Nove
De frente com a frieza da morta
O mundo inteiro se eclipsa
Seu ar escapa
E sua alma desvanece
Alyn
A luz da lua filtrava-se pela janela alta, banhando o quarto em brilho sereno, estou deitada na cama que Raphael havia me cedido, e não pode deixar de comparar o vasto espaço com o meu apartamento que morro com Veroni. O quarto inteiro parece engolir aquele modesto apartamento e ainda assim, sobrava uma imensidade de espaço, Raphael fora generoso ao me dar aquele apartamento, mas esse cômodo... alias tudo aqui carrega uma opulência que faz tudo parecer irrelevante, quase insignificante.
Os lençóis, macios e quente, envolvendo-me como um abraço silencioso, oferecendo conforto que há muito tempo não experimentava, cada detalhe na mobilha, cada toque no ambiente, parece tudo calculado para exalar luxo e poder, mas apresar disso a inquietação sutil me impedia de relaxar por completo.
Desde a chegada dos filhos de Raphael, ele evita a nossa ultima conversa, ele apenas mencionou casualmente, que eu tenho liberdade para sandar pela casa se quisesse, mas isso não é algo que eu me sinta disposta a fazer. Não agora. Os empregados, embora gentis, me olhavam de uma maneira que não posso ignorar, alguns disfarçam sua curiosidade por trás de uma cortesia treinada, enquanto outros me viam com uma intrusa, alguém que não pertence aquele mundo. E de fato, não pertencia.
Depois da quase transfusão de sangue, meu corpo ainda se recuperava da brutalidade de Nikolai, ela havia me drenado quase até o fim, e por mais que eu tente entender o que o motivou a cometer a tal ato, nenhuma razão parece clara. Meu pai, apesar de sua frieza, jamais ordenaria algo tão bárbaro contra mim. Duvido que ele teria envolvimento direto. Fecho os olhos por um momento, tentando afogar as lembranças na tranquilidade forçada desse quarto, mas minha mente não se silencia, a noite está só começando, eu sei que em algum momento, eventualmente terei que enfrentar não apenas as perguntas que giram em minha mente, mas também o inevitável confronto com o Raphael, e cada minuto que passa eu só penso em uma pessoa Veroni, onde ela está e se está bem, Raphael não deu muitos indícios da situação dela. Essas perguntas martelam minha cabeça, tronando o silêncio do quarto ainda mais insuportável.
⸸
Fui acordada pelos primeiros raios de sol que penetravam suavemente pela janela, a luz é suave, mas perece intensa demais para meus olhos anda cansados, o calor da cama parece tentar me prender ali, como se me convidasse a ignorar o que acontecia além das paredes daquele quarto, mas minha mente esta desperta e inquieta com a realidade. Levanto-me devagar sentindo os músculos ainda rígidos, o cheiro de madeira queimada ainda paira no ar, vestígios da lareira que havia crepitado durante toda madrugada.
Há um conjunto simples de roupas deixado para mim sobre uma das poltronas próxima, claramente escolhido pelos empregados, ao me olhar no espelho, vi uma figura diferente da que estava acostumada a ver, pareço frágil demais, noto que a fita vermelha não esta mais em meu tornozelo, e pergunto quem a tirou.
Não poderia ficar ali esperando, sai do quarto, caminhando pelos corredores imponentes da casa, e eu não encontro ninguém pelo caminho, Ao descer as escadas em direção ao salão principal, sou surpreendida por uma movimentação súbita. Vários empregados passavam apresados, preparando a mesa de café da manhã, quando me aproximei, uma empregada me olhou com um misto de surpresa e desconforto, mas logo desvia o olhar, ignorei o incômodo e continue caminhando.
Raphael esta sentado à cabeceira da mesa, calmamente foleando um jornal holográfico, seu semblante está sereno, quase indiferente, ele e olha de relance mas não diz nada de imediato. Sentei-me esperando alguma reação.
— Você dormiu bem? - ele finalmente perguntou, com uma tranquilidade deslocada diante dos últimos acontecimentos.
— Sim. - respondi tentando manter minha voz controlada. Raphael desabilitou o jornal com calma, inclinando-se ligeiramente na cadeira.
