Capítulo 27 - Guess I'd rather hurt than feel nothing at all (Bárbara)
Guess I'd rather hurt than feel nothing at all
(Acho que eu preferiria sofrer do que não sentir absolutamente nada)
It's a quarter after one,
(São uma e quinze da manhã)
I'm all alone and I need you now
(Eu estou totalmente sozinha e preciso de você agora)
And I said I wouldn't call
(E eu disse que não iria ligar)
but I'm a little drunk and I need you now
(mas eu estou um pouco bêbada e eu preciso de você agora)
And I don't know how I can do without,
(E eu não sei como sobreviver)
I just need you now
(Eu só preciso de você agora)
Need You Now – Lady Antebellum
Eu só me dei conta de que tinha comido metade do pote de sorvete quando a outra metade começou a derreter. Horrorizada, dei um salto na cama. Minha mãe estava trancada no quarto, então consegui correr até a cozinha sem ser encontrada. Joguei o pote no fundo do freezer. Com sorte minha mãe acharia que era feijão. Rosana, a moça que trabalhava lá em casa, tinha uma mania esquisita de guardar comida, especialmente feijão, em pote de sorvete. Ela tinha até trazido alguns potes de casa, visto que ninguém consumia sorvete na residência dos Adler.
Voltei para o quarto, limpando a boca com as costas da minha mão. Que ninguém consumia sorvete na casa podia até ser mentira, mas se eu conseguisse agir rápido, ninguém iria digerir. Fechei a porta do quarto e me encarei no espelho. Meu estomago estava projetado, entupido de sorvete. Era tão feio que dava vontade de chorar. Girei de lado, encarando o que parecia quase uma barriga de bebê já.
Sua ridícula. Gorda. Olho grande. Não devia ter comido um pote quase todo de sorvete! Devia ter isso da droga da aula de yoga com a sua mãe, pelo menos ia perder algumas calorias ao invés de engordar mais ainda. Eu era uma tragédia. Minha mãe também estava certa sobre meu cabelo e minha aparência, como um todo. Horrorosa. Celulites na bunda, um culote muito maior do que deveria, peitos bem menores do que eu desejava e agora... Essa barriga gigantesca. Que garota ridícula. Eu dei uma risada da minha própria desgraça. Não havia nem motivo para sequer considerar que o que Rafael disse na saída daquele elevador era minimamente perto da verdade. É claro que ninguém era capaz de me amar. Não quando minha aparência era daquele jeito.
Respirei fundo e andei na direção do banheiro. Ajoelhei no chão gelado, me apoiando na privada. Antes de levantar meus dedos até a garganta, evoquei meu mantra: aquilo me fazia mais forte, aquilo me fazia mais magra, aquilo me fazia mais feliz. Depois de tantos anos, era tão fácil colocar tudo para fora. Minha garganta já estava acostumada e era só eu dar um pequeno toque que a solução vinha. Às vezes tão rápido que até eu era pega de surpresa.
Não era agradável. Eu passava o tempo todo desejando que acabasse logo mas, ao mesmo tempo, com uma sensação crescente de leveza. De alguma forma, vomitar já era parte de quem eu era. Eu tinha certeza que o pouco de confiança em mim mesma que hoje eu conseguia carregar no peito veio dessa maneira. Foi conquistada durante os anos e através dos quilos a menos.
Mas eu era uma pessoa bem ruim. A partir do momento que comecei a me sentir tão inferior a ponto de não me sentir nem digna de estar viva, tinha mudado minha estratégia. Porque não importava o quanto o vomitasse e o quão magra eu estivesse, eu continuava me sentindo incapaz. Então, comecei a me tornar maior ao diminuir os outros, da mesma forma que eu me sentia diminuída.
Não achei que fosse funcionar. No início, achei que todo mundo ia me olhar torto e ignorar. Quem era eu para ser respeitada, não é mesmo? Tinha sido trocada por uma intercambista russa, para início de conversa. Mas funcionou. Eu não tinha estrutura para apavorar pelo físico, mas eu apavorava pelas palavras. O que eu dizia sobre as pessoas aos poucos se tornava lei e todo mundo desenvolveu um respeito supremo por mim que, na verdade, acho que era um pouco de respeito e um pouco de admiração.
A única pessoa que continuava sem nenhum respeito comigo era eu mesma.
