?'' e não há um ''não'' entre as opções. Meu corpo enche-se com a memória do ''sim''. Prazer, prazer... Minhas mãos e boca movem-se com vida própria. Então uma mancha vermelha, às vezes restos, de quem eu pesava sobre matar ou não. Alguns... eu realmente odeio ter matado alguns. Pessoas que...
— Chora tããão allllto - ela. Ríspida. O lilás das íris virando-se para as estrelas no céu. Desprezo pondo o estômago a balançar.
Silêncio. O licantropo encarou a pequena criatura a sua esquerda. Punhos foram a meio caminho de fechar, pousados sobre as calças cinzentas. O odor de violetas, do sangue do demônio e das vidas andando pelas vias entrando pelo focinho.
A boca da oni continuou. Pairando em uma quase retidão. Com breu cortado por tochas delineando a silhueta. O frio das telhas de barros sob as costas. Uma inclinação tênue a baixo.
— Acha que alguém vai te perdoar por tê-las matado? Se elas forem ressuscitadas três dias depois, te odiarão. Se três anos, se três séculos. Se perguntadas sobre você, não teriam nada além dos piores desejos. Porque as matou como se não fosse nada - riu. Olhou para as órbitas do homem lobo. Pôs o abstrato violeta de fome contra o negro dele. Era indiscriminada e despropositada gula. Capaz de devorar o mundo e a si mesma por razão nenhuma além da própria existência. - Pior, ''sem querer''. A vida delas, com tudo de bom que possuía, tudo de bom que poderia vir a ter... que ainda precisava ter, foi tomado por alguém que só não estava prestando atenção o bastante em quem pairava sob seu pé. Que horrendo... até eu estou começando a odiar você.
A mandíbula do licantropo não abriu.
''Oh, acertei uma ferida?''. Sorriu. O lilás da íris deslizou na direção da cauda quieta do homem lobo. Azul acinzentada, com uma mancha branca na superfície de baixo.
— Não me leve a mal - disse amistosa. - Se arrepender é tolice. É amargo, sem valor. Siga em frente. Ninguém liga para razões, dilemas, dores ou o que seja do monstro que as rasgou, mastigou e esmagou. Mas caso ainda queira pôr alguma ação sobre o assunto...
O olhar dele não a deixava. Com o som de passos na rua abaixo da residência com dois andares. Com a conversa escapando da janela do segundo. Um homem e sua filha. Ele gastara metade da renda do mês rapidamente de novo. Em mapas de tesouro e remédios capazes de curar tudo se a fé fosse forte.
''Estranhamente ninguém nunca teve fé o bastante para curar algo mortal... ou uma doença que o acaso e o descanso não pudessem. Os mapas sempre são vagos demais. Os vendedores afirmam que certamente há um baú rico no local, em algum ponto do vasto um quilômetro marcado no mapa''.
A oni fechou os olhos.
''De novo''. ''Arrependimento?''
Ele pedia desculpas, o homem com a filha. E ela o lembrava de que era a terceira vez seguida.
— Não repita... - a criatura com longos chifres, tom distante. A discussão no cômodo abaixo se acalorando. - Fora isso... sequer existe uma atitude que valha a pena?
O licantropo espirrou. A mão subiu e coçou o nariz.
— É o que faz? - ele.
Embaixo a menina acertou um ruidoso tapa no pai. Silêncio, passos. A porta abriu-se e fechou. O homem se deixou cair sobre joelhos. Agora só, no chão do quarto. Após se arrepender três vezes. Se desculpar três vezes.
A pequena mulher no telhado gargalhou. Voltou a olhar o rosto lupino de Sebastião.
— Acha que tenho em mim espaço para pensar sobre mortos? - a oni, pousando teatralmente a mão no peito. - Pobre cachorro. Minha figura e modos angelicais o tapearam a esse ponto?
Ele desviou a face para o céu. Peito a subir e descer. Cauda a balançar lenta entre as coxas.
Azul. Azul cinzento. E branco. Um branco creme. A pelagem da fera.
''Tão quieto''. O estômago da oni. ''Não me pede carne''.
— Sim - Sebastião.
E algo pareceu rachar no peito do demônio.
Ela fitou a região. Nada. O bater do coração soando sob a mão.
''Quase''.
Por um momento a possibilidade de se arrepender do modo como vivia esteve perto de nascer.
— Não seja estúpido. Eu vou matar você assim que o primeiro indício de desejo bater na porta - respondeu, aura expandindo-se e agitando o ar. Pressionando os músculos do licantropo, pondo telhas a tremer. Sorriu para ele. - Perto de mim você é a droga sarnenta de um filhote inofensivo.
— Por que está agindo assim?
O fitar da face lupina na face demoníaca. Lua acima acompanhada por uma míriade de estrelas. Ruas abaixo intocadas por pés e manchadas por luz de tochas.
Odor forte de álcool e suor e violetas.
A face dela tensionou. Mãos fecharam e boca se aproximou de uma linha reta.
— Escute bem, vira-lata. Pare, desconfie, fuja, se afaste, trame minha morte... e talvez viva. Nada de bom vem de esperar que o demônio escute algum pedaço menos assombroso de sua consciência.
— Mas eu vou faz...
A oni girou, agarrou a garganta dele e pôs-lhe joelhos sobre o peito quente e felpudo. Trajava quimono de mangas curtas acima de pele nua. O tecido marcado pelo desenho de uma cobra. O réptil enrolava-se do ombro a borda inferior.
Sebastião tossiu, os dedos dela afundando na carne. Os próprios fechando-se e rasgando as telhas. Fiapo de ar lutava para atravessar o caminho aos pulmões. Visão era preenchida pela mulher manchada por luz noturna, um branco delineado pelo mais profundo breu.
O núcleo vibrante de cores absorvidas pela escuridão.
— Oh, dizia algo? Talvez por ter passado um minuto e meio em uma luta comigo ache estar seguro - a outra mão da oni afundou-se no músculo do ombro dele. Um alto ganido ressoou na noite. O homem lobo retorceu e rosnou e forçou o tronco acima... mas não subia. Os braços tensionavam, remexiam... e não conseguiam deixar o chão. - Sabe o que dizem de Jormungand? Que irá crescer e crescer e ficará grande o bastante para devorar o mundo. Eu realmente não cresci mais de meio centímetro nos últimos anos, mas se me perguntar o quão mais forte fico do nascer de um dia ao outro... te diria algo desesperador de tão injusto para todos que se esforçam.
Os olhos do licantropo haviam perdido o branco. Rosnar e baba escapando da boca canina. Peito peludo a subir e descer tenso. Cada fio azul cinzento e branco arrepiado.
Ela baixou o rosto a um dedo das mandíbulas, olhar nas poças de breu no homem lobo. Dentadas vindo e indo, o pescoço incapaz de fazê-las alcançarem a oni.
— Se eu te ver de novo, você morre - avisou e o deixou no teto. A toxina paralisante, posta quando o perfurou no ombro, levaria dez minutos até perder efeito.
A boca tremeu ao pular para o telhado vizinho.
Mordeu os lábios e os lembrou: ''Eu não me importo''.
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