— As crianças já estão descendo, Senhor Damarov. - uma mulher franzina que vestia um terno feminino fala colocando uma jarra de sangue sobre a mesa, que aliás esta abarrotada de comida. — Os jovens possuem mais dificuldade para acordarem. - ela diz com um tom leve o que faz Raphael dar um leve sorriso. Parece que estou em uma realidade simulada bizarra do cotidiano burguês.
Olhei ao redor da mesa, frutas frescas, pães ainda quentes, alguns doces, uma abundância de coisas dispostas como se fosse um banquete, a unica coisa que destoa é a jarra de sangue. As portas duplas do salão se abriram, e os filhos de Raphael entram, Arkadi é o primeiro a aparecer, seus olhos fixaram em mim por um breve momento, mas logo desviou o olhar, atrás dele Irina com os olhos afiados, segue em silêncio, ela exala uma confiança, como se estivesse acima de tudo ao seu redor.
— Ah, finalmente. - Raphael falou com um tom suave, mas ainda sim autoritário.
Arkadi e Irina se sentaram sem muita cerimônia, o menino pegando um dos pães na mesa e colocando sob o prato, a garota, por outro lado, manteve os olhos observando tudo. Ela me olha de cima a baixo, com um olhar avaliativo, não houve saudação, apenas um aceno mínimo de reconhecimento, antes de voltar sua atenção à comida.
— Raphael... podemos conversar? - finalmente me atrevi a perguntar, todos me encaram por um momento.
— Depois do café. - sua resposta calma mas firme, diz que não devo insistir nesse momento.
— Não... vamos conversar, papai - a voz de Irina em um tom elevado e irônico, me diz que eu não deveria ter aberto minha boca.
Raphael suspirou, seu semblante mudando de descontraído para serio em um instante, ele olha para filha, um olhar claramente de advertência.
— Irina, agora não. - ele adverte em um tom de comando. Irina revira os olhos claramente desafiando a autoridade do pai, eu me sinto deslocada, uma intrusa em uma discussão familiar, Arkadi por sua vez parece se divertir com a tensão, mordendo um pedaço do pão com uma expressão de satisfação, como se estivesse assistindo uma luta de droids nas favelas nucleares.
— O que está acontecendo aqui? - perguntei, não conseguindo me conter, trazendo a atenção de todos para mim, Raphael me encarou, e por um segundo sua expressão suavizou.
— Está vendo? Ele não tem respostas. - disse Irina, com um sorriso sarcástico nos lábios. — Estamos todos na mesma situação, não é mesmo, Alyn? - senti um frio na barriga, não sei se estou sendo usada como moeda de troca ou se realmente estava em uma posição de igualdade entre eles.
— Alyn não precisa se envolver em nossas discussões. - ele está visivelmente tentando manter a calma, mas sua voz está tingida de desagrado. Eu como uma uva e por mais que ela esteja deliciosa, eu comi no automático, não quero criar uma briga entre eles. O silêncio que se seguiu parecia mais pesado que qualquer palavras que pudesse ser dita
Arkadi mastigava lentamente, os olhos dançando entre mim, Raphael e Irina, claramente aguardando a próxima faísca. Irina, por outro lado, não parecia interessada em encerrar o assunto.
— Você realmente acha que pode ficar de fora? - ela perguntou, me desafiando diretamente. — Porque, se pensa isso, está mais enganada do que eu imaginava. - eu apertei o garfo em minha mão, tentando não reagir. Raphael não disse nada, seus olhos fixos na filha, mas o silêncio dele é revelador. Ele não quer que isso continue, mas também não a impediu.
— Irina, chega. - ele murmurou, embora a advertência em sua voz fosse clara. — Não faça disso um espetáculo.
— Um espetáculo? - Irina riu, mas a risada foi fria. — Já passamos disso, pai. Ou você vai continuar fingindo que está tudo sob controle? - Arkadi se inclinou na cadeira, claramente se divertindo mais a cada segundo. A unica coisa que eu queria agora era esta desacordada ou enchendo a cara em algum lugar, não no meio de uma briga familiar.
—Alyn, vou te dar um conselho. - Irina continuou, ignorando completamente a tentativa de Raphael de encerrar a discussão. — Se você quer sobreviver aqui, pare de agir como uma das garotas das boates dele. Não é assim que se joga. E, definitivamente, não confie nele.
