Quatro
A lua pálida observa, fria e distante,
Enquanto as peles se tocam,
Constante.
Nos lábios, um gosto de eternidade e dor,
Onde o sangue é o vinho do proibido amor.
O tempo se estilhaça
No abraço das trevas, onde o desejo se embasa.
No crepúsculo, entre sombras e sonhos,
Deslizam os corpos, em anseios risonhos.
Alyn
Estou estirada no chão do apartamento que divido com Veroni, enquanto o som suave dos utensílios ecoa da cozinha, ela está preparando algo que imagino serem panquecas, mas minha mente vaga longe, presa em um cansaço profundo. Meus olhos se fixam na sacada, onde as luzes e hologramas da cidade piscam com um brilho que não consigo mais apreciar, sinto-me entorpecida, apática, desconectada de tudo ao meu redor.
A voz de Veroni flui incessante, preenchendo o silêncio com sua raiva contida. Ela discorre sobre o protesto que acontecerá mais tarde, uma rebelião contra o presidente Andrei Orlov. Entre as palavras, percebo o arrependimento em seu tom, a amargura por ter sido enganada, por ter acreditado nele. "Como pude ser tão estúpida em votar nesse tirano?", ela diz.
Eu continuo em silêncio, o peso do mundo repousa sobre meus ombros, mas a resposta que ela espera não vem. Tudo o que resta em mim é o vazio, uma exaustão que as palavras dela não conseguem penetrar.
Veroni continua a falar, a revolta tingindo cada sílaba, mas suas palavras são como ecos distantes, diluídos pelo espaço entre nós. Eu olho para o teto, os olhos vazios, tentando encontrar algo nas rachaduras, alguma sensação que me desperte da apatia, mas tudo o que encontro é o peso esmagador da indiferença. A luminosidade da cidade, por trás das janelas, parece zombar de mim, enquanto a vida lá fora segue, vibrante, indiferente às minhas pequenas revoltas internas.
Sinto o cheiro das panquecas começando a queimar, mas Veroni, perdida em seu monólogo sobre Orlov, não percebe, ela menciona como o governo dele trouxe sombras às ruas de São Petersburgo, como ele transformou o país em uma noite eterna, onde os vampiros caminham impunes, protegidos por leis que ele mesmo forjou. "Ele é um monstro," ela sussurra, e por um breve momento, sinto a tensão em sua voz, um temor que ela não admite em voz alta.
Ainda assim, não respondo. A minha mente vaga, refletindo sobre tudo que perdemos sob o domínio de Orlov. Ele não é apenas um líder, ele é o peso de uma era sombria, um predador que consome lentamente o que resta de nossa humanidade. Veroni fala de revolta, de resistência, mas tudo isso parece tão distante para mim agora. A exaustão me prende ao chão, incapaz de lutar, incapaz de me importar.
O cheiro de queimado finalmente atinge Veroni, que solta um palavrão e corre para a cozinha. A fumaça se espalha, um reflexo perfeito do caos que nos cerca, enquanto eu, ainda deitada, permaneço imóvel, deixando a fumaça e as palavras de Veroni se dissiparem no vazio que se instalou dentro de mim.
— Você esta morta por caso? - Veroni pergunta. Levanto meus olhos lentamente na direção de Veroni, que agora está parada na porta da cozinha com uma frigideira em mãos, o rosto meio coberto pela fumaça que ela tenta afastar com um aceno irritado. Não respondo de imediato, mas por um momento, sinto uma leve pontada de algo — culpa talvez, ou o desejo de reconectar com a realidade que estou evitando. Veroni me encara, as sobrancelhas franzidas, esperando algum sinal de vida da minha parte.
— Estou... cansada. - murmuro, como se as palavras pesassem uma tonelada. Não sei se ela ouviu direito, mas mesmo que tenha, parece não dar importância. Ela bufa, jogando as panquecas queimadas na pia com um baque seco.
— Todo mundo está cansado. - ela diz, virando-se para me encarar novamente. — Mas você... parece que não está mais aqui.
Sua franqueza corta o ar entre nós. Eu sinto isso também, a desconexão que cresce a cada dia, como se algo estivesse me sugando de dentro para fora. Veroni se aproxima, deixando a fumaça da cozinha para trás. Ela se senta no chão ao meu lado, as costas contra o sofá, o olhar agora menos severo, mais preocupado. Ela não diz nada por um longo tempo, e agradeço por isso.
— Sabe... - ela começa, depois de um silêncio que pareceu se estender por minutos. — Talvez você devesse vir comigo ao protesto hoje. Talvez... sair daqui te ajude a sentir alguma coisa.