Levantei do chão, dei descarga e tratei de cuidar dos meus dentes. Apertei meu perfume algumas vezes, para disfarçar algum possível cheiro. Vomitar não era nocivo a ninguém e me fazia melhor, mas minhas outras ações eram, majoritariamente, muito danosas ao restante das pessoas que convivia comigo. Quando olhava para trás e via todo mal que eu tinha deixado como rastro, ficava triste. Não era minha intenção, mas era a única forma que eu tinha encontrado de não ser mais pisoteada.
Deitei de volta na cama, me enrolando em uma pequena bolinha e lembrando de algumas pessoas com as quais eu fui uma completa idiota. O nome Julie me vinha a cabeça com frequência. Talvez porque os motivos que me fizeram prossegui-la não faziam quase nenhum sentido. Mas, na época, a situação tinha toda sua lógica.
Julie era a menina nova. A novidade. A diferente. A esquisita. Todo mundo só falava dela. Eu tinha acabado de terminar um curto namoro com Torrez, um dos meninos mais populares do colégio. Os dois logo ficaram amigos e os boatos que corriam era que eles eram, inclusive, muito mais que isso. Eu fiquei possessa. Como poderia perder, de novo, um garoto para uma menina qualquer? A ferida daquela troca alimentava minhas lembranças da troca anterior. Então, para me defender, eu fiz a única coisa que eu sabia: ataquei.
Passamos o ano todo nessa batalha sem fim, chegando ao ponto de trocar puxões de cabelos e arranhões nos corredores do colégio. Tudo isso por um cara que, na verdade, eu nem amava. Mas ele era um ótimo menino, de verdade. Estava sempre preocupado comigo, mesmo depois do nosso término. Vivia tentando me fazer enxergar outras possibilidades, vivia pedindo para eu cuidar de mim mesma e tentava explicar que, talvez eu ainda não tivesse percebido, mas a gente nunca tinha sido o casal perfeito que eu achava que éramos. Fazia sentido, não fazia? O capitão do time de basquete e a melhor líder de torcida? Foi um período difícil.
Demorei muito tempo para perceber que o problema em si não era que os dois estivessem em um possível relacionamento. Nem mesmo todas as lembranças de Rafael ter me largado que aquela situação trazia. O problema era que toda vez que eu via os Torrez e Julie juntos, rindo e se olhando de um jeito especial, eu me dava conta de que nunca mais teria aquilo que eles tinham. Só existia um grande amor na vida de cada um, não é mesmo? Julie e Torrez eram o amor um do outro. O primeiro, o mais forte e aquele inesquecível.
O meu já estava no passado. Pena que não suficientemente escondido para me impedir de lembra-lo constantemente.
Monterey – Mês de Junho – 2010
Torrez tinha vencido o concurso e era o rei do baile. O problema era que ninguém conseguia acha-lo salão. Ele e a Julie não estavam em um momento muito bom, pelo que eu tinha ficado sabendo. Os holofotes corriam pela plateia, em busca do rei do colégio, mas ele não estava mesmo em lugar nenhum. Fiquei preocupada, mas com toda honestidade, estava mais preocupada em perder o concurso.
Eu era a rainha daquela escola. Meu apelido pelos corredores, quando todo mundo achava que eu não estava ouvindo, era rainha da fofoca. Eu era temida e adorada. Todas as meninas queriam ter minha beleza e todos os meninos queriam sair comigo. Eu tinha que ganhar o concurso, ou toda minha construção de imagem iria por ralo abaixo – de novo. Estava cansada de ficar me construindo toda hora.
Cansados de procurar por Torrez, os organizadores do baile resolveram coroar primeiro a rainha. Todas as concorrentes estavam no palco, sorrindo de orelha a orelha. Menos Julie, que até chegou a subir no palco mas, na hora que o responsável pelos anúncios estava prestes a dizer o nome, ela já tinha feito uma retirada estratégica e estava terminando de descer as escadas.
— Ah, Torrez apareceu — nossa diretora disse no microfone, cortando todo clímax da revelação de quem seria a coroada.
Um feixe de luz seguiu um rapaz na plateia e eu enxerguei Torrez correndo na direção do palco. Ele era lindo, não dava para negar. Eu vi Julie congelar na beira das escadas, incapaz de se mover. A revelação da presença de Torrez parecia mais importante para ela do que a própria revelação de quem seria a rainha.
— Então, sem mais delongas, a rainha é... — O organizador disse novamente.
Eu tentei não tremer.
Era eu. Tinha que ser eu. Eu era a rainha de forma indireta já. Como eu explicaria para minha mãe se não fosse eu? Era necessário. Eu tinha batalhado tanto para ser magra, bonita e... tá, não tinha batalhado tanto assim para ser uma boa pessoa.