Raphael finalmente reagiu, sua mão bateu na mesa, carregado de autoridade. O som ecoou na sala, cortando o ar como uma lâmina. Irina parou, seus olhos estreitando, mas ela não disse mais nada. Eu, por outro lado, me sinto perdida, e a relação entre eles é claramente mais complexa do que eu poderia imaginar.
— Acho que já tivemos o suficiente por hoje. - Raphael disse calmamente, mas sua voz carregava uma firmeza inegável. Ele se levantou da mesa, sinalizando que a conversa estava encerrada. — Alyn, venha comigo. Vamos conversar em particular. - eu o segui, embora meus pés parecessem mais pesados do que antes. As palavras de Irina ainda ecoavam na minha mente. Não confie nele. Mas, ao mesmo tempo, Raphael é a única pessoa ali que parecia ter alguma noção de controle sobre a situação. Quando saímos da sala, senti os olhos de Irina e Arkadi queimando em minhas costas.
⸸
Irina Damarov
Eu observei enquanto Alyn saía da sala, seguindo meu pai como uma cadelinha obediente. Um suspiro exasperado escapou dos meus lábios, é sempre patético ver alguém se deixar manipular tão facilmente.
Arkadi ainda estava à mesa, sorrindo para mim como se tivéssemos acabado de assistir a um espetáculo particularmente divertido. Ele sempre adorava ver meu pai perder o controle, mesmo que fosse por apenas um segundo.
— Então, o que acha dela? - Arkadi perguntou, recostando-se na cadeira e erguendo uma sobrancelha inquisitiva.
Eu revirei os olhos antes de me levantar, afastando a cadeira com um movimento rápido. Arkadi soltou uma risada curta, enquanto acende um cigarro.
— Você é tão dramática, Irina. Talvez ela seja mais esperta do que você imagina.
— Ou talvez seja exatamente o que parece. - retruquei. — Uma bonequinha. E você sabe o que acontece com bonequinhas quando não são mais úteis.
Arkadi da de ombros enquanto solta a fumaça do cigarro preguiçosamente. Cruzei os braços, caminhando até a janela. O sol brilhava lá fora, e, por um momento, desejei poder estar em qualquer outro lugar. Longe de tudo isso.
— Ela vai quebrar. - eu disse, sem olhar para Arkadi. — Ele vai dobrá-la até que ela se quebre, como faz com todos.
— Ah, irmãzinha, sempre tão raivosa, o nosso plano foi pro ralo aliás...obrigado. - ele riu, se levantando da mesa. — Tô afim de ir ao Hollow Dive, quer vim junto?
— Só se você não ser o meu empata foda. - Arkadi solta uma gargalhada.
— Prometo que vou tentar. - disse ele, ainda rindo enquanto apagava o cigarro e o jogava no prato. — Vejo você lá, então.
Eu odiava ter que me misturar com as massas no Hollow Dive, mas era o melhor lugar para conseguir o que eu precisava. Informações. Contatos e com sorte, uma nova estratégia para reverter a bagunça que Arkadi e eu havíamos planejado antes que nosso pai decidisse tomar as rédeas.
O caminho até o Hollow Dive era uma jornada pelo lado podre de São Petersburgo, as luzes de neon refletiam nos poços de água suja, e os becos estreitos estavam infestados de figuras sombrias. Nada disso me assustava, claro. Eu nasci nesse mundo, cresci nele.
Quando cheguei, a batida pesada da música eletrônica já estava vibrando nas minhas veias. O Dive estava lotado, como sempre, com humanos e vampiros se misturando, como se a fronteira entre caça e caçador não existisse ali. Eu podia ver os olhos curiosos me observando enquanto entrava. Deixe-os olhar. Eles sabem muito bem quem eu sou, afinal o nome Damarov não é qualquer coisa.
Arkadi já estava no bar, com um copo na mão, e me cumprimentou com um aceno. Eu me aproximei e pedi a minha bebida, ainda sentindo o peso da tensão no ar. Não demoraria muito até que algo explodisse. Sempre era assim. Um ambiente como o Hollow Dive nunca permanecia calmo por muito tempo.
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