Eu fecho os olhos, sentindo o peso de sua sugestão. O protesto contra Orlov. A cidade em revolta. Algo dentro de mim se revira ao pensar nisso. Não é medo do governo, dos vampiros, ou de Orlov. É o medo de me ver lá fora, no caos, e perceber que estou tão morta por dentro quanto aquilo que estamos tentando destruir.
— Não sei, Veroni. - murmuro, sem abrir os olhos. — Não sei se estou com vontade. - ela suspira e, pela primeira vez naquela noite, sua voz baixa um pouco, menos enérgica, mais suave.
— Você precisa se reerguer... de algum jeito.
As palavras ecoam dentro de mim, mais como um lembrete do que como um conselho. Reerguer-se. Mas de onde? Das ruínas de um mundo que já não reconheço? De uma cidade mergulhada em sangue? De dentro de mim mesma?
A fumaça se dispersa aos poucos, assim como a conversa. Ficamos em silêncio, eu e Veroni, sentadas no chão daquele pequeno apartamento. Ela tenta me puxar de volta, mas mesmo assim, me sinto como se estivesse afundando cada vez mais.
⸸
Nikolai
A sala era mal iluminada, com uma lâmpada oscilante no centro da mesa, o som abafado da cidade lá fora mal penetrava as paredes espessas. Eu estava sentado em uma cadeira de metal, encarando o homem à minha frente, ele está calmo demais, quase impassível, e em cima da mesa, uma pasta surrada, amarelada pelo tempo e cheia de informações.
— Aí está tudo o que você pediu. - disse ele, empurrando a pasta em minha direção, sua voz era fria, mecânica, como se aquilo fosse apenas mais uma transação rotineira. Estendi a mão e puxei o dossiê para mim, a textura do papel áspero roçou meus dedos enquanto eu o abria, com o coração batendo forte no peito, mas o rosto impassível, Raphael. Ele era o alvo, e eu sabia que esse arquivo conteria tudo que precisaria para rastreá-lo, para dar o próximo passo.
As primeiras páginas continham dados previsíveis, locais onde ele havia sido visto, movimentações bancárias suspeitas, registros de viagens, é o típico trabalho de espionagem. Eu passei por tudo isso com calma, analisando cada detalhe, mas quando virei a página, meus olhos se fixaram nas fotografias. Ele tinha sido meticuloso. Vários ângulos, distâncias em contextos diferentes. Raphael parecia sempre o mesmo, a postura aristocrática, o olhar frio e calculista. Mas em uma das imagens, algo chamou minha atenção de imediato. Ao lado dele, quase à sombra, invisível ao lado dele.
Alyn.
Ela estava ali, ao lado de Raphael, como se fizesse parte do mundo dele, havia algo em seu olhar que me fez congelar. Não era o olhar da mulher que eu conhecia. Havia cansaço, talvez submissão. Isso me atingi como um soco no estômago, e o silêncio na sala pareceu se tornar ensurdecedor.
— Quem é ela? - perguntei, sem tirar os olhos da foto, tentando manter minha voz controlada. O vendedor deu de ombros, inclinando-se preguiçosamente na cadeira enquanto lançava um olhar indiferente para a foto.
— Talvez seja só mais uma das meninas da Neon Pulse. - disse ele, com um tom desdenhoso. — Você sabe como funciona. Ele tem acesso a quem quiser. Elas sempre acabam envolvidas de uma forma ou de outra.
Neon Pulse. Mulheres perdidas e homens, sem esperança, atraídos para aquele buraco por promessas que nunca seriam cumpridas. Mas Alyn? Não. Isso não era apenas coincidência. A raiva borbulhou em meu sangue, mas controlei a expressão. O vendedor não precisava saber o quanto aquilo me atingia. Fechei a pasta devagar e a puxei para perto de mim.
— Não importa. - menti, tentando parecer despreocupado.
O homem me olhou com uma ponta de curiosidade. Mas logo se levantou, indiferente, empurrando a cadeira para trás.
— O dinheiro já está comigo. Espero que faça bom uso dessas informações. - ele disse, caminhando em direção à porta com passos lentos, quase desinteressados.
Eu fiquei sozinho na sala, a pasta ainda fechada em minhas mãos. A presença de Alyn ao lado de Raphael era mais do que um detalhe insignificante. Agora, ela estava envolvida no jogo, e isso mudava tudo. Raphael não era apenas o alvo. Agora, era pessoal. E eu não ia permitir que Alyn se tornasse mais uma peça descartável dele.
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