— Julie Kreeman! — o organizador gritou no microfone.
Eu contive um grito. Julie foi empurrada de volta para cima do palco, tropeçando nos próprios pés. Eu tentei dar um sorriso e bater palmas, como todas as outras nomeadas, quando ela foi coroada. Precisava sair do palco antes que não fosse mais capaz de conter minhas lágrimas.
— Agora o casal escolhido da noite vai reabrir a pista com a dança da realeza — nossa diretora disse, apontando para a pista. — Abram espaço, por favor.
Os dois desceram, sorrindo discretamente e olhando um para o outro daquele jeito de sempre. Eu corri para fora do palco, atravessando as portas corta-incêndio que levavam até a escada de incêndio. Talvez o universo estivesse tentando me dizer algo ao fazê-la ser coroada rainha do baile no meu lugar. Mas eu não queria ouvi-lo. Subi os degraus dela correndo, ouvindo meu salto bater contra o metal. Só parei quando cheguei no último andar, um terraço com vista para toda Monterey. Andei perdida e me joguei no chão, cansada o suficiente para nem me preocupar com sujar o vestido. Não adiantava nada tentar continuar bonita se a rainha da noite era outra pessoa.
Comecei a chorar. Tanto que eu sabia que minha maquiagem não ia aguentar, por mais que fosse a prova d'água. Chorei para aquela Monterey adormecida, lugar que eu amava mas que, pelo jeito, não estava mais me amando tanto assim. Tudo só vinha dando errado na minha vida, desde que Rafael tinha me deixado. Eu não me reconhecia, eu não me entendia e – por mais que eu me esforçasse – eu não me amava. Continuava me achando não digna.
Era o final da droga do colégio e tudo que eu conseguia sentir era solidão, dependência e insegurança. Não parecia ser uma maravilhosa combinação para começar a vida adulta, não é mesmo? Eu queria que o choro me confortasse e me fizesse melhor, mas ele parecia só piorar a situação. A angústia era tanta que eu não sabia como resolver. Eu precisava falar com alguém.
Só que, a única pessoa que eu queria falar era a responsável por tudo aquilo.
A culpa era dele.
Pelo menos um pouco.
Eu abri minha bolsa de forma estabanada, quebrando minha unha no processo. Não era mesmo meu dia. Era melhor ter ficado em casa de pijamas, assistindo Gossip Girl. Minha mãe me mataria quando a conta do telefone viesse, se ela realmente fosse fazer uma análise. Mas era só um telefonema.
Para o Brasil, mas só um.
Eu digitei o nome dele. Não era um motivo de orgulho, mas eu tinha salvado o número do Brasil que ele tinha usado para me mandar mensagens no primeiro Ano Novo depois dele ter ido embora. Ajeitei o número que apareceu na tela, acrescentando os códigos necessários para fazer uma ligação para o país. É claro que eu sabia quais eram. Já tinha feito essa pesquisa um milhão de vezes, mas nunca completado a ligação.
Eu limpei as lágrimas e respirei fundo, colocando o celular na minha orelha. Que horas seriam no Brasil? Droga, eu não fazia ideia. Tirei o celular da orelha só para conferir a hora: em Monterey já passava de 1 da manhã. E se ele estivesse dormindo? E se ele não atendesse? Ou pior, e se ele atendesse? O que eu iria falar? Como eu conseguiria falar, sem desabar em prantos? Essa era uma ideia horrível! Eu deveria desligar o telefone...
Mas não desligo. Ouço todos os toques, até a moça da secretária eletrônica começar a falar algo ininteligível em português. Desligo, metade triste e metade aliviada. Será que ele ligaria de volta no dia seguinte? Pelo menos eu o deixaria com uma pulga atrás da orelha, com aquela ligação perdida... Mas nenhum daqueles pensamentos era reconfortante.
Guardei o celular de volta. Levantei do chão e bati no meu vestido, tentando tirar o excesso de poeira. Caminhei lentamente na direção da escada, respirando fundo e olhando a paisagem. Eu me sentia tão pequena. Naquele momento não tinha ninguém. Até Ruth estava chateada comigo. Desci as escadas e me obriguei a parar no andar correto e voltar para o baile. Minha vontade incial era de continuar descendo, até o térreo e ir embora. Eu não podia. Eu era a representante de turma e tinha sido a responsável por organizar tudo aquilo. Precisava estar presente para o caso de dar alguma coisa errada.
Eu atravessei o salão de cabeça erguida, caminhando até a barraca do ponche. Não tinha ninguém para falar, nem nada para fazer. Precisava parecer ocupada. Feliz. Despreocupada... enchi um copo de ponche antes de me dar conta que eu nem gostava muito daquela bebida.
— Oi — alguém disse ao meu lado. — Bárbara, né?
Eu me virei para encarar. Era um menino do outro colégio que dividia o baile com o meu. Ele também tinha sido indicado para rei do baile, mas tinha perdido o título para Torrez. Estava sorrindo, parecia simpático, mas tinha uma escolha de guarda-roupa duvidosa, porque estava usando um cinto de cowboy.
— Oi — eu respondi.
— Meu nome é Paul — ele disse, ainda sorrindo. — Posso te levar para dançar?
Eu olhei para ele novamente, surpresa. Pousei o copo cheio de ponche na mesa, feliz por poder me livrar dele. Então, estiquei minhas mãos para ele e deixei que ele me conduzisse para a pista de dança. Afinal, eu precisava manter minha fachada. Não podia parecer totalmente arrasada por ter perdido a rainha do baile, que era como eu verdadeiramente me sentia.
— Eu sei que você deve ouvir isso o tempo todo — Paul disse, me puxando para perto durante nossa dança. — Mas você é muito linda.
— Obrigada — eu sorri, escondendo meu rosto.
Era exatamente daquilo que eu precisava. Alguém para dizer algo bom sobre mim, naquele momento onde eu mesma não conseguia pensar em nada. Um pouco de distração, um pouco de flerte e um pouco de esquecimento. Era melhor que ponche, com certeza.
Julie e os amigos estavam rindo em um grupinho por perto, parecendo tão felizes. Eu invejei novamente. Não tinha um grupo de amigos. Eu afastava todo mundo de perto. Ruth provavelmente só convivia comigo ainda porque era uma santa, porque Deus sabe como eu já tinha judiado dela também.
Paul continuou conversando e dançando comigo e ele parecia saber todas as frases corretas para baixar minhas paredes e amolecer meu coração naquela noite. Continuava falando sobre como eu era bonita, sobre como todo mundo falava que eu era muito bonita, sobre como minha beleza era conhecida até no colégio dele... Falava sobre como eu era magra, mas "com todo respeito" muito gostosa. Elogiava minha boca, meus olhos e meu cabelo. Toda vez que ele tocava minha cintura, eu dava mais um passinho para frente, querendo chegar mais perto.
Fui eu que o beijei.
Ele me fazia sentir mais como a Bárbara que todo mundo achava que eu era e menos como a Bárbara que eu realmente era – aquela que chorava pelo ex-namorado no terraço, durante a festa de formatura. Talvez ele não fosse a melhor escolha pro futuro – e só Deus sabe como verdadeiramente não foi – mas naquele momento, ele era perfeito.
Afinal, eu não estava procurando por um novo primeiro, forte e inesquecível amor. O meu já estava no passado. E tremendo o celular na minha bolsa.
Não atendi.
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Desculpa o atraso! Esse capítulo foi super difícil de escrever. Tive que pesquisar mais um pouquinho sobre bulimia para conseguir trazer um relato bem real. Dá vontade de pegar essa menina Bárbara e cuidar dela! Nunca pensei que fosse sentir isso com relação à vilã de Mocassins e All Stars. Escrever é algo muito louco mesmo.
Queria agradecer de novo!!!! O livro passou de 80 mil leituras! Morta feat enterrada! A missão #100k continua em andamento, hein! Vambora! :D Falta bem pouco pro livro acabar e os capítulos seguintes vão ser tiro atrás de tiro. Espero que vocês estejam devidamente vestidos com colete à prova de bala!
Amanhã, dia 25 de Maio, Mocassins e All Stars faz 3 anos de publicação! Para comemorar, eu fiz uma sequência de vídeos no Youtube, contando um pouco mais da história e das fofocas. Não tem spoilers, então todo mundo pode assistir :) Meu canal é /clarasavelli.
Começou o sorteio de um exemplar de Mundos Paralelos autografado por 8 autores! Para participar vocês precisam fazer parte do meu grupo de leitores no facebook (/acampamentodeleitoresdaclarasavelli ou procure na busca: leitores da clara savelli). Não dá para perder!
E, na real, OBRIGADA de novo. Eu tenho dito dias (bem) melhores, mas ontem por exemplo bateu a maior bad. Não consegui escrever direito. Pensando em vocês, fui dormir mais cedo, para acordar mais cedo e melhor. Funcionou. Postar C&SA foi minha primeira atividade do dia. Obrigada por vocês existirem <3
Até terça